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2 OPÇÕES METODOLÓGICAS E TRATAMENTO CONFERIDO AO MATERIAL

3.5 Direito de resistência nas decisões do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas

Difícil encontrar algo que afirme mais a prevalência do indivíduo frente ao Estado que a concepção do direito de resistência, quando o primeiro pode renegar o segundo, praticando a desobediência das leis. O direito de resistência é um ponto culminante do ideário liberal, podendo causar alguma perplexidade, ante o vislumbre das consequências que poderia provocar.

O direito de resistência, naturalmente, mereceu a atenção de Ferrajoli. Na quinta e última parte de sua principal obra, “Direito e razão”, ele se dedica à criação de uma teoria geral do garantismo, e traça considerações sobre a indagação “por que cumprir as leis?”134. Mais uma vez retorna às dicotomias entre direito e moral, revolvendo a autonomia da pessoa frente ao Estado na tradição grega, representada pela figura de Antígona ou ao contrário, o dever moral de obediência na figura de Sócrates, que aceita a morte injusta , embora Ferrajoli veja nesta sujeição à morte mais uma crítica à injustiça que uma apologia à obediência. A morte de Sócrates também é compreendida como alternativa à vida sem liberdade, sendo de pontuar que a liberdade, entre os gregos, era a participação política na polis.

A mesma problemática é enfrentada por Bobbio135 mas sob o viés da investigação acerca

do exercício do poder e, em subjacência, de como defender-se do poder. Bobbio parece dar ao direito de resistência a conotação de verdadeira liberdade, qual seja, a liberdade de agir-se de acordo com o que se acha certo, de acordo com a própria consciência.

Ao final, Ferrajoli136 conclui que, para a sua teoria, os cidadãos não tem obrigação política

de obedecer às leis, mas sim, obrigação jurídica de assim proceder. Admite que identifica mais uma aporia moral aparente do garantismo, e esclarece que

134 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão : teoria do garantismo penal. 2 ed. Rev. E ampl. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 847.

135 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. - Rio de Janeiro : Elsevier, 2004, p. 61.

136 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão : teoria do garantismo penal. 2 ed. Rev. E ampl. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 847.

[...]Este livro, por exemplo, exprime uma adesão moral e política ao Estado de direito; mas a razão desta adesão está precisamente no fato de que tal modelo não exige nenhuma adesão, tampouco ideal máxima, mas antes exige a não adesão a desobediência civil quando o funcionamento efetivo do ordenamento venha a conflitar com os valores morais e políticos tidos por fundamentais.

As encimadas notas iniciais permitem uma análise mais aprofundada no julgado do Tribunal de Justiça de Alagoas, no habeas corpus nº 2009.002589-6137. A impetração alegou que

o paciente foi condenado pelo juiz singular. Quando da condenação, a juíza tida como coatora decretou a prisão do paciente, que vinha respondendo ao processo em liberdade e comparecendo a todos os atos processuais, além de informar endereço atualizado. A prisão, portanto, seria infundada.

O relatório diz que, instada a prestar informações, a autoridade apontada como coatora descreveu a tramitação processual mas não declinou os motivos pelos quais decretou a prisão do paciente.

Porém, ao transcrever a decisão concessiva da liminar, o Tribunal faz referência à motivação contida no decreto prisional. Ali, a magistrada apontada como coatora teria se posicionado da seguinte forma:

A prisão decorrente de sentença condenatória recorrível possui natureza cautelar e, por tal, somente pode ser decretada se presentes um dos motivos que justificam a prisão preventiva. No caso dos autos, é de se recordar que o acusado já fugira uma vez, ao ter sua prisão preventiva decretada no início da persecução criminal. Justificou sua defesa, ao pleitear a revogação, que o acusado assim o fez para não se submeter a uma prisão que julgou “injusta”.

Agora, com a prolação da sentença condenatória, há o concreto receio de que o acusado volte a se evadir do distrito da culpa, pois novamente se verá na iminência de ser preso após o trânsito em julgado da sentença.

O relatório também transcreve a parte da decisão concessiva de liminar que entende infundada a decisão que decreta a prisão, “pois não foi demonstrada de maneira adequada a real necessidade da segregação no caso concreto, ou seja, o receio de que o paciente volte a se evadir do distrito da culpa”.

Ora, a decisão que decreta a prisão parece clara neste ponto: se o paciente fugiu quando lhe foi decretada a prisão preventiva, por achá-la “injusta”, é de presumir-se que fugiria novamente à vista de sua condenação, vez que iminente nova ordem prisional. É de alvitrar-se que a prisão cautelar decorrente de sentença condenatória já não existe em nosso ordenamento.

137 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas. Habeas Corpus. Condenação pelo juiz singular. Réu que se encontrava solto. Ausência de fato posterior. Desnecessidade da determinação da prisão. Liminar deferida. Conhecimento do pedido e concessão da ordem impetrada em definitivo. Unanimidade. Habeas corpus nº 2009.002589-6. Impetrante Bruno Soriano Cardoso. Impetrado Juiz de Direito da 4ª Vara Criminal da Capital. Paciente Pedro Rocha Cavalcanti Jucá. Relator Orlando Monteiro Cavalcanti Manso. Acórdão em habeas corpus n. 505452009.

Entretanto, na espécie, o que o a instância a quo sobrelevou foi a fuga. Mas o Tribunal entendeu de forma diversa, já que o réu vinha respondendo ao processo em liberdade e não consta nenhum acontecimento que retrate a necessidade da prisão. O Tribunal inclusive destaca que o réu não foi encontrado no endereço contido nos autos porque dali se mudara; deveria ter sido intimado no endereço informado por ocasião do interrogatório. Há dúvidas, para o Tribunal, se houve realmente fuga.

Impende esclarecer que o acusado tem obrigação legal de informar ao juízo processante qualquer mudança de endereço, sob pena de presumirem-se válidas as intimações ou citações feitas no endereço constante nos autos, tal sendo a redação do art. 367 do Código de Processo Penal.

Então veja-se: a autoridade apontada como coatora prende-se à fuga e, no voto do relator, privilegia-se sua conduta processual após a fuga, mas coloca-se em dúvida a existência desta. Há evidente escolha pela preservação do indivíduo no segundo caso e pela ordem pública, no primeiro.

Mas o ponto que ora interessa destacar é o do voto-vista. Nele, há remissão a um trecho da decisão da magistrada a quo que não foi transcrito no voto do relator. Ao decretar a prisão, a juíza teria feito as seguintes considerações:

[…] devidamente caracterizada a ameaça à aplicação da sanção penal ali imposta, em razão do comportamento anterior adotado por Pedro Rocha Jucá, o qual, repita-se, passou um ano e sete meses ausente dos autos, com prisão preventiva decretada e jamais cumprida pelas autoridades responsáveis.

O voto-vista destaca que o fuga do paciente ocorrera passados mais de dez anos da data em que o julgado estava a ser proferido.

Interessa anotar que o voto-vista não apenas coloca a salvo de dúvidas que o paciente efetivamente fugiu (“Pois bem, após a análise dos autos depreende-se, com certa facilidade, que realmente o paciente permaneceu foragido durante um extenso período de tempo”), como esclarece que só foi interrogado após sua apresentação espontânea, ocasião em que foi agraciado com a liberdade provisória, interrogado, tendo só aí fornecido seu novo endereço. Mas o sustentáculo da concessão da ordem, em que pese o reconhecimento da fuga, é a faticidade da inexistência de atos posteriores à apresentação do acusado que sequer sugiram “a extrema necessidade de sua constrição cautelar como medida finalisticamente dirigida à garantia da aplicação da lei penal”.

O voto-vista, portanto, é mais fiel aos preceitos garantistas que o voto do relator. Neste, diz-se que a conduta processual do paciente não indica necessidade de prisão e não se pode afirmar que houve fuga. Naquele, diz-se que houve, sim, fuga, mas a conduta processual do

paciente após a sua apresentação espontânea ilide qualquer necessidade de segregação para salvaguarda da aplicação da lei penal.

Em arremate, conclui-se no voto-vista que

Ademais, ao manter-se em local incerto e ignorado durante certo tempo o paciente nada mais fez do que exercer, de forma legítima, o direito histórico de resistência e contestação que, nas palavras de Norberto Bobbio, “expressa-se através de um discurso crítico, num protesto beral, na enunciação de um solgan (SIC)”. Aliás, saliente-se que durante o tempo em que esteve foragido o paciente contestou a decisão que lhe decretou a prisão preventiva tendo requerido a liberdade provisória que, finalmente, lhe foi concedida.

De fato, a visão retratada no voto-vista sobre a prevalência do indivíduo frente ao Estado conflui com as ideias de Ferrajoli. Para ele, não existe obrigação moral ou política de quem quer que seja de obedecer às leis138, exceto os titulares dos poderes delegados para a aplicação das leis. Portanto, os juízes têm a obrigação moral e política de obedecer às leis, mesmo que internamente estas lhes pareçam injustas. Cabe-lhes checar se são válidas e em assim sendo, aplicá-las.

Já o cidadão tem obrigação moral de desobedecer civilmente às leis139, quando os

mecanismos do Estado democrático não se mostram efetivos, ou quando o conflito com valores fundamentais for manifesto, como consequente rejeição ao formalismo ético e à concepção heteropoiética do Estado.