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Fluxograma 1: O lugar do fã dentro do processo produtivo das indústrias culturais

2.2 A atividade do fã para exercer seu papel na Indústria Cultural

2.2.1 O engajamento na era da convergência

Quando se fala de atividade de fãs é impossível ignorar o peso das mídias digitais, que hoje já centralizam essas dinâmicas. Como estabelecemos anteriormente, a digitalização não criou formas de engajamento, mas potencializou as já existentes em escala global e a uma velocidade de interação impensável até então, tornando-as mais presentes e evidentes. Isto posto, para atingir o objetivo de indicar como as atividades dos fãs cumprem o seu papel no contexto maior em que se inserem, se faz necessário perceber as dinâmicas de consumo desse público na lógica da convergência.

As principais mudanças vêm da nova lógica de interação estabelecida pelos ambientes

on-line. Com a comunicação e o acesso ao fandom simplificados, a adoração passa a tomar

mais e mais espaço no mundo da vida e no tempo livre. Isto, somado ao caráter de pioneirismo na exploração midiática e à tendência de envolvimento dos fandoms, resulta num notável crescimento desses grupos, que passam a compor comunidades estruturadas, organizadas e diversificadas, ativas em todos os rincões da web. Essas comunidades são exemplos do que Jenkins (1992) chama de cultura participativa.

Figura 3: À esquerda, diversos perfis no site Twitter dedicados ao cantor Justin Bieber; à direita, um perfil na plataforma Instagram voltado para a divulgação de fotos da cantora

Algumas formas mais comuns de organização dessas comunidades são através de redes sociais: grupos secretos no Facebook em que cada post é um novo tópico de discussão, e normalmente os “moderadores” são os mais altos na hierarquia; a partir da construção de perfis/blogs dedicados não-oficiais (seja de notícias, comentários, fan productions ou sátiras/memes) no Twitter, Tumblr, Instagram, LiveJournal etc. (figura 3), em que a hierarquia se dá pelo tempo no fandom, os números de engajamento no perfil e nas publicações, e o conhecimento geral da obra; e fóruns de discussão em sites como Reddit e Fandom.com.

Dentre a construção cultural resultante dessas interações, surgem vocabulários próprios (palavras como ship, hater, poser, endgame, OTP, flop etc.), condutas sociais, pautas a serem seguidas e diretrizes sobre como consumir e se engajar, configurando seu caráter de apropriação. O fenômeno de preocupação com os chamados spoilers, que cresceu exponencialmente nos últimos anos com a popularização dos serviços de streaming aliado ao uso de SRS, ilustra essas normas de comportamento: há comunidades com regras rigorosas sobre como lidar com spoiler – só permitindo comentários em um post específico, com aviso antecipado, ou depois de um número pré-determinado de dias da divulgação da obra, por exemplo – e o descumprimento pode levar a exclusão do fandom.

O número e alcance das produções de fãs também aumenta, a ponto de seguir processos semelhantes à segmentos tradicionais da Indústria Cultural, em que os próprios fãs cobram e avaliam os serviços, apesar de não haver diretamente o assalariamento (VIEIRA, 2015). Essas obras são constantemente monitoradas pelas indústrias, que buscam meios de apropriar seu valor simbólico, algumas vezes incorporando-as e outras utilizando-as como novas produções (BONI, 2017): a peça teatral Harry Potter and the Cursed Child, aceita oficialmente como parte da franquia, surgiu inicialmente como uma fanfiction; já o livro Cinquenta Tons de Cinza, que deu origem a uma série literária e uma trilogia cinematográfica, começou como fanfiction da franquia de Crepúsculo e foi readaptada para a criação de um novo universo. Não são apenas as produções artísticas que a Indústria incorpora, como ilustra a contratação de fãs brasileiros que faziam fansubbing (legendar vídeos) de produções asiáticas pela DramaFever, empresa de streaming americana que estava ampliando seu mercado no Brasil (VIEIRA; ROCHA; FRANÇA, 2018).

O marketing espontâneo dos fãs também é incorporado, e dispõe de uma efetividade ainda maior com o uso das TIC. O desejo de divulgar e apoiar o produto cultural é manifestado através de postagens no próprio perfil, uso de hashtags, campanhas para

“viralizar” conteúdo, estratégias para destacar a obra comercialmente etc., tudo com um alcance muito maior que o círculo do fandom.

Semelhante à necessidade de divulgação, há a de propagar o texto para outros consumidores. Voluntariamente, talvez devido ao capital social incorporado à participação e conexão social típicos das culturas participativas, fãs criam e mantém recursos para possibilitar ou facilitar o acesso às obras, como a disponibilização de downloads e traduções. Não suficiente, ainda oferecem meios para auxiliar em como interpretar e ressignificar o conteúdo, através de resenhas, vídeos com comentários ou discussões em fóruns – algo como um “guia de consumo”, indicando às massas as melhores formas de recepção (VIEIRA, 2015, p. 78).

A internet possibilitou ainda a comunicação entre fãs e haters ou antifãs47, que também pode ser interpretada como uma maneira de divulgação espontânea. As demandas por validação, intrínseca a grupos discriminados, e por glorificar e defender o ídolo aquecem debates com aqueles que, semelhantemente, tem a necessidade em demonstrar seu desagrado para com ele. É o que acontece no grupo de Facebook brasileiro chamado “Tretas of

Fandom”, que chegou a mais de 133 mil membros de diferentes fandoms reunidos para

disputar em posts sobre cultura pop (figura 4).

Figura 4: Grupo Tretas of Fandom, autointitulado "o melhor grupo de tretas de fandoms no Brasil", no site Facebook. Fonte: www.facebook.com/groups/TretasOfFandoms/.

47 Vide Monteiro (2013).

Talvez a dinâmica mais alterada com a digitalização tenha sido entre fãs e artistas e produtores, resultando na maior influência dos fãs e numa produção mais horizontalizada. Já falei sobre a adaptação dos ídolos, que agora dividem seu dia-a-dia com seu público passando a impressão de proximidade e amizade. Já os produtores adotam uma posição de ouvinte, acompanhando as opiniões e acatando-as. Os fãs, por sua vez, inundam os perfis desses dois grupos com respostas, comentários, demandas e sugestões (figura 5).

A dimensão da contribuição das redes sociais às práticas dos fãs pode ser percebida quando essas interações são comparadas à formas anteriores: as campanhas de save your

show, que antes dependiam do envio de centenas de cartas e ligações diretas para chefes de

estúdio, hoje investem quase que primariamente no uso de hashtags para difundir suas reivindicações, sem custo, ilimitada e instantaneamente – e, por isso, com uma margem de sucesso ainda maior, como nas séries Community, Brooklyn Nine-Nine, Arrested

Development e Chuck. Já a aproximação com o ídolo, que outrora também era baseada em

cartas sentimentais como as descritas por Morin (1989) ou de raros encontros em eventos, se torna muito mais pessoal devido à maior possibilidade de recebimento, visualização e resposta por parte do artista.

A potencialização causada pela internet é tamanha que existem “ramificações” dentro da própria comunidade, com disputas entre fandoms, fãs de fãs e fanworks de fanworks (COSTA, 2018). Devido a essa ampliação, há um espalhamento dos próprios membros – e, em comunidades dispersas, “seus membros podem se deslocar para muitas direções

Figura 5: Postagem do perfil oficial da empresa de streaming Netflix sobre a estreia série cuja temática havia

sido requisitada pelos usuários. Fonte: twitter.com/NetflixBrasil.

diferentes, buscando novos espaços para aplicar suas habilidades e novas aberturas para suas especulações, e, no processo, as habilidades espalham-se para novas comunidades e aplicam- se a novas tarefas” (JENKINS, 2008, p. 82, tradução minha) 48. As discussões internas passam a não ser mais exclusivamente sobre o objeto adorado e os fandoms digitais também de tornam espaços propícios para mobilizações, motivadas por discursos do ídolo ou por discussões internas, o fan activism. A determinação de quais questões serão pautadas depende do contexto em que a obra se insere – tema, público alvo, ideologia defendida etc. – derivando daí as problemáticas de identidade cada vez mais discutidas no campo acadêmico. Apesar de geralmente associado com motivações próprias ao fandom, como é o caso das campanhas de “save our show” ou de financiamento coletivo, o ativismo de fãs pode também envolver causas sociais e políticas, como caridade, igualdade de gênero e representatividade de minorias:

O fan activism pode ser entendido como incorporado em uma comunidade, criado e mantido em torno de experiências de mídia compartilhadas, que canalizam o desejo dos membros de ajudar na ação social (e às vezes até a cria). Ao fazê-lo, os grupos ativistas de fãs reúnem o poder do fandom para conectar, engajar e mobilizar seus membros e uma meta cívica explícita para a qual essa energia e entusiasmo são canalizados. (KLIGLER-VILENCHIK; JOSHUA MCVEIGH- SCHULT; WEITBRECHT, 2012, tradução minha). 49

Diante da exposição de algumas das formas de engajamento do fã na era digital, compreendo que suas ações funcionam como mediação entre a Indústria e o público geral: através de sua organização, eles conseguem, de um lado, representar o público geral ao zelar pela qualidade e continuidade da obra, orientá-los sobre os modos de interpretação e decodificação e facilitar o acesso ao consumo; e, de outro, simultaneamente servir à produção ao tomarem parte na divulgação, difusão, defesa da imagem, impacto comercial e social e até mesmo na própria etapa de produção.