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O direito como fenômeno ideológico

O Direito, por definição, é a manifestação estatal através da qual é realizada a regulamentação da conduta social, que tem por objetivo realizar uma função preventiva, ou seja, busca evitar que na sociedade aconteçam conflitos de interesses entre os cidadãos. Caso a função preventiva não consiga alcançar seu fim, entra em cena a segunda função do Direito, que é a compositiva, e significa dizer que o Estado, por ter o monopólio da força, irá resolver o conflito de interesses através de uma decisão judicial, a qual deverá ser obedecida, sob pena de uma represália do Estado contra o particular que não a acatar.

O que o Direito busca é assegurar a paz social, através da normatização das condutas consideradas saudáveis pela sociedade, ou daqueles fatos considerados um ultraje aos cidadãos, sendo estes últimos punidos com uma sanção previamente definida por lei. Essa construção jurídica tem por objetivo tutelar o maior número de interesses possíveis, evitando-se, assim, os conflitos de interesse, ou a lesão ao patrimônio de qualquer cidadão, além dos seus direitos imateriais.

A jurisdição tem por característica básica a anterioridade da lei, o que significa dizer que a população sabe previamente quais condutas são rechaçadas pelo Direito; assim, não existe a possibilidade da argüição do desconhecimento da lei ante um ato lesivo que prejudique um cidadão, visto que as emanações do Estado referentes ao Direito devem ser publicadas – fenômeno em que é dado conhecimento à população sobre o teor das normatizações.

Essas emanações do Estado, por sua própria definição, são escolhas normativas feitas pelo governo de um determinado grupo social, implicando juízos de valor, que buscam sempre atingir os princípios ideológicos que regem o Direito, quais sejam a segurança e certeza jurídica.

Chauí (2004, p. 82), analisando a relação entre Estado, dominação e Direito, segundo a perspectiva de Marx, faz observação interessante:

Através do estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de direito”. O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não-violenta deve ser aceita. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados, e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta, fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos.

É dentro do contexto explicitado por Chauí que se pode perceber a relação existente entre o licenciamento ambiental e os assentamentos rurais de reforma agrária no Estado de Minas Gerais, ou seja, a partir do momento em

que as normas jurídicas se revestem de dominação, elas passam a mascarar problemas que, se analisados sob a ótica dos atores sociais participantes da reforma agrária, poderiam dar ensejo (e às vezes dão) ao descrédito do Estado, porque nem todas as normas jurídicas são tidas por boas ou justas, haja vista os conflitos de interesses implícitos na própria lógica do capitalismo (por um lado se encontram os donos dos meios de produção, que querem manter seu poder, e de outro se encontram os proletários, que lutam para poder participar da distribuição das riquezas produzidas).

Assim, infere-se que, para que o Direito seja aceito, respeitado e eficaz, é necessário que ele se coadune com a realidade social do grupo para o qual o este foi legislado. Isso significa dizer que o Direito guarda relações estreitas com o conteúdo político da época em que está condicionado; por isso, Wolkmer (2003, p. 156) afirma que “as ideologias jurídicas tem reproduzido, em cada época e em cada lugar, fragmentos parcelados, montagens e representações míticas que revelam a retórica normativa e o senso comum legislativo de um modo de produção predominante”. O autor continua, afirmando que:

Não será demais ressaltar que todo Direito, enquanto pretensão de formar um direito justo, exige ser universalmente válido e perene. Entretanto, nenhum direito está de fato à altura desta reivindicação, todo o Direito é particular, não realiza o verdadeiro interesse geral, mas apenas o interesse médio uma classe minoritária; todo Direito é temporário, apenas transitoriamente constitui a expressão legitima das condições adequadas de desenvolvimento da sociedade. Todo Direito é ideológico, porque na sua reivindicação desconhece sempre seu condicionamento social e histórico (WOLKMER, 2003, p. 156).

A ideologia se expressa no Direito de duas formas básicas: a primeira relaciona-se às escolhas legislativas que são por excelência valorativas, estando impregnadas da ideologia que melhor convier ao momento histórico; já a segunda diz respeito à exegese jurídica, ou seja, sua interpretação, principalmente quando existir uma expressão normativa ou quando o próprio texto da lei chamar à baila o discernimento do magistrado. Nesse sentido, Wolkmer (2003, p. 156) ensina que:

Tanto a hermenêutica jurídica quanto os diversos métodos de interpretação tornam-se campo privilegiado dos discursos ideológicos que objetivam ocultar as dimensões reais da lei, pautando por sua suposta neutralidade e objetivação.

No caso deste estudo, não será considerada a segunda vertente, a da interpretação, porque pretende-se realçar que é o Direito o primeiro obstáculo à consecução da reforma agrária em Minas Gerais, em decorrência direta da vontade legislativa que confeccionou as normas ambientais mineiras com as restrições nelas existentes, de forma que os entraves práticos presentes no procedimento de licenciamento ambiental no Estado de Minas Gerais são resultantes diretos do próprio texto da lei e da ideologia presente nele.