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Fluxograma 1: O lugar do fã dentro do processo produtivo das indústrias culturais

1.1 Os Estudos de Fãs

1.1.1 Os Estudos de Fãs no Brasil

Considerados os dados supracitados e o objeto a ser estudado no terceiro capítulo, julgo ser de grande contribuição detalhar o desenvolvimento dos Estudos de Fãs no Brasil, agora utilizando as revisões de Giovana Santana Carlos (2015) e Sarah Moralejo da Costa

Figura 1: Nuvem de palavras das palavras-chave nas últimas dez edições da revista Transformative Works and Culture (as palavras fan, fandom e studies foram retiradas da

contagem final, sendo as respectivamente as que mais apareciam). Feito na plataforma Wordclouds.com. Fonte: AMADO, 2019a.

(2018), atualizadas quando necessário32. A primeira mapeou as produções científicas sobre fãs nos congressos nacionais da Intercom e Intercom Júnior (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação) e da Compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação) até o ano de 2014; enquanto a última faz em sua tese um detalhado levantamento do campo até o ano de 2015, utilizando como base os trabalhos em pós-graduação no país. Com esses dados é possível ter uma visão completa de literatura nacional pois, como lembra Costa (2018), não é comum a publicação de livros nacionais sobre o assunto – sendo a maioria das produções em formato de artigos em anais ou revistas, bem como de monografias, teses e dissertações.

O ano de 2002 marca o início das pesquisas sobre fãs no Brasil, com dois trabalhos apresentados na Intercom, um sobre fanzines (SILVA, 2002) e um sobre fanfictions – textos fictícios escritos por fãs cujos personagens e a trama são baseados nas obras adoradas ou nos ídolos (SÁ, 2002); e a defesa da dissertação de Adriana Amaral acerca da imagem pública da banda U2 e das interações virtuais de seus fãs gaúchos. Nota-se, portanto, que os Estudos de Fãs surgem no Brasil alinhados à fase internacional de valorização das TIC nas atividades e produções desse grupo. As três pesquisas também têm em comum a forte predominância de referências bibliográficas estrangeiras, destacando-se as que abordam cibercultura e consumo midiático – apesar de nenhuma ser específica ou prioritariamente sobre fãs. Esse fato pode ter se dado visto que, apesar de internacionalmente os Estudos de Fãs estarem completando uma década, poucos livros já publicados haviam chegado ao Brasil fisicamente, menos ainda traduzidos; e os mecanismos de busca digital para fins acadêmicos ainda se encontravam no início do seu desenvolvimento.

De qualquer forma, já é notável que as pesquisas brasileiras privilegiariam um tipo particular de fã. Considerando que até 2002 estimava-se existir apenas 14,3 milhões de usuários de internet no país (USUÁRIOS..., 2005), isto é, menos de 8% da população33, estudar os fãs a partir da cibercultura exclui uma parcela gigantesca desse objeto. Assim, ao contrário do que se sugere nos estudos internacionais, no Brasil a pesquisa de fã tem se voltado mais para classes sociais mais elevadas, que poderiam custear a conexão digital em seus domicílios.

32 Parte desses resultados foram apresentados no XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região

Nordeste (AMADO, 2019a)

33 Segundo o Banco Mundial (BRAZIL..., s/ data), a população brasileira em 2002 era de 180,15 milhões de

É importante mencionar que esse direcionamento pela cultura digital não foi ou é algo tão deliberado quanto pode parecer. Já comentei que os Estudos de Fãs ainda são marginalizados no país, mas a resistência enfrentada pelos primeiríssimos pesquisadores foi ainda maior. Como me relatou Amaral, apenas pesquisadores voltados às novas tecnologias demonstraram qualquer abertura para abraçar pesquisas que tinham o fã como objeto central em GPs de eventos ou orientações de TCC e pós-graduações, limitando as abordagens teorias e temáticas possíveis para elas.

Outros temas presentes nos primeiros seis anos de pesquisa na Intercom são: revisão histórica do termo “fã”; fã-clubes; dinâmica interna da comunidade de fãs; criação e autoria de fãs; e consumo trash. A partir de 2008 aumenta a variedade temática, ilustrada também na presença dos trabalhos em diferentes GPs, com destaque para abordagens envolvendo a cibercultura de maneira mais aprofundada. Não coincidentemente esse é o ano em que o livro

Cultura da Convergência (JENKINS, 2008) é publicado do Brasil e citado pela primeira vez

(CARLOS, 2015) – obra que viria a se tornar a principal referência em cultura de fãs para os pesquisadores brasileiros: dos 85 artigos levantados entre 2015 e 2018 na Intercom e Intercom Júnior, Jenkins era citado pelo menos uma vez em 64 desses (AMADO, 2019a), sendo a maioria das citações referentes a obra em questão.

Carlos (2015) encontrou 40 trabalhos na Intercom e 12 na Intercom Júnior até o ano de 2014. Na busca para atualizar esses dados, foram localizados 86 trabalhos34 nesses mesmos eventos de 2015 a 2018, conforme o gráfico 1:

34 Seguindo a metodologia de Carlos (2015), contabilizei trabalhos que possuíssem as palavras “fã”, “fãs”,

“fandom” ou suas variáveis, assim como os que envolvessem temáticas que se encaixem na cultura de fã apesar de não possuir o termo, como “punk”, “geek” e “otaku”. Alguns estudos que envolviam fãs de esporte, política ou religiosidades não foram incluídos pois necessitariam de uma análise aprofundada para avaliar se de fato se encaixariam no que aqui consideramos cultura de fãs.

Gráfico 1: Trabalho sobre Estudos de Fãs encontrados nos anais da Intercom e Intercom Júnior. Fonte: AMADO, 2019a.

O crescimento total a partir de 2009 reflete o uso das principais redes sociais digitais no país, que foram e são fundamentais para as dinâmicas de fandoms nacionais. São eles: Twitter, com popularização em 2009; Facebook, que se torna o site de rede social (SRS), mais acessado no Brasil a partir de 2012(FACEBOOK..., 2012); e Instagram, em ascensão também desde 2012.

O levantamento dos Grupos de Pesquisa (ou Núcleos de Pesquisa, até 2008) da Intercom fornece um panorama da diversificação temática da pesquisa: até 2014 os GPs com mais publicações sobre fãs eram os de Comunicação e Culturas Urbanas (11), Cibercultura (7) e Ficção Seriada (7) (CARLOS, 2015). Já entre 2015 e 2018 o mais publicado é o GP Comunicação, Música e Entretenimento (15), que contava com apenas um trabalho antes disso; ele é seguido pelos GPs Cibercultura (11), Ficção Seriada (8) e Comunicação e Culturas Urbanas (6). No total, 17 dos 34 Grupos de Pesquisa existentes em 2018 já receberam pelo menos um trabalho sobre fãs. Destaco aqui o GP América Latina, Mídia, Cultura e Tecnologias Digitais, que desde 2002 teve apenas uma publicação sobre o assunto; e o GP Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura, cujo primeiro trabalho foi apresentado em 2019 – derivado desta dissertação (AMADO, 2019b).

Os estudos acerca da cultura de fãs no Brasil acompanham tanto o crescimento do campo como a diversificação de temas que ocorre no restante do mundo. Todavia, enquanto temas como gênero, raça, pobreza e transculturalismo ganham o interesse de pesquisadores internacionais (já havendo edições especiais em revistas, mesas em eventos e livros sobre alguns desses assuntos), os brasileiros valorizam as produções de fãs, como fanfiction e

podcasts, e a abordagem da cultura de convergência, cultura participativa e narrativas

transmídia – temáticas populares nas pesquisas internacionais até cerca de 2010 (AMADO, 2019a). A título de comparação, trago aqui a nuvem de palavras-chave das edições de 2015 a 2018 da Intercom acerca da cultura de fãs (figura 2).

Considerando os artigos do antigo Núcleo de Pesquisa Tecnologias da Informação e da Comunicação (até 2008) e da atual Divisão Temática Multimídia, Carlos (2015) encontra três eixos temáticos de estudos sobre fãs no contexto da comunicação digital e cibercultura: o primeiro sobre a relação dos fãs com a mídia, que envolve desde as interações com os ídolos e com a comunidade de fãs até o engajamento político através de perfis ou grupos virtuais; o segundo fala das práticas ou obras de fãs – como fanzines, fanfictions, fanfilms,

fansubbing e cosplays, sendo abordados sob o viés da prática em si ou das obras; e o terceiro

estuda o aspecto cultural e identitário nos fandoms. Observando os títulos, resumos e palavras-chaves dos trabalhos de 2015 a 2018 da mesma DT, creio que esta divisão se mantém pertinente, fazendo a ressalva de que os eixos são não-excludentes e inserindo um novo eixo epistemológico a partir do próprio artigo de Carlos (2015) aqui referenciado. Destaco, por fim, a ascensão de duas temáticas: o uso e criação de memes e gifs como produção de fãs; e discussões sobre sexualidade e representatividade, motivadas principalmente pelo reality show americano Rupaul’s Drag Race.

Referente à Compós, Carlos identificou somente cinco pesquisas sobre fãs, em cinco Grupos de Trabalhos diferentes, sendo a primeira em 2006 e a última em 2014.

Todas as cinco pesquisas invocam de alguma forma a cibercultura, pois se debruçam em comunidades online, em redes sociais (Facebook e Orkut), listas de Figura 2: Nuvem de palavras das palavras-chave de pesquisas sobre fãs nos últimas três anos de

anais da Intercom (as palavras fã e fandom foram retiradas da contagem final, sendo as respectivamente as que mais apareciam). Feito na plataforma Wordclouds.com. Fonte:

emails (grupos do Yahoo) e mesmo a única que mais poderia se distanciar aborda questões como a transmídia, convergência e cultura participativa, as quais por sua vez englobam a internet e mídias digitais. (CARLOS, 2015, p. 4-5).

Atualizando esse corpus até o ano de 2018, foram encontrados mais seis artigos, sendo um em 2016, três em 2017 e dois em 2018. Desses, dois falavam de fanfictions; um sobre o papel do fã em estratégias transmídias; uma discussão teórico-metodológica para os Estudos de Recepção a partir do status de comunidade interpretativa; um sobre a performance e identidade em eventos de anime (animações japonesas, uma das principais representantes da cultura pop japonesa no Brasil); e um sobre a participação de crianças em jornais infanto- juvenis. Assim, os trabalhos em Estudos de Fãs na Compós crescem da média de aproximadamente 0,56 artigos/ano de 2006 a 2014 para 1,5 artigos/ano entre 2015 e 2016.

Parto agora para a análise de dissertações e teses iniciada por Costa (2018), tendo início na já mencionada dissertação de Amaral, em 2002, considerado o marco teórico dos Estudos de Fãs no Brasil. Depois de um começo lento, com 5 trabalhos em 8 anos até 2009, a produção em Estudos de Fãs nos cursos de mestrado e doutorado brasileiros cresce em 2010, com 39 publicações encontradas pela autora até 2015. Estes dados, quando analisados junto aos da Compós (evento direcionado apenas para alunos ou egressos de pós-graduação), mostram o amadurecimento acadêmico dos pesquisadores nacionais interessados neste grupo. A autora observa que

Ao pensar o fã como um segmento de audiência, os trabalhos se voltam inicialmente para a existência de um produto cultural com o qual esse fã se relaciona. O contexto da convergência muitas vezes é apontado como algo que facilita e incentiva as práticas dos fãs ao disponibilizar a produção cultural em uma variabilidade de suportes e por meio de um fluxo constante de produtos que neles se dissemina. Além disso, a própria produção dos fãs é incentivada nesse contexto, pois o produtor conta com a organização, difusão e multiplicação de seus produtos, o que é potencializado pelo público. (COSTA, 2018, p. 34).

Comenta também sobre uma “grande diversidade de temas, enquadramentos e objetos” (COSTA, 2018, p. 35), bem como do objeto a ser idolatrado, citando desde nomes da música e obras cinematográficas até organizações empresariais e religiosas. Dada essa variedade no corpus, ela agrupa os trabalhos de acordo com seus temas gerais: relação entre fãs e produtores da obra; dinâmicas e práticas internas aos grupos de fãs; manifestações dos fãs a partir de trocas estabelecidas nesses grupos; relação dos mesmos com os produtos que se relacionam; relação dos fãs com formas de produção midiática; e produções próprias dos

fãs – a saber, fanfiction, fanart, memes, cosplay, colecionismo, scan, legendas, mediação, culto, debates e conversações.

Assim como Carlos (2015), Costa (2018) faz uma separação dos estudos sobre cibercultura, elencando-os a partir da classificação dos fãs: como recorte da audiência; como comunidade; como produtor; e como consumir. Essas possibilidades demonstram tanto a complexidade do próprio fã como a evolução do campo teórico.

Não disponho de tempo hábil para fazer uma análise tão minuciosa quanto a de Costa (2018), porém, para a metodologia exposta no terceiro capítulo e detalhada na introdução, realizei uma revisão de literatura semelhante, encontrando mais de 120 pesquisas relacionadas à cultura de fãs em 17 áreas diferentes (com destaque para Comunicação, Letras, Administração e Antropologia). Esse saldo é positivo pois demonstra o caráter interdisciplinar dos Estudos de Fãs, tão discutido e desejado, e abre portas para novas abordagens e referenciais. Outras propriedades observadas foram o predomínio dos Estudos de Recepção como perspectiva teórica e a permanência da cultura da convergência (tal qual descrita por Jenkins) como principal abordagem ao se descrever esses grupos.

Costa (2018, p. 36) coloca ainda que as próprias pesquisas mapeadas apontam para a necessidade de uma formação teórica nacional, “seja pela constatação da existência de um contexto de ser fã que é diferente dentro e fora do Brasil, seja pela necessidade de articular uma teoria fundamentalmente internacional com o cenário teórico construído nacionalmente e na América Latina”. De fato, ao revisar o histórico do campo brasileiro identificam-se algumas deficiências ao representar as particularidades da nossa sociedade, ainda que a maioria dos trabalhos discutam a experiência de fandoms nacionais, sejam eles de textos locais ou estrangeiros.

A continuidade da perspectiva das mídias digitais e cibercultura contribui para essa problemática. Embora o acesso à internet tenha aumentado consideravelmente desde 2002, alcançando cerca de 64,7% da população com 10 anos ou mais (GOMES, 2018), nos encontramos distantes da idealista democratização da rede. Deliberadas ou não, tais abordagens desconsideram parte da população que ainda passam pelo processo de alfabetização digital e exercem sua adoração longe das novas mídias. Lembremos que, segundo o próprio campo, o que caracteriza o fã são os processos interativos e transformativos (VIEIRA, 2015) motivados pelo consumo, não havendo qualquer condicionamento ao mundo virtual – por mais que este facilite a execução desses processos. É preciso que as pesquisas nacionais voltem os olhos para essa audiência, tão relevante para as produções culturais brasileira quanto as demais.

Como mencionado anteriormente, os fãs são retratos das sociedades em que se inserem e as particularidades históricas, culturais e econômicas dos países centrais aos Estudos de Fãs impedem o surgimento de obras que consigam abranger outras realidades. Autores como Fiske (2001), Jenson (2001) e Grossberg (2001), ao tratar de classe, por exemplo, entendem os fãs como alvo de preconceito vindo das elites por consumirem objetos da cultura de massa e não erudita. Já no Brasil, observa-se que a forma particular de consumo dos fãs é também presente nas classes médias e altas, principalmente quando relacionadas à alguma figura internacional. São incongruências como estas que devem ser reveladas e debatidas pelo campo nacional.

A pesquisa brasileira ainda se encontra bastante dispersa, o que inviabiliza a construção de um debate que possa problematizar e buscar soluções para as melhores formas de estudar fãs e fandoms brasileiros segundo nossas características locais. Destaco, porém, como polo da produção acadêmica sobre fãs no Brasil o CULTPOP – Grupo de Pesquisa em Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, liderado por Adriana Amaral. O grupo, formado em 2011, apesar de não estudar exclusivamente este objeto, reúne entre seus pesquisadores e alunos algumas das principais referências no campo nacional e frequentemente sedia eventos nessa temática.

Os levantamentos apresentados aqui provam que já possuímos substancial literatura brasileira acerca da cultura de fãs e suas implicações. Agora cabe a nós, pesquisadores de fãs, nos distanciarmos dos referenciais que não dão conta das nossas realidades socioculturais, trazendo para o campo nacional questões singulares à América Latina e especialmente ao Brasil, avançando em discussões sobre diferença de classe, hibridismo cultural, democratização das mídias, produção local, identidade cultural e até traçando um histórico dos fandoms no país, a exemplo do trabalho do Coppa (2006) nos Estados Unidos. Como lembra Sandvoss, (2005, p. 6-8) “fã e fandom tanto têm origem em uma autodefinição de seus componentes quanto é, ao mesmo tempo, um conceito mutante”.