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Foto 15 Uso misto

1.2 Direito à Cidade e Regularização Fundiária

“O processo de urbanização se apresenta como uma máquina de produzir favelas e agredir o meio ambiente. (...) A cidade legal (cuja produção é hegemônica e capitalista) caminha para ser, cada vez mais, espaço da minoria. O direito à invasão é até admitido, mas não o direito à cidade.” (MARICATO, 2001, p. 39).

Conforme citado anteriormente, as cidades cresceram em dimensões espaciais e na densidade, devido a um processo desordenado de expansão urbana, podendo-se observar que o crescimento populacional não veio acompanhado de condições adequadas de habitabilidade, tanto no que ser refere à moradia (construções feitas com materiais precários), como à oferta de infraestrutura básicas (saneamento e drenagem), à ocupação (morfologia e tipologia) e à propriedade da terra, resultando no agravamento dos problemas sociais e habitacionais.

Conforme Gouvea (1992, p.12),

ao analisarmos, mesmo que superficialmente, o crescimento das cidades brasileiras e a forma de ocupação do solo, verificamos que as forças ligadas ao poder econômico vêm atuando com a conivência do Estado na modificação do traçado e na forma de ocupação do solo, estruturando o crescimento do urbano segundo seus interesses especulativos.

Vale lembrar, ainda, que o uso do solo urbano é disputado pelos vários segmentos da sociedade de forma diferenciada, gerando conflitos entre indivíduos e usos. Conforme Kowarick (1980, p.32),

no processo desordenado de expansão urbana, o setor imobiliário levava adiante a ocupação espacial, guardando imensas áreas mais próximas aos núcleos centrais à espera de valorização, enquanto zonas mais longínquas, sem qualquer infraestrutura, eram abertas para a aquisição das classes pobres.

Assim, com a falta de alternativas habitacionais para as parcelas de baixa renda na cidade legalizada, tanto por parte do poder publico quanto do mercado, essa população mais pobre passou a ocupar as únicas áreas em que legalmente o mercado não pode agir: as áreas de proteção ambiental, como beiras de córregos, mananciais e encostas, bem como áreas públicas reservadas para construção de praças ou equipamentos públicos, entre outros, o que gerou múltiplas irregularidades.

Essas irregularidades assumem várias faces e diversas tipologias.

São favelas resultantes da ocupação de áreas privadas que se encontravam vazias à espera de valorização; favelas em áreas públicas resultantes da ocupação de áreas doadas ao Poder Público por loteamentos; cortiços improvisados em casarões deteriorados e sem as mínimas condições de habitabilidade; loteamentos clandestinos e irregulares; conjuntos habitacionais ocupados e sob ameaça de despejo; casas sem “habite-se” etc. (ALFONSIN, 2006, p.55)

Conforme Sampaio (1999, p.404), a localização das favelas obedece a várias estratégias conforme as características das cidades, destacando a base econômica e distribuição das atividades econômicas, situação fundiária e regime de propriedade, condições geomorfológicas, situação de áreas verdes/abertas de caráter público. Tal autor entende que as áreas favelizadas podem se situar tanto em áreas centrais quanto periféricas, agravadas em suas condições urbanísticas tanto pela inexistência de mercado de trabalho, como pela falta de infraestrutura.

Fernandes enfatiza que

na verdade, assim como nossas cidades são partidas entre territórios formais e informais, a intervenção do Estado nessas duas porções tem sido bastante diversa. As áreas ‘de mercado’ são legisladas e reguladas através de um vasto sistema de normas, contratos e lei, que têm quase sempre como base a propriedade escriturada e registrada, desde o acesso ao crédito até o habite-se final de um empreendimento (....).

Para os mercados informais e irregulares, sobram as terras que a legislação urbanística e ambiental não disponibilizou para o mercado formal: área de preservação, áreas públicas, zonas rurais, áreas non-aedificandi, parcelamentos irregulares, etc. Invisíveis para o planejamento e para a legislação – nem sequer se sabe quantas famílias neste país vivem em assentamentos irregulares (...). A ambiguidade de sua condição jurídica e urbanística torna as comunidades que ali vivem especialmente vulneráveis a políticas clientelistas (FERNANDES, 200-). Ressalta-se que a informalidade urbana ocorre na quase totalidade das cidades brasileiras28, em muitos casos, associada a ocupações de população de baixa renda, que historicamente não teve acesso à produção formal de habitação e é impedida de concretizar

28Conforme Maricato (2001, p.119), o mercado residencial privado legal é restrito a uma parcela da população que em algumas cidades não ultrapassa os 30%. É para ele que a gestão pública urbana orienta seus maiores esforços de manutenção e que a legislação é elaborada: código de obras, leis de parcelamento do solo, legislação de zoneamento etc.

seu direito à cidade (Ministério das Cidades, 2010, p.08).29 Vale ressaltar que a informalidade não está restrita aos pobres30, a classe média/alta está comprando, cada vez mais, lotes ilegais, que ferem a legislação urbana, a exemplo do que ocorre nos condomínios fechados, que vedam o acesso ao sistema viário, às praias etc.31 No entanto, a informalidade entre os mais pobres deve ser prioritariamente enfrentada tendo em vista a segregação social e degradação ambiental decorrente desse processo.

Maricato32 ressalta que a ilegalidade33 é resultado do processo de “urbanização/industrialização” baseado em baixos salários, na tradição especulativa e da legislação excludente e segregadora (MARICATO, 2001, p.156). Conforme a autora, a ilegalidade virou a regra.

De forma a tornar as cidades mais justas e eliminar as desigualdades e a segregação entre os grupos, desde os anos 60, no Brasil, há um movimento pela reforma urbana, que demanda, principalmente, reformas estruturais na questão fundiária.

A partir dos anos 70, já era possível encontrar ações municipais que respeitassem as ocupações ilegais e reconhecessem os direitos das comunidades. No entanto, nessa época, o quadro jurídico em vigor era adverso e não dava suporte pleno aos programas de regularização e os moradores dessas áreas eram tidos como ‘invasores’ (FERNANDES, 2006, p.31).

O movimento de reforma urbana teve seu ápice no reconhecimento do direito à cidade como um importante marco legal34, configurado, na Constituição de 1988, como um novo direito fundamental.

29Este processo de favelização, que ocorre na grande parte das cidades, tem provocado uma grande exclusão de áreas de habitação de padrões urbanísticos não convencionais e de habitabilidade não aceitável, sendo frequente a precariedade das habitações desprovidas de água, rede de esgoto, sem ventilação e iluminação etc. e a irregularidade fundiária, o que gera a permanente ameaça de despejo, por quem não detém a posse legal do terreno em que construiu seu abrigo.

30Smolka (2003, p.264) aponta que embora a pobreza seja responsável por parte significativa dos arranjos informais existentes, a persistência da informalidade não se deve somente a ela, mas também a outros motivos tais como a falta de programas habitacionais, a queda de investimentos públicos em equipamentos e serviços e o esvaziamento do planejamento urbano.

31Conforme Souza, a análise da ilegalidade habitacional remete-se: i) ao “contrato capitalista para a produção e uso de solo”: ocupação ilegal quando não há documentação de propriedade; e ii) à questão normativa – critérios e normas para garantir as condições mínimas de habitabilidade: ocupação irregular quando não obedecem às normas formalmente estabelecidas (SOUZA, 2003, p.415)

32Maricato aborda a questão que a invasão de terras é quase mais regra que exceção nas grandes cidades e que esta ilegalidade não decorre das lideranças que afrontam a lei, mas é resultado do processo de urbanização no país (MARICATO, 2001, p.155).

33Para Rolnik e Saule, legalizar a informalidade “significa a integração dessas populações ao espaço urbano, aumento sua qualidade de vida e resgatando sua cidadania.” (ROLNIK; SAULE, 2002, p.153)

34Saule Júnior (2007) realizou um estudo acerca da trajetória do processo de internacionalização do direito à cidade, com destaque para a Carta Mundial do Direito à Cidade. O autor apontou que, no Brasil, a relação construída entre organização não-governamental, associações profissionais, movimentos populares, entre

Conforme Saule Júnior,

o direto à cidade retrata a defesa da construção de uma ética urbana fundamentada na justiça social e cidadania, ao afirmar a prevalência dos direitos urbanos e precisar os preceitos, instrumentos e procedimentos para viabilizar as transformações necessárias para a cidade exercer sua função social. (SAULE JUNIOR, 2007, p.34). Ainda, segundo tal autor, o direito à cidade tem como elementos os direitos

inerentes as pessoas que vivem nas cidades em ter condições dignas de vida, de exercitar plenamente a cidadania e os direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais), de participar de gestão da cidade, de viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável.” (SAULE JUNIOR, 2004, p.240)

Vale informar que, com a publicação do Estatuto da Cidade, Lei no 10.257/2001, o direito à cidade passou a ser reconhecido no campo jurídico. Este direito foi definido pela referida Lei, como o direito à terra urbana, à moradia digna, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.

Conforme Gazola (2008), tais direitos são assim entendidos:

a) direito à terra urbanizada, onde se insere o direito à simplificação da legislação de parcelamento, uso do solo e das normas edilícias com fim a permitir a redução dos custos e aumento de oferta dos lotes e unidades habitacionais; à regularização urbanística de áreas ocupadas por população de baixa renda (mediante o restabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação de solo e edificação e consideradas a situação socioeconômica da população e normas ambientais); à promoção da regularização das ocupações e viabilização da titulação dos lotes;

b) direito à moradia, por meio da promoção de ações que viabilizem o acesso à moradia segura com realização de obras físicas de melhorias habitacionais; intervenção em áreas de risco; remoção de áreas não passíveis de eliminação de risco para áreas no entorno; utilização de instrumento de utilização compulsória de imóvel urbano, buscando a promoção humana a partir da moradia digna e segura;

c) direito ao meio ambiente equilibrado, que implica direito ao saneamento ambiental; proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, historio, artístico, paisagístico; promoção de melhorias nas condições de salubridade e habitabilidade (...);

d) direito à infraestrutura urbana, que inclui o direito à oferta e acesso aos equipamentos urbanos e comunitários, transportes e serviços públicos e que estes sejam adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais, de forma a proporcionar, por meio de melhorias das condições de circulação viária, a implantação de serviços de transporte coletivo, coleta de lixo assim como o acesso a ambulâncias e veículos da polícia;

e) direito ao trabalho, por meio da promoção da melhoria das condições socioeconômicas da população, por meio de mecanismos integrados que permitam a capacitação profissional (...);

f) direito ao lazer, pela preservação e criação de áreas públicas de convivência e lazer, assim como pelo estímulo e promoção de projetos culturais e esportivos;

outros, adotaram uma plataforma de reforma urbana, para mudar a realidade de segregação e discriminação e

desigualdade nas cidades brasileiras, sendo o direito à cidade carro chefe da reforma urbana. (SAULE JUNIOR, 2007, p. 28 e 29).

g) garantia dos direitos acima às futuras gerações mediante compromisso com o atingimento dos objetivos ao longo do tempo com a criação de novas perspectivas e hábitos que contribuam para a melhoria e manutenção de bons índices sociais e de segurança pública;

h) integração e interdisciplinaridade no planejamento e execução das políticas públicas necessárias à inclusão social (GAZOLA, 2008, p. 109 a 111)

Saule Júnior entende que o direito à moradia é o núcleo central do direito a cidades sustentáveis “em razão dos dois direitos a serem respeitados disporem dos mesmos elementos: como o acesso à terra urbana, moradia adequada, saneamento ambiental, infra- estrutura urbana, transporte e serviços públicos” (SAULE JÚNIOR, 2004, p.243). O autor entende, ainda, que como núcleo central o direito à moradia também remete ao direito de “serem adotados nos projetos de urbanização dos assentamentos informais, com as favelas, os padrões de uso, ocupação do solo e de edificação decorrentes dos usos e costumes da comunidade.” (SAULE JÚNIOR, 2004, p.243).

Nesse contexto, com vistas à garantir a efetividade do “direito à moradia” e do “direto à cidade”, os programas de regularização fundiária são os meios para possibilitar a integração socioambiental dos assentamentos. Tais ações englobam intervenções públicas sob os aspectos jurídicos, físicos e sociais, envolvendo desde a provisão direta de bens coletivos, serviços públicos e infraestrutura até a regulamentação minuciosa da construção civil e da utilização das edificações urbanas.

Os programas de regularização visam promover, ao mesmo tempo, segurança jurídica da posse dos moradores e integração socioespacial das áreas e das comunidades. No entanto, para que a regularização seja sustentável, a legalização e a urbanização têm que caminhar juntas. Sobretudo, não bastam políticas isoladas, setoriais, sem recursos e erráticas (FERNANDES; PEREIRA, 2010, p.185).

Importante destacar que a urbanização é uma das dimensões essenciais dos programas de regularização fundiária e tem como finalidade promover melhorias nas condições de habitabilidade e de infraestrutura dos assentamentos que serão regularizados. A regularização, sob o aspecto urbanístico, é “viabilizada através de saneamento, salubridade, acessibilidade e segurança compatíveis com o meio urbano” (BUENO; MONTEIRO, 2006, p.193).

Já o aspecto jurídico visa atribuir o domínio ou posse da terra, de forma a conferir segurança aos ocupantes de terras que legalmente não lhes pertencem. No entanto é importante frisar que “a mera distribuição de títulos, todavia, sem a necessária intervenção urbanística, pode resultar na perpetuação da precariedade” (DIAS, 2008, p.143). E as ações

de urbanização, sem as devidas entregas de títulos, também podem ser prejudiciais, podendo gerar futuros despejos.

Dias ressalta, ainda, que a despeito da relevância das dimensões física e sociais,

muitos programas governamentais indicam uma preocupação exclusiva com a distribuição de títulos, uma vez que tal política não demanda grandes investimentos públicos, mas pode render bons dividendos eleitorais. Com efeito, a titulação do domínio não encerra sequer a dimensão jurídica da regularização, caso não seja acompanhada de medidas capazes de enfrentar o problema do registro do parcelamento. (…) Assim é que exsurge a importância do zoneamento especial de interesse social, um instrumento que viabiliza o registro de parcelamentos fora dos padrões ordinariamente admitidos pela legislação, sem que se descuidem dos aspectos de segurança, de higiene, de salubridade, enfim, das condições de habitabilidade das moradias. (DIAS, 2008)

Para Fernandes e Pereira (2010, p. 185), o princípio jurídico básico das políticas de regularização fundiária de interesse social35 é garantir – por questões pragmáticas, financeiras, sociopolíticas e jurídicas – que as comunidades fiquem onde estão, naturalmente em condições melhores, e que tenham seus direitos reconhecidos. Ressalta-se, no entanto, que isso não significa dizer que não existam casos específicos onde a remoção de parte das comunidades seja necessária36.

Por fim, vale citar que a concretização do direito à cidade é uma tarefa árdua, mas pode ser obtida por meio de ações de regularização fundiária que envolvam a regularização jurídica, pela segurança de posse, e urbanística, com a integração socioespacial dos assentamentos.