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VI. Os limites à troca de informações fiscais

3. Os direitos fundamentais

3.1. O reconhecimento e a protecção dos direitos fundamentais na ordem

3.2.3. O direito ao respeito pela vida privada e familiar

O artigo 8.º da CEDH estatui o seguinte:

“Artigo 8.º

Direito ao respeito pela vida privada e familiar

1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu

domicílio e da sua correspondência.

2. Não pode haver ingerência da autoridade púbica no exercício deste direito senão

quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade

democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-

estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção

da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.”

Por seu turno, o artigo 7.º da CDFUE preceitua o seguinte:

253 Neste sentido, ANA MARIA GUERRA MARTINS, Curso de Direito Constitucional…, pp. 452-453.

“Artigo 7.º

Respeito pela vida privada e familiar

Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu

domicílio e pelas suas comunicações.”

Resulta destas normas que o direito ao respeito pela vida privada e familiar é reconhecido no ordenamento jurídico europeu como um direito fundamental das pessoas e, consequentemente, impõe-se a sua estrita observância, enquanto tal, seja às instituições europeias, seja aos próprios Estados-membros. Como o próprio TJUE salienta,

“o direito ao

respeito pela vida privada, consagrado no artigo 8.° da CEDH e que resulta das tradições

constitucionais comuns aos Estados-membros, é um dos direitos fundamentais protegidos pela

ordem jurídica comunitária”

255.

Relativamente ao que deve ser entendido por

vida privada

, o TEDH pronunciou-se no sentido de que não deve ser efectuada uma interpretação restritiva deste conceito, não existindo, nomeadamente, nenhuma razão de princípio para excluir as actividades de natureza profissional ou comercial da noção de

vida privada

256.

No concernente ao que deve ser entendido por

domicílio

, o TEDH considera que deve ser havido como tal quer a residência privada das pessoas, quer o local onde estas exerçam a sua actividade profissional ou comercial (

v. g.

, o escritório ou o estabelecimento comercial)257.

Ademais, considera ainda o TEDH que, em certas circunstâncias, os direitos garantidos pelo artigo 8.º da CEDH podem ser interpretados como incluindo o direito ao respeito pela sede das empresas, pelas suas sucursais e estabelecimentos comerciais258.

255 Acórdão de 5 de Outubro de 1994, X c. Comissão, processo C-404/92 P, disponível em www.eur-lex.europa.eu.

256 Cfr. acórdão de 16 de Fevereiro de 2000, caso Amann c. Suíça, processo n.º 27798/95, disponível em

http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=80288225&skin=hudoc-en&action=request.

257 Cfr. acórdão de 16 de Dezembro de 1992, caso Niemietz c. Alemanha, processo 13710/88, disponível em http://cmiskp.echr.

coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=80288225&skin=hudoc-en&action=request. Como é referido neste aresto, “…it may not always be possible to draw precise distinctions, since activities which are related to a profession or business may well be conducted from a person’s private residence and activities which are not so related may well be carried on in an office or commercial premises.”

258 Cfr. acórdão de 16 de Abril de 2002, caso Société Colas Est e outros c. França, processo n.º 37971/97, disponível em

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A este propósito, o TJUE pronunciou-se, inicialmente, nos seguintes termos:

“… se é verdade que o reconhecimento desse direito

[direito fundamental à inviolabilidade do domicílio]

quanto ao domicílio privado das pessoas singulares se impõe na

ordem jurídica comunitária como princípio comum aos direitos dos Estados-membros, o mesmo

não sucede quanto às empresas, uma vez que os sistemas jurídicos dos Estados-membros

apresentam divergências não desprezíveis no que se refere à natureza e grau de protecção das

instalações comerciais face às intervenções das autoridades públicas.

Conclusão diversa não pode, aliás, ser retirada do artigo 8.° da Convenção Europeia dos

Direitos do Homem, cujo n.º 1 estabelece que «qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua

vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência». O objecto de protecção

deste artigo é o desenvolvimento da liberdade pessoal do homem, não podendo, por isso, ser

alargada às instalações comerciais. Além disso, constata-se a inexistência de qualquer

jurisprudência a este respeito por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Não é menos verdade, porém, que em todos os sistemas jurídicos dos Estados-membros

as intervenções do poder público na esfera da actividade privada de qualquer pessoa, seja

singular ou colectiva, devem ter fundamento legal e justificar-se por razões previstas na lei, e que

esses sistemas estabelecem, em consequência, embora de formas diferentes, uma protecção

contra as intervenções arbitrárias ou desproporcionadas. A exigência dessa protecção deve,

assim, ser reconhecida como princípio geral do direito comunitário.”

259

Posteriormente, o TJUE reviu a sua posição relativamente às instalações comerciais das empresas, nos termos que passamos a citar:

“Na determinação do alcance do referido princípio

[protecção contra as intervenções arbitrárias e desproporcionadas do poder público na esfera da actividade privada de qualquer pessoa, singular ou colectiva]

, no que toca à protecção das instalações comerciais das

sociedades, importa ter em conta a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

(…), jurisprudência essa donde resulta, por um lado, que a protecção do domicílio visada pelo

artigo 8.° da CEDH pode ser estendida, em determinadas circunstâncias, a essas instalações

259 Acórdão de 21 de Setembro de 1989, Hoechst AG c. Comissão, processos apensos 46/87 e 227/88, disponível em www.eur-

(…), e, por outro, que o direito de ingerência autorizado pelo artigo 8.°, n.° 2, da CEDH poderia

muito bem ir mais longe relativamente às instalações ou às actividades profissionais ou

comerciais do que noutros casos”

260.

Noutra parametria, o direito ao respeito pela vida privada e familiar não é um direito absoluto, admitindo pois restrições, as quais, para serem admissíveis e, portanto, legítimas, dependem da verificação simultânea dos seguintes requisitos261:

a) A ingerência deve provir de uma autoridade pública; b) A ingerência deve estar prevista na lei262;

c) A ingerência deve prosseguir fins legítimos263; e

d) A ingerência deve ser necessária264.

Acresce que, pese embora os Estados terem uma certa margem de discricionariedade para determinar uma ingerência no direito ao respeito pela vida privada e familiar, a necessidade de qualquer medida restritiva deve ser concreta e devidamente fundamentada e demonstrada, incumbindo aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar se as medidas adoptadas não são

260 Acórdão de 22 de Outubro de 2002, Roquette Frères SA c. Directeur Général de la Concurrence, de la Consommation et de la

Répression des Fraudes, processo C-94/00, disponível em www.curia.europa.eu.

261 Cfr. artigo 8.º, n.º 2, da CEDH. Atento o disposto no n.º 3 do artigo 52.º da CDFUE, as restrições susceptíveis de serem impostas

ao direito ao respeito pela vida privada e familiar, tal como previsto no artigo 7.º da CDFUE, são idênticas às admitidas no âmbito do artigo 8.º, n.º 2, da CEDH.

262 A este respeito, o TEDH considera que “the word "law" in the expression "prescribed by law" covers not only statute but also

unwritten law” (cfr. acórdão de 26 de Abril de 1979, caso The Sunday Times c. Reino Unido, processo n.º 6538/74, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=80292185&skin=hudoc-en&action=request).

263 Os fins assim considerados são os previstos na própria norma (segurança nacional, segurança pública, bem-estar económico do

país, defesa da ordem e prevenção das infracções penais, protecção da saúde ou da moral e protecção dos direitos e das liberdades de terceiros).

264 A este propósito, o TEDH enunciou os seguintes princípios interpretativos: “(a) the adjective "necessary" is not

synonymous with "indispensable", neither has it the flexibility of such expressions as "admissible", "ordinary", "useful", "reasonable" or "desirable" (…); (b) the Contracting States enjoy a certain but not unlimited margin of appreciation in the matter of the imposition of restrictions, but it is for the Court to give the final ruling on whether they are compatible with the Convention (…); (c) the phrase "necessary in a democratic society" means that, to be compatible with the Convention, the interference must, inter alia, correspond to a "pressing social need" and be "proportionate to the legitimate aim pursued" (…); (d) those paragraphs of Articles of the Convention which provide for an exception to a right guaranteed are to be narrowly interpreted (…)” (cfr. acórdão de

25 de Março de 1983, caso Silver e outros c. Reino Unido, processos n.ºs 5947/72, 6205/73, 7052/75, 7061/75, 7107/75, 7113/75 e 7136/75, disponível em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/portal.asp?sessionId=80292518&skin=hudoc-en& action=request).

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arbitrárias ou excessivas relativamente ao objectivo prosseguido, sem prejuízo de também o TEDH e o TJUE poderem ser chamados a fazer esse exame265.

No âmbito dos procedimentos de troca de informações fiscais entre os Estados- membros da União Europeia, o direito ao respeito pela vida privada e familiar assume uma relevância inequívoca para os contribuintes por eles visados, pois, enquanto direito fundamental, impõe que as autoridades competentes dos Estados-membros não possam desenvolver a sua actividade investigatória adoptando medidas que o restrinjam de forma inadmissível e, logo, ilegítima. Isto sem prejuízo de os procedimentos de troca de informações fiscais consubstanciarem, eles próprios, uma ingerência legítima no direito ao respeito pela vida privada e familiar, atentos os fins que prosseguem e que, neste contexto, podem ser reconduzidos quer ao

“bem-estar económico do país”

, quer à

“prevenção de infracções penais”

. Efectivamente, não podemos confundir os procedimentos de troca de informações fiscais, enquanto mecanismos de assistência administrativa mútua interestadual em matéria fiscal e que, como tal, estão legalmente previstos e regulados, com as medidas concretas que são adoptadas pelas autoridades competentes dos Estados-membros neles intervenientes, aquando da sua implementação prática, pois a legitimidade de que aqueles gozam, enquanto restrição ao direito ao respeito pela vida privada e familiar, não justifica e, muito menos, legitima toda e qualquer actuação daquelas autoridades nacionais.