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VI. Os limites à troca de informações fiscais

3. Os direitos fundamentais

3.1. O reconhecimento e a protecção dos direitos fundamentais na ordem

3.2.1. O direito de propriedade

O artigo 17.º da CDFUE preceitua o seguinte:

“Artigo 17.º

Direito de propriedade

1. Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente

adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém

pode ser privado da sua propriedade, excepto por razões de utilidade pública, nos casos e

condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respectiva perda, em tempo útil.

A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse

geral.

2. É protegida a propriedade intelectual.”

No âmbito das Anotações relativas à CDFUE229, é referido o seguinte a propósito deste

artigo, na parte que aqui importa destacar:

“Trata-se de um direito fundamental comum a todas

229 As Anotações relativas à CDFUE estão publicadas no JOUE, série C, n.º 303, de 14 de Dezembro de 2007, pp. 17-35. Como

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as constituições nacionais, que foi repetidamente consagrado pela jurisprudência do Tribunal de

Justiça (…), nos termos do n.º 3 do artigo 52.º

[da CDFUE]

, este direito tem um sentido e um

âmbito iguais aos do direito garantido pela CEDH, não podendo ser excedidas as restrições nela

previstas.”

Ora, o Protocolo adicional n.º 1 à CEDH estatui o seguinte no seu artigo 1.º:

“Artigo 1.º

Protecção da Propriedade

Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém

pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições

previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional.

As condições precedentes entendem-se sem prejuízo do direito que os Estados possuem

de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de

acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras

contribuições ou de multas.”

Este preceito começa por declarar e reconhecer o direito de propriedade e, logo de seguida, prevê restrições a este direito fundamental, entre outras possibilidades, por via da tributação.

O TEDH tem considerado que neste artigo da CEDH estão compreendidas três regras230:

a) a primeira regra, plasmada no primeiro período do primeiro parágrafo, enuncia o princípio geral de respeito pela propriedade;

b) a segunda regra, positivada no segundo período do primeiro parágrafo, prevê a possibilidade de privação da propriedade por utilidade pública, subordinada às condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional;

anotações destinadas a orientar a interpretação da CDFUE; norma esta que é reafirmada no intróito das próprias Anotações, sendo aí referido que embora elas não tenham em si força de lei, constituem um instrumento valioso de interpretação destinado a clarificar as disposições da CDFUE.

230 Ver o acórdão de 23 de Setembro de 1982, caso Sporrong e Lönnroth c. Suécia, processos n.ºs 7151/75 e 7152/75, disponível

c) a terceira regra, inserta no segundo parágrafo, atribui aos Estados o poder de regulamentar o uso dos bens, em conformidade com o interesse geral, para assegurar o pagamento quer de impostos ou outras contribuições, quer de multas.

Ainda segundo o TEDH, estas três regras, embora distintas, estão interligadas, pois a segunda e a terceira regras, na medida em que permitem restrições ao direito de propriedade, devem ser interpretadas e aplicadas à luz do princípio geral enunciado na primeira regra231.

Assim, qualquer ingerência no direito de propriedade, incluindo a resultante de uma medida tendente a garantir o pagamento de impostos, deve manter um justo equilíbrio entre as exigências do interesse geral da comunidade e os imperativos da protecção dos direitos fundamentais do indivíduo. A necessidade de alcançar tal equilíbrio está bem patente na forma como está globalmente estruturado aquele artigo 1.º, dele decorrendo, pois, que deve existir uma relação de proporcionalidade entre os meios empregues e o fim pretendido232.

O TEDH tem, efectivamente, interpretado a defesa do interesse público em sentido amplo, considerando que tal defesa é válida se existe um equilíbrio justo entre o interesse geral da comunidade e os direitos dos indivíduos. Como indicador desse equilíbrio, o TEDH toma em consideração o princípio da proporcionalidade, resultando da respectiva aplicação ao âmbito fiscal que o limite último à restrição do direito de propriedade, nesta sede, reside na circunstância de as medidas que forem adoptadas não conduzirem a uma real situação de confisco.

A este propósito, ADRIANO DI PIETRO233 refere que, atenta a redacção dada àquele

artigo 1.º, as possibilidades de êxito na sua invocação em matéria fiscal são muito escassas, pois a reserva contida no seu parágrafo segundo levou a que os juízes do TEDH reconhecessem aos Estados uma margem de apreciação e decisão sensivelmente mais ampla no campo da

231 Ver o acórdão de 21 de Fevereiro de 1986, caso James e outros c. Reino Unido, processo n.º 8793/79, disponível em

http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=79634387&skin=hudoc-en&action=request.

232 Ver o acórdão de 23 de Fevereiro de 1995, caso Gasus Dosier-und Fördertechnik GMBH c. Holanda, processo n.º 15375/89,

disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=79634387&skin=hudoc-en&action=request.

233 ADRIANO DI PIETRO, “El principio de igualdad: la influencia en el sistema fiscal italiano del artículo 14 de la convención europea

de derechos del hombre y del artículo 26 de la convención internacional de derechos civiles y políticos”, Revista de Derecho Financiero y de Hacienda Pública, Vol. 48, n.º 250, octubre – diciembre de 1998, Madrid, Edersa, p. 782.

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fiscalidade do que em outras matérias234. Como salienta PHILIP BAKER235, até há pouco tempo

atrás, existiam apenas duas decisões em que os recorrentes haviam tido êxito na invocação da protecção concedida por este artigo 1.º em matéria fiscal236; em ambos os casos, as

administrações fiscais haviam exercido amplíssimos poderes discricionários sem que tivesse existido um adequado controlo jurisdicional e sem que tivessem sido concedidas aos particulares as apropriadas garantias procedimentais e processuais, tendo sido essa ausência de controlo o factor determinante para decidir que as medidas adoptadas pelos Estados não eram justificadas e, portanto, não podiam ser consideradas como consubstanciando restrições legítimas ao direito de propriedade237.

Relativamente aos procedimentos de troca de informações fiscais entre os Estados- membros da União Europeia, já vimos que decorre do segundo parágrafo do artigo 1.º do Protocolo adicional n.º 1 à CEDH que o pagamento de impostos é uma das formas legítimas de restringir o direito de propriedade. Ora, a expressão “

assegurar o pagamento de impostos”

contida naquele preceito deve ser interpretada no sentido de abranger quer as medidas que permitam concretizar a liquidação dos impostos, quer as medidas concretamente estabelecidas para a respectiva cobrança. Assim, os procedimentos de trocas de informações fiscais, enquanto meios aptos à obtenção de dados sobre as actividades desenvolvidas pelos contribuintes que realizam operações transfronteiriças, visando a correcta liquidação dos impostos, estão

234 O TEDH reconhece mesmo que um Estado, especialmente quando elabora e executa uma política em matéria fiscal, goza de uma

ampla margem de apreciação, respeitando este Tribunal a decisão tomada nesse âmbito pelo legislador, salvo se esta carecer de uma base razoável (cfr. acórdão de 23 de Outubro de 1997, caso The National & Provincial Building Society, The Leeds Permanent Building Society and The Yorkshire Building Society c. Reino Unido, processos n.ºs 21319/93, 21449/93 e 21675/93, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp 197/portal.asp?sessionId=79634387&skin=hudoc-en&action=request).

235 PHILIP BAKER, “Taxation and the European Convention on Human Rights”, British Tax Review, 2000, Number 4, London, Sweet &

Maxwell, p. 228.

236 Ver o acórdão de 22 de Setembro de 1994, caso Hentrich c. França, processo n.º 13616/88, disponível em

http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=79634387&skin=hudoc-en&action=request, e o acórdão de 1 de Abril de 1999, caso Lemoine c. França, processo 26242/95, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=79634387&skin=hudoc- en&action=request.

237 Posteriormente a essas decisões, o TEDH já proferiu outras onde declarou que diversas medidas adoptadas em matéria fiscal

consubstanciavam violações do artigo 1.º do Protocolo adicional n.º 1 à CEDH, sendo disso exemplo as seguintes: o acórdão de 16 de Abril de

2002, caso SA Dangeville c. França, processo n.º 36677/97, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=

79634387&skin=hudoc-en&action=request; o acórdão de 3 de Julho de 2003, caso Buffalo SRL c. Itália, processo n.º 38746/97, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=79634387&skin=hudoc-en&action=request; e o acórdão de 22 de Julho de 2003, casos SA Cabinet Diot e SA Gras Savoye c. França, processos n.ºs 49217/99 e 49218/99 disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/ portal.asp?sessionId=79646027&skin=hudoc-en&action=request.

abrangidos pela aplicação daquela norma238. Deste modo, uma vez que esta restrição ao direito

de propriedade deve ser interpretada e aplicada à luz do princípio geral do respeito pela propriedade, as medidas concretamente adoptadas no âmbito dos procedimentos de troca de informações devem ser submetidas ao estrito controlo do princípio da proporcionalidade entre as exigências do interesse público e os imperativos da protecção deste direito fundamental239.