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Na nossa pesquisa, em torno do complexo jurídico de Macau, descobrimos, uma outra forma de exercer o direito, constituindo-se este, como mais uma peça deste xadrez em que se regulam, as relações das várias populações que fazem parte da comunidade Macaense.

Falamos do direito advocatício246, que deambula entre a legalidade das instituições que lhe dão cobertura – mesmo que involuntária – e a ilegalidade do tráfico de influências, que em Portugal muitos referem existir ao nível do poder local.

―Por um lado, e tal como sucede com a actividade judicial, a actividade advocatícia assume em Macau grande especificidade sociológica, sobretudo se [esta] se comparar com a actividade advocatícia em Portugal. Por outro lado, essa actividade tem uma relação contraditória com o direito vigente, uma vez que ocorre frequentemente à margem ou apenas próxima dele sem que, contudo, a ilegalidade ou a paralegalidade sejam queridas enquanto tais mas apenas porque pragmaticamente criam uma legalidade aparente ou fictícia que, nas condições sociológicas de Macau, pode funcionar quase sempre como legalidade real‖247.

De qualquer forma, salientar que este direito paralelo – tal como outros – existe, é praticado248, aceite e parece funcionar, ainda que tenha um custo acrescido para quem recorre a este tipo de actuação - um pouco à imagem de quem estaciona o seu automóvel, e além de pagar o parqueamento, é obrigado a deixar mais uma moedinha ao arrumador.

“Quase todos os escritórios têm um funcionário em posição de destaque, chinês ou macaense, dominando a língua local e influente na angariação de clientes. Este tipo de funcionário é conhecido pela designação de siée, que significará em chinês «quase- advogado» ou «braço direito do advogado». A ele compete fazer a primeira triagem da

246 ―Estas duas características convergem na criação daquilo que designamos por direito advocatício, um direito paralelo, não oficial, que constitui uma das dimensões importantes do pluralismo jurídico de Macau. Sendo um direito paralelo, «corre» em princípio ao lado, ora distante ora próximo, do direito oficial, mas amiúde intersecta-se e combina-se com este, dando origem a «formações jurídicas» mistas, por vezes tão complexas que se torna difícil determinar com precisão onde acaba o direito oficial e começa o direito paralelo‖. Ib. ibidem., pp. 362-363.

247

Cf., Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, op. cit. p. 362.

248 ―Para além de diferenças formais mais ou menos importantes, sobrepõem-se muitas vezes as áreas de criação do direito advocatício por parte dos advogados, por um lado, e por parte dos solicitadores e procuradores, por outro. (...) a intermediação que os advogados desenvolvem entre a Administração e a sociedade chinesa pressupõe, por sua vez, uma intermediação entre os próprios advogados e os seus clientes”. Ib. ibidem., p. 364.

procura sócio-jurídica, resolvendo por si alguns casos mais simples, e a maioria da actividade de procuradoria (...)‖249.

A apresentação do pluralismo jurídico existente em Macau – momento específico - descreve o direito advocatício, como algo de funcional, de intervenção quase social, qual causa pública, no sentido em que abarca as diferentes comunidades, salientando-se o caso do direito de Hong Kong, aplicado - amiúde - na resolução de conflitos250.

Esta vertente jurídica, descrita como direito advocatício, que à partida nos pode parecer redutora - com laivos estritamente economicistas - traduz na prática o salutar relacionamento que existe no seio das várias comunidades, que proliferam por terras do oriente.

Existe uma empatia natural, entre os criadores do direito advocatício e os clientes que recorrem a este tipo de regulação jurídica, decorrente da especificidade do território, das divergências, sociais, culturais, religiosas e linguísticas; como forma de colmatar o hiato da distância, e a bicefalia da cidade-estado que foi Macau251, em que os funcionários prestam um serviço discreto e de confiança.

“Este funcionário está social e culturalmente muito mais próximo da cultura, da linguagem e dos problemas dos clientes. Entre estes e ele é possível desenvolver rapidamente uma relação de confiança (...)”252.

Referir apenas que estas práticas, são transversais – a todo – o poder judicial. “No caso dos advogados que trabalham na área do direito penal, a intermediação assume a forma do cambão. Grande parte dos angariadores de clientes não são funcionários seus. São em regra funcionários do tribunal, guardas prisionais ou polícias. Em 1991 recebiam, em geral, 30% dos honorários acordados (...)‖253.

249 Cf., Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, op. cit. p. 364. 250

“Num contexto socioeconómico dominado por uma forte actividade comercial, não é de todo razoável que matérias como a responsabilidade dos comerciantes ou a forma da constituição e funcionamento das sociedades comerciais sejam reguladas por legislação do século passado [XIX]. O código Comercial em vigor, que inclui a regulação das sociedades anónimas e em comandita, foi aprovada em Portugal em 1881, e a sociedade por quotas em 1901. Não surpreende por isso, como se verá, que nesta matéria a legislação de Hong Kong seja mais conhecida e usada em Macau que a portuguesa”. Ib. ibidem., p. 82. 251 Uma pequena descrição histórica, da posição assumida por Portugal, na fase de negociações em relação

ao futuro do território de Macau - o Poder Político retrata a imagem resignada de quem, pouco, nada quer ou pode fazer - “Macau parecia um território ingovernável. Foi nessa época que o próprio Presidente da

República, Mário Soares, proferiu a seguinte frase: (...) Não posso governar Macau a 18 mil quilómetros de distância. Ao mesmo tempo, o Primeiro-ministro Cavaco Silva garantia nada saber e nada querer saber dos assuntos do Território. (...) Uma espécie de fardo que nem os próprios titulares dos órgãos de soberania portugueses queriam assumir sobre os seus ombros. (...) Eram os tempos em que o poder parecia dissolver-se na rua. Pairava no Território uma atmosfera de fim de Império (...)”. cit. Pedro

Correia, jornalista do Ponto Final, a 3 de Maio de 1996. In Boaventura de Sousa Santos e Conceição Gomes, op, cit., pp. 57-58

252

Cf., Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, op. cit. p. 364. 253 Ib. ibidem., p. 365.

O DIREITO DAS SEITAS

Outra das formas de actuação – de índole subversiva – do direito, que nos surge representada no universo das sociedades secretas, dão pelo nome de seitas, que assumem um papel254 preponderante nas sociedades chinesas, neste caso particular de Macau255.

―O nome de seita é talvez mais adequado, mas evoca, com demasiada saliência, a dimensão religiosa destas associações, uma dimensão sem dúvida presente mas não dominante. Por seu lado, a designação triad – ou «tríade», como vai sendo comum usar em Macau – é igualmente incorrecta na medida em que se trata da generalização do nome de uma sociedade secreta, assim chamada por o seu emblema ser um triângulo cujos vértices são o céu, a terra e os homens‖256.

Passemos à descrição de algumas das áreas, em que as seitas actuam, relatando a forma engenhosa como estas resolvem os diferendos entre as populações locais; nunca esquecendo que apesar de coerciva, imposta e musculada, dão frutos e são reconhecidas - inter pares - como um instrumento257 válido de direito, entre as gentes de Macau.

―As sociedades secretas foram sempre, sobretudo nos séculos XIX e XX, uma força de oposição total – política, religiosa, social e ideológica - aos poderes constituídos na China e, portanto, foram utilizadas por aqueles que procuram desalojar esses poderes, fossem eles os camponeses revoltados contra a dinastia Ch‟ing e os estrangeiros no seguimento da guerra do ópio e dos «tratados desiguais» a que a China foi humilhantemente sujeita, fossem eles os republicanos de Sun Yat Sen que em 1911 destronaram finalmente a dinastia manchu, fossem eles Mao Zedong a pedir em 1936 o apoio da sociedade secreta Ko-Lao-Hui (Irmãos Mais Velhos) na luta contra o invasor japonês‖258.

A actuação das seitas, a sua importância e posicionamento na milenar sociedade

254 ―As seitas só podem ser compreendidas à luz da filosofia tradicional chinesa – o confucionismo e as suas concepções do mundo, do homem e da sociedade -, uma tradição de que fazem parte integrante, ainda que tenham lutado contra alguns aspectos dela a partir de correntes religiosas minoritárias, sejam elas o budismo, trazido da Índia, ou o taoísmo‖. cit. Chesneaux (1971:188), in Boaventura Sousa Santos e

Conceição Gomes, op. cit., p. 467.

255

―As sociedades secretas são em Macau conhecidas pelo nome de seitas e em Hong Kong de triads.

Qualquer destes nomes é pouco correcto, como de resto o de sociedades secretas (...)‖. Cf., Boaventura

Sousa Santos e Conceição Gomes, op. cit. p. 467.

256 Idem. 257

―A actuação das seitas no domínio dos despejos e das desocupações - como, de resto, noutros domínios,

como, por exemplo, o da cobrança de dívidas – constitui uma das muitas formas de pluralismo jurídico detectáveis em Macau, neste caso entre o direito oficial que sustenta a actividade do tribunal e a normatividade paralela das seitas que oferece uma «alternativa» eficaz a quem dela se pode aproveitar”.Ib. ibidem., p. 257.

chinesa, tem especificidades259 próprias, que à partida poderão causar alguma estranheza, quando analisadas segundo as correntes e perspectivas eurocêntricas da velha europa, construída sob os pilares da igreja cristã, e das ramificações judaico-católico-protestante.

Neste sentido, temos de reter algumas ideias sobre a sua actuação em Macau, ―(...) as seitas tiveram sempre a sua base social nas classes oprimidas. (...) a sua actuação foi sempre favorecida pela enorme distância social e política do Estado em relação às classes populares e, de algum modo, ocupou espaços de regulação social deixados vazios por via dessa distância (...)"260.

Curiosa, a relação entre as seitas e o poder vigente – um pouco à imagem do nivelamento vertical das castas na Índia – apesar de ser contestado, acaba por ser aplicado no âmbito interno, reflectindo um estilo de vida - próprio - das regiões envolventes, um pouco à imagem, do místico Oriente, que sempre fascinou as gentes da velha Europa.

"As seitas assumiram sempre uma atitude de oposição à ordem estabelecida mas, curiosamente, e por algum processo mimético, acabaram sempre por reproduzir essa ordem no seu próprio interior. (...) essa ordem interior funcionou sempre como uma ordem jurídica paralela, com normas minuciosas e meios de coerção organizados. Esta ordem paralela assumiu-se sempre numa situação de pluralismo jurídico conflitual com a ordem jurídica oficial‖261.

Nunca esquecendo, que pelo velho Continente, alguns dos Estados mais fortes, cresceram – igualmente - na penumbra de ―movimentos restritos e ou secretos‖ como a Maçonaria, Carbonária, Opus Dei, Ordem de Santiago, Ordem dos Templários, Ordem de Jesus; ou o Estado do Vaticano.

A realidade da sociedade macaense, reflecte desta forma, um sentimento antagónico - na avaliação de actuação das seitas – dentro do pluralismo262 jurídico, que advém de várias circunstâncias; decorrente das várias influências sofridas ao longo da história, fruto das relações euro-asiáticas e da dupla Guerra Fria que assolou a Ásia- Pacífico.

259“Esta articulação complexa de direitos simultânea ou sequencialmente vigentes testemunha a complexidade do pluralismo jurídico de Macau. Do ponto de vista sociológico, o direito das seitas é um direito paralelo com uma normatividade própria (que, por exemplo, fixa os montantes de indemnização), com mecanismos específicos de resolução de conflitos e com meios de coerção eficazes por mais repugnantes que sejam”. Cf., Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, op. cit. p. 484.

260

Ib. ibidem., p. 475. 261 Idem.

262 Idem., ―(...) Nestas condições existe dentro da sociedade chinesa grande ambivalência em relação às seitas. Por um lado, são temidas, por outro, são consideradas parte da cultura ancestral. As classes populares continuam a ser simultaneamente a sua base de recrutamento e as suas vítimas mais comuns