• Nenhum resultado encontrado

Fluxograma 1: O lugar do fã dentro do processo produtivo das indústrias culturais

4.2 Teoria transcultural do fandom e fandoms culturais transnacionais

Todas as características da cultura pop, especialmente a sua lógica globalizante, contribuem para a formação de fandoms de países diferentes ao país de origem do texto. Com o recurso da internet, que simplifica o acesso e encurta o tempo de distribuição, são impulsionados o surgimento de gostos e afinidades homólogas mesmo em contextos culturais, linguísticos e sociais variados (CHIN; MORIMOTO, 2013). Se o consumo dos fãs, por definição, resulta em processos interativos e transformativos, o acréscimo das mídias digitais amplia essas interações e apropriações ao nível mundial, onde fandoms regionais interagem, criam, cooperam e distribuem, formando uma só grande comunidade de fãs (JENKINS, 2008; BOOTH, 2010; CHIN; MORIMOTO, 2013). Em suas contradições, essas trocas simultaneamente auxiliam as culturas hegemônicas e as contraculturas, intensificando o processo de globalização cultural (LEE, 2014).

Via tecnologias digitais, os fandoms que cruzam fronteiras se tornaram também mais expostos e relevantes para os teóricos (CHIN; MORIMOTO, 2013; LEE, 2014). Em seu artigo “Towards a theory of transcultural fandom” (Rumo à teoria do fandom transcultural, em tradução livre), Berta Chin e Lori Morimoto (2013, p. 93, tradução minha) objetivam ampliar a discussão dessa temática para além das pesquisas de autores anglo-saxões, que até então deixaram esses fandoms “relegados à periferia dos estudos sobre fandom, e com eles as ideias únicas que oferecem sobre as maneiras pelas quais os fãs interpretam e interagem

com a mídia e entre si em um mercado global de mídia cada vez mais intensivo”69, acrescentando que:

questões sobre como e por que diferentes mídias transfronteiriças capturam a imaginação dos fãs, bem como de que forma os fãs incorporam a mídia em seus próprios contextos culturais populares e quais significados eles atribuem às mesmas, têm o potencial de complexificar e contribuir com nuances para uma disciplina que, em sua iteração no idioma inglês, permaneceu firmemente anglo- americana na orientação (embora relativamente indiferenciada por tudo isso).70

As autoras argumentam que esses fãs se apropriam de objetos internacionais a partir dos meios que dispõem dentro do contexto social de cada um – o que é demonstrado por algumas pesquisas analisadas, como as de Rodrigues (2012) e Pinheiro (2018) sobre lésbicas fãs de séries protagonizadas por mulheres em relações homoafetivas; de Monma (2018) sobre mulheres negras fãs de Beyoncé; ou ainda as menções às práticas de cospobre. Para as autoras, os consumidores se tornam fãs “por causa de um momento de afinidade entre fã e objeto transcultural” (CHIN; MORIMOTO, 2013, p. 104 e 105, tradução minha).71 A nacionalidade (do fã e do texto) é apenas um dos diversos pontos de afinidade possíveis. Dessa forma, Chin e Morimoto (2013) sugerem que esses grupos sejam analisados não mais pela lógica “transnacional”, que implicaria em considerar apenas aspectos nacionais (sócio- históricos, políticos e econômicos), e sim por uma extensão desse termo, chegando à noção de “transcultural”, que, além desses, abrange os fatores de gênero, raça, classe, sexualidade etc. Distinguir fandoms por nacionalidades seria, portanto, tão excludente quanto as distinções por objeto idolatrado (MORIMOTO, 2017).

Ainda que em linhas distintas e distantes, o pensamento de Chin e Morimoto (2013) respalda o de Schneider (2015), que, assim como explicado no capítulo segundo, acredita que o gosto do consumidor só pode ser compreendido em sua completude se consideradas categorias sociais. Essas categorias são o que ele chama de “universos identitários”, determinantes para a nossa interpretação cultural.

69 Do original: “In this way, border-crossing fandoms are relegated to the periphery of fandom studies, and

with them the unique insights they offer about the ways that fans interpret and interact with both media and one another in an ever-intensifying global media marketplace”.

70 Do original: “questions of both how and why different border-crossing media capture the imaginations of

fans, as well as how fans incorporate cross-border media into their own popular cultural contexts and what meanings they attribute to them, have the potential to complexify and contribute nuance to a discipline that, in its English-language iteration, has remained steadfastly Anglo-American in orientation (albeit relatively undifferentiated for all that)”.

71 Do original: “In other words, fans become fans not (necessarily) because of any cultural or national

Lee (2014, p. 195, tradução minha), por outro lado, defende o estudo especificado em nacionalidades – com o termo “fandom cultural transnacional” (transnational cultural

fandom) – justificando que o aspecto nacional pode ser suficiente e favorável para certas

pesquisas, especialmente as que tratam do contexto da globalização frente às mídias digitais. Sendo menos abrangente que o “global”, “transnacional”, representaria a “mobilidade do produto cultural e midiático através das fronteiras nacionais, geográficas, culturais e linguísticas e nos incentiva a examinar o processo atual de movimento e os papéis das comunidades de fãs nele” e a “complexidade da globalização cultural, onde a cultura e a mídia são traficadas em direções plurais por várias agências, incluindo não apenas atores comerciais e governamentais, mas também consumidores culturais que estão virtualmente conectado”.72

Eu gostaria de propor que uma perspectiva transnacional pode beneficiar estudos de fãs ao convidar perspectivas macro e globais. Isso nos lembra que os fãs culturais e da mídia acontecem não apenas nos centros da economia cultural global, mas também em suas periferias. [...] O fandom transnacional poderia ser visto como uma manifestação da globalização cultural, caracterizada pela coexistência de fluxos dominantes e contra o envolvimento de múltiplas agências, incluindo indústrias, governos e fãs, e as desconjunturas causadas pela tensão e contradição entre as forças globalizantes das diferenças. (LEE, 2014, p. 204, tradução minha).

73

A interferência governamental e o consumo fronteiriço de fãs são alguns dos exemplos que corroboram com a proposta de Lee (2014) por estudos priorizando o viés transnacional. A partir de pesquisas anteriores, a autora entende que esse consumo não pode ser separado da percepção e reconhecimento da cultura do país produtor e, com isso, esses

fandoms têm o potencial de atrair a atenção de governos em busca de divulgação e de sua

cultura. Nos últimos anos os fandoms transnacionais se tornam importante objetos de política cultural do que Lee (2014, p. 203) entende por “national branding”, isto é, “uma combinação de diplomacia cultural e política de indústrias culturais”, tendo impacto na imagem

72 Do original: “The concept of 'transnational' concerns the mobility of cultural and media text across

national, geographic, cultural and linguistic borders and encourages us to look into the current process of movement and fan communities' roles in it. Compared with the notion of 'global', 'transnational' is less encompassing or generalising, meaning the complexity of cultural globalization, where culture and media are trafficked in plural directions by multiple agencies including not only commercial and governmental actors but also cultural consumers who are virtually connected”.

73 Do original: “I would like to propose that a transnational perspective can benefit fan studies by inviting

macro and global perspectives. It reminds us that cultural and media fandom takes place not only at the centres of global cultural economy but also at its peripheries. [...] Transnational fandom could be seen as a manifestation of cultural globalisation which is characterised by the co-existence of dominant and contra flows, the involvement of multiple agencies including the industries, governments and fans and the disjunctures caused by tension and contradiction between difference globalising forces”.

internacional, bem como sua legitimação e identidade nacional. É o que Quiona Norberto Santos (2017) respalda ao reportar o apoio de órgãos governamentais sul-coreanos a sites brasileiros sobre K-pop, que exercem importante papel na divulgação do estilo no Brasil. Outro exemplo é a predominância de pesquisas sobre fandoms de produtos estadunidense na amostragem do capítulo anterior. Não há menção ao governo norte-americano financiando diretamente qualquer fandom ou suas práticas, mas é certo que a hegemonia americana foi conquistada com apoio da disseminação dos produtos de suas indústrias culturais, especialmente as hollywoodianas, que usufruía de auxílio e incentivo estatal para tal. O grande consumo de fãs de obras e artistas americanos demonstra que ainda vivemos o efeito desse período, numa espécie de “pós-american way of life” – utilizando o “pós” no mesmo sentido abrangente e respeitando as heterogeneidades históricas de cada nação que Hall (2003b) defende em “pós-colonial”.74 Lee (2014, p. 197, tradução minha) valida essa percepção, entendendo que:

O acesso e o consumo globalizados de filmes, TV e música pop dos EUA são atribuíveis não apenas a fatores de mercado (a economia de escala de seu mercado doméstico, redes avançadas de distribuição global e marketing de alto orçamento), mas também a fatores políticos, econômicos e culturais (poder político e econômico do país e hegemonia cultural da língua inglesa).75

Ela cita as telenovelas latino-americanas, os animes e mangás japoneses e os mais recentes dramas e músicos sul-coreanos como exceção à hegemonia do consumo globalizado de produtos americanos. Por certo, são exatamente essas as produções não estadunidenses que se destacam na nossa amostragem – enquanto as demais possuem estilos altamente americanizados e/ou foram apropriadas pela cultura pop americana (as bandas irlandesa e britânica U2 e Rolling Stones, respectivamente; a cantora canadense Avril Lavigne; e as franquias britânicas Harry Potter e Doctor Who). Ao contrário dos Estados Unidos, países da Ásia e América Latina não dispõem da mesma facilidade de circulação global, encontrando

74 Numa busca por definir pós-colonialismo, Hall (2003, p. 107) explica que: “A Austrália e o Canadá, de um

lado, a Nigéria, a Índia e a Jamaica, de outro, certamente não são ‘pós-coloniais’ num mesmo sentido. Mas isso não significa que esses países não sejam de maneira alguma ‘pós-coloniais’. [...] O que o conceito pode nos ajudar a fazer é descrever ou caracterizar a mudança nas relações globais, que marca a transição (necessariamente irregular) da era dos Impérios para o momento da pós- independência ou da pós-

descolonização. Pode ser útil também (embora aqui seu valor seja mais simbólico) na identificação do que são as novas relações e disposições do poder que emergem nesta nova conjuntura.”

75 Do original: “Globalised access to and consumption of US film, TV and pop music is attributable not

merely to market factors (the economy of scale of their domestic market, advanced global distribution networks and high-budget marketing) but also to political, economic and cultural factors (the country’s political and economic power and cultural hegemony of the English language)”.

desafios (comerciais e culturais) para a entrada em mercados internacionais, dependendo diretamente de práticas voluntárias de fãs (através de traduções, troca de informações, disponibilização de downloads etc.) para que sejam de fato consumidos internacionalmente, como mostram as pesquisas sobre legendas, scanlation, páginas e blogs de fãs. Assim como Florito (2014) e Vieira (2015), Lee (2014, p. 38, tradução minha) posiciona o fã no papel de mediador, precisamente “produto e gatilho de mediação”76 – neste caso, cultural e linguisticamente.

O uso – e incentivo – da Indústria Cultural para função de propaganda governamental é previsto pela EPC. Recapitulando o que foi explicitado em detalhes nos capítulos iniciais: para exercer a mediação entre Estado e público, uma das finalidades essenciais dessa indústria, ela precisa 1) captar a atenção do público e 2) buscar se manter presente na rotina desses. Isso é realizado através da conquista de identificação e empatia dada pela reprodução de um lugar-comum, denominado por Habermas (1981) de mundo da vida (BOLANÕ, 2000). As indústrias culturais conseguem se moldar às formas culturais que desejam atingir, conquistando, ou melhor, acomodando, os mais variados gostos (MARTÍN-BARBERO, 2004; SCHNEIDER, 2015). Isso não implica numa padronização cultural, e sim uma “mundialização de imaginários” a partir de produtos “que representam estilos e valores desterritorializados, aos quais correspondem também novas figuras da memória” (MARTÍN- BARBERO, 2004, p. 60).

A segunda função da Indústria Cultural, não considerada pelas teorias transculturais e transnacionais do fandom é a publicidade, em benefício do capital. Assim como o Estado necessita da mediação comunicacional, cultural e informacional, o capital também faz uso da atenção da audiência para se manter ativo. Neste caso, porém, a prevalência, divulgação ou legitimação de culturas nacionais específicas não são prioridades, sendo ofuscada pelos números de audiência e retorno financeiro. É o caso da exibição do anime Cavaleiros do Zodíaco na Rede Manchete, que, sabendo do sucesso em outros países, trouxe a obra acompanhada de toda uma estratégia mercadológica envolvendo diversos produtos licenciados. O consequente sucesso de Cavaleiros do Zodíaco influenciou demais emissoras a exibir desenhos animados japoneses, abrindo portas para o consumo massivo de animes no Brasil (TRAVANCAS, 2017).

Há aqui uma forte relação com o hibridismo e a mestiçagem cultural, processos distintos que se dão no cruzamento de diferentes culturas e incorporação de seus elementos.

76 Do original: “the fandom can be regarded as a product (and a further trigger) of overseas fan

Enquanto na mestiçagem esses elementos mantêm suas especificidades, tornando-se perceptíveis “numa relação tensa, ambivalente, contraditória”, nas culturas híbridas eles são fundidos num todo único (CATTANI, 2007, p. 67). Seja mestiçagem ou hibridismo, esses processos comprometem todo o consumo cultural, desde a criação até a recepção e subsequente significação dos objetos. Chin, Morimoto (2013) e Lee (2014) salientam que discorrem a partir de experiências próximas às suas realidades, nos dois casos tratando prioritariamente da relação fandom/produto cultural entre leste asiático e Estados Unidos – e, talvez por isso não façam menção à teorias de culturas híbridas ou mestiças, mais comumente relacionadas à realidade da América Latina.

No Brasil, Vieira (2015), Amaral e Tassinari (2016), Nakamura (2017) e Amaral (2016) relacionam fandoms locais com a teoria transcultural, sendo os primeiros sobre

fandoms específicos (Doctor Who, K-pop, e cultura otaku) e a última atendo-se aos contextos

de gênero e idade em fandoms geeks e a subcultura gótica. Amaral (2016), ao final de seu artigo, também sugere a necessidade por aprofundamentos teóricos e novas pesquisas na temática.

Mesmo compreendendo a crítica de Chin e Morimoto (2013), entendo que as questões que esta dissertação procura responder clamam uma abordagem que valorize os contextos sociais, históricos e econômicos do Brasil, sendo a discussão a seguir pautada pela ideia de

fandoms transnacionais, tal qual proposta por Lee (2014). Ainda que haja o interesse por, em

segundo plano, indicar contextos sociais específicos, a abrangência de fandoms mapeados na amostragem e a escassez de dados sociodemográficos das pesquisas analisadas não permitem qualquer generalização nesse sentido além de idade e classe social – dois eixos levantados por Amaral (2016) como fundamentais para a compreensão da cultura pop brasileira, a serem explorados, junto com o eixo da nacionalidade, a seguir.