• Nenhum resultado encontrado

VI. Os limites à troca de informações fiscais

3. Os direitos fundamentais

3.1. O reconhecimento e a protecção dos direitos fundamentais na ordem

3.2.2. O direito à tutela jurisdicional efectiva

A imposição de obrigações às instituições europeias e aos Estados-membros da União Europeia, por um lado, e a atribuição de direitos directamente aos cidadãos, por outro, não teriam qualquer eficácia prática se estes não pudessem fazer valer esses direitos em juízo, a fim de garantir o respeito que lhes é devido seja por parte das instituições europeias, seja por parte dos Estados-membros, pois

“o respeito do Direito não se concebe sem a possibilidade de os

cidadãos poderem accionar os seus direitos em juízo”

240.

Por esse motivo, o TJUE, desde finais da década de 60 do século passado, afirmou o princípio da tutela jurisdicional efectiva

“que deve, antes de mais, ser entendido, por um lado,

como uma forma de compensar o défice judiciário da União Europeia e, por outro lado, de

contribuir para a construção de uma Comunidade e de uma União de direito e para o aumento

da democraticidade da justiça.”

241

Posteriormente, a partir da década de 80, o TJUE passou a qualificar o princípio da tutela jurisdicional efectiva como um direito fundamental baseado nas tradições constitucionais dos Estados-membros e na CEDH242.

238 Neste sentido, FERNANDO FERNÁNDEZ MARÍN, La tutela de la Unión Europea…, pp. 113-114.

239 Neste sentido, idem, ibidem, pp. 118-119.

240 ANA MARIA GUERRA MARTINS, Curso de Direito Constitucional…, p. 453.

241 ANA MARIA GUERRA MARTINS, Curso de Direito Constitucional…, p. 451.

Ver os seguintes acórdãos do TJUE, todos disponíveis em www.eur-lex.europa.eu: acórdão de 19 de Dezembro de 1968, Salgoil c. Ministério do Comércio Externo de Itália, processo 13/68; acórdão de 11 de Fevereiro de 1971, Rewe-Zentrale des Lebensmittel-Grobhandels GmbH c. Hauptzollamt Emmerich, processo 37/70; e acórdão de 19 de Dezembro de 1976, Comet, processo 45/76.

242 Neste sentido, ver o acórdão de 15 de Maio de 1986, Marguerite Johnston c. Chief Constable of the Royal Ulster Constabulary, cit.,

no qual é afirmado o seguinte: “O controlo jurisdicional (…) é a expressão de um princípio geral de direito que está na base das tradições constitucionais comuns dos Estados-membros. Este princípio foi igualmente consagrado pelos artigos 6.º e 13.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 4 de Novembro de 1950. Como foi reconhecido pela declaração comum

89

O artigo 6.º da CEDH, epigrafado

“Direito a um processo equitativo”

, estatui o seguinte no seu n.º 1, na parte que aqui importa reter:

“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa

seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e

imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e

obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal

dirigida contra ela.”

Por seu turno, o artigo 13.º da CEDH, sob a epígrafe

“Direito a um recurso efectivo”

, dispõe o seguinte:

“Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente

Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo

quando a violação tiver sido cometida por pessoas que actuarem no exercício das suas funções

oficiais.”

Resulta, assim, inequivocamente consagrado na CEDH, enquanto direito fundamental, o direito à tutela jurisdicional efectiva.

Contudo, atenta a redacção do citado artigo 6.º, que alude à necessária intervenção de um Tribunal para decidir quer sobre a determinação dos direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal, coloca-se a questão de saber se esta norma convencional é aplicável no caso de estarem em causa direitos e obrigações emergentes da legislação fiscal.

A este respeito, a posição que, desde sempre, foi adoptada pelo TEDH é no sentido de considerar que este artigo 6.º não era aplicável a matérias de índole fiscal, porquanto estas não tinham cabimento no âmbito da determinação dos direitos e obrigações de carácter civil243.

No entanto, embora esta posição não tenha sido abandonada, sofreu alguma mitigação com o caso

Ferrazzini c. Itália

244, no âmbito do qual os juízes do TEDH se dividiram quanto a esta

da Assembleia, do Conselho e da Comissão, de 5 e Abril de 1977 (JO C 103, p. 1) e pela jurisprudência do Tribunal, convém ter em conta, no quadro do direito comunitário, os princípios em que se inspira essa convenção.” Ver, ainda, os seguintes acórdãos do TJUE, disponíveis em www.eur-lex.europa.eu: acórdão de 15 de Outubro de 1987, Union Nationale des Entraineurs et Cadres Techniques Professionnels du Football (UNECTEF) c. Georges Heylens e outros, processo 222/86; e acórdão de 10 de Julho de 1990, Anklagemyndigheden c. Hansen & Soen I/S, processo C-326/88.

243 Ver acórdão de 9 de Dezembro de 1994, caso Schouten e Meldrum c. Holanda, processos n.ºs 19005/91 e 19006/91, disponível

em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=80255532&skin=hudoc-en&action=request. Ver PHILIP BAKER, “Taxation and the European…”, pp. 211-377 e a diversa jurisprudência aí citada.

questão, tendo havido alguns que consideraram que os casos de índole fiscal estavam abrangidos pelas garantias e obrigações de carácter civil previstas no artigo 6.º da CEDH; porém, a maioria dos juízes continuou a entender que este artigo da CEDH não se aplica a tais casos245.

Por outro lado, a aplicação do artigo 6.º da CEDH tem conhecido desenvolvimentos em algumas áreas que têm erodido o alcance daquela exclusão determinada pelo TEDH246.

A primeira área de erosão é a relativa às situações que, apesar de terem inicialmente surgido de litígios fiscais, envolvem queixas que podem ser integradas no âmbito dos direitos e obrigações civis, como, por exemplo, danos provocados por impostos cobrados e pagos em excesso247.

A segunda área em que se verifica a erosão do princípio de que o artigo 6.º da CEDH não se aplica aos litígios fiscais é a referente às situações em que existe a aplicação de penalidades como consequência do cometimento de infracções fiscais. O TEDH tem declarado que essas penalidades aplicadas no âmbito fiscal estão inseridas na categoria das acusações criminais248. Consequentemente, são plenamente aplicáveis a estes casos as garantias existentes

nos processos de natureza criminal249.

244 Acórdão de 12 de Julho de 2001, processo n.º 44759/98, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?

sessionId=80255532&skin=hudoc-en&action=request.

245 Como é referido na decisão final do acórdão, “…the Court (…) 2. Holds by eleven votes to six that Article 6 § 1 of the Convention

does not apply in the instant case [o requerente alegou que tinha havido violação do artigo 6.º, n.º 1, da CEDH em três conjuntos de processos fiscais em que era parte]”.

Como refere PHILIP BAKER (“The Decision in Ferrazzini: Time to Reconsider the Application of the European Convention on Human Rights to Tax Matters”, Intertax, Volume 29, Issue 11 (November 2001), London, Kluwer Law International, p. 360), a propósito deste acórdão e explicando os fundamentos de uma e outra das posições adoptadas pelos juízes do TEDH: “The majority approach the question on the historical basis that the draftsmen of the European Convention intended to exclude public law litigation from Art. 6. They then considered whether litigation over the existence and quantum of a tax liability fell within this excluded category of public law litigation. (…) The minority, however, looked in somewhat greater depth at the travaux préparatoires to decide what type of public law dispute the draftsmen of the Convention intended to exclude from Art. 6. They noted that, with regard to a number of matters, the Court and Commission had, over the years, changed its viewpoint and decided that these disputes fell within the civil protections in Art. 6. They conclude that it was now time to recognize that tax disputes should no longer be excluded from the Art. 6 protections.”

246 Neste sentido, PHILIP BAKER, “Should Article 6 ECHR (Civil) Apply to Tax Proceedings?”, Intertax, Volume 29, Issue 6-7 (June &

July 2001), London, Kluwer Law International, pp. 209-210.

247 Ver o acórdão de 23 de Outubro de 1997, caso The National & Provincial Building Society, The Leeds Permanent Building Society e

The Yorkshire Building Society c. Reino Unido, cit..

248 Ver o acórdão de 24 de Fevereiro de 1994, caso Bendenoun c. França, processo n.º 12547/86, disponível em

91

Noutro plano, a CDFUE estatui o seguinte no seu artigo 47.º, epigrafado

“Direito à

acção e a um tribunal imparcial”

:

“Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido

violados tem direito a uma acção perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.

Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa,

publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente

estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e

representar em juízo.

É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na

medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efectividade do acesso à

justiça.”

Temos assim que, também no âmbito da CDFUE, o direito à tutela jurisdicional efectiva é consagrado como direito fundamental.

Como é salientado nas Anotações à CDFUE, a propósito do artigo 47.º, o seu primeiro parágrafo baseia-se no artigo 13.º da CEDH; contudo,

“no direito da União, a protecção é mais

alargada, dado que garante um direito a acção em tribunal. O Tribunal de Justiça consagrou este

direito como princípio geral do direito da União”

, o qual também se aplica

“aos Estados-

Membros quando estes aplicam o direito da União.”

No tocante ao parágrafo segundo do artigo 47.º, é referido nas Anotações à CDFUE que este corresponde ao n.º 1 do artigo 6.º da CEDH; no entanto,

“no direito da União, o direito a

julgamento imparcial não se aplica apenas a litígios relativos a direitos e obrigações do foro civil.

É uma das consequências do facto de a União ser uma comunidade direito”

. Sendo assim, os litígios fiscais estão abrangidos por esta norma da CDFUE e, consequentemente, os contribuintes

Como refere MARCO GREGGI (“The Protection of Human Rights and the Right to a Fair Tax Trial in the Light of the Jussila Case”, Intertax, Volume 35, Issue 11 (November 2007), London, Kluwer Law International, p. 612), “the Court has recently introduced three autonomous criteria (or tests) a fine (…) must respect to be considered as criminal under the European Convention of Human Rights (…): (1) the qualification of the fine according to national legislation; (2) the very nature of the offence, and (3) the degree of severity of the penalty.”

249 Cfr. artigo 6.º, n.ºs 2 e 3, da CEDH.

Como salienta PHILIP BAKER (“The Decision in Ferrazzini…”, p. 361), “one might say that the decision in Ferrazzini confirms that the dishonest taxpayer enjoys the full protection of Art. 6 while the taxpayer who is honestly seeking to dispute his tax liability has no right to a fair tail under the European Convention system.”

têm assegurada a tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Ora, uma vez que a União Europeia não dispõe de um sistema jurisdicional difuso, incumbirá aos órgãos jurisdicionais nacionais de cada Estado-membro serem os primeiros a garantir o respeito pela ordem jurídica europeia e a protecção dos direitos que nesta são reconhecidos aos particulares. Na verdade, compete aos tribunais nacionais assegurar a protecção jurídica que para os particulares decorre do efeito directo do Direito da União, através da utilização das modalidades processuais nacionais que forem concretamente aplicáveis, as quais devem ser aptas a garantir, a nível interno, a protecção dos direitos reconhecidos pela ordem jurídica europeia e que

“não podem ser menos favoráveis do que as respeitantes a

acções judiciais similares de natureza interna

[princípio da equivalência]

, nem tornar impossível

na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica

comunitária

[princípio da efectividade]

250.

Mas o princípio da tutela jurisdicional efectiva

“não exige, enquanto tal, que exista uma

acção autónoma destinada, a título principal, a impugnar a conformidade de disposições

nacionais com normas comunitárias, desde que o respeito dos princípios da equivalência e da

efectividade seja assegurado no âmbito do sistema dos recursos internos”

251, o que compete ao

juiz nacional verificar.

Porém, o princípio da tutela jurisdicional efectiva

“exige que na ordem jurídica de um

Estado-membro possam ser concedidas medidas provisórias até que o órgão jurisdicional

competente se pronuncie sobre a conformidade das disposições nacionais com o direito

comunitário, quando a concessão de tais medidas seja necessária para garantir a plena eficácia

da decisão jurisdicional a tomar quanto à existência de tais direitos”

252; sendo que a concessão

dessas medidas provisórias é regulada por critérios fixados pelo direito nacional aplicável, desde que estes respeitem o princípio da equivalência e o princípio da efectividade.

250 Acórdão do TJUE de 14 de Dezembro de 1995, Peterbroeck, Van Campenhout & Cie SCS c. Bélgica, processo C-312/93,

disponível em www.eur-lex.europa.eu.

251 Acórdão do TJUE de 13 de Março de 2007, Unibet (London) Ltd e Unibet (International) Ltd c. Justitiekanslern, processo C-

432/05, disponível em www.curia.europa.eu.

93

Noutra ordem de considerações, importa salientar que o princípio da tutela jurisdicional efectiva está subjacente à jurisprudência do TJUE atinente à responsabilidade dos Estados- membros por violação do Direito da União, porquanto esta responsabilidade encontra o seu fundamento naquele princípio, ou seja, na plena eficácia das normas de Direito da União e na protecção dos direitos que elas reconhecem253.

A terminar esta incursão pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva, há que referir que, relativamente aos procedimentos de troca de informações fiscais entre os Estados-membros da União Europeia, este assume relevância na perspectiva da concretização e do exercício de um dos direitos de participação que, como veremos adiante, devem ser reconhecidos aos contribuintes no âmbito daqueles procedimentos: o direito de impugnação254.