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Direitos fundamentais e o sistema de regras e princípios.

3 Constitucionalismo contemporâneo: normatividade dos princípios, prevalência e eficácia horizontal dos direitos

3.4 Direitos fundamentais e o sistema de regras e princípios.

A palavra princípio possui um amplo espectro semântico no Direito. Pode ser adotada em sentido relacionado aos imperativos da moralidade e da ética, assim como podendo ser empregada como referência às proposições jurídicas existentes apenas no plano axiológico e que atuam como pensamento diretivo e condicionante do direito positivo. Pode, ainda, ser usada em referência às normas jurídicas dotadas de alto grau de abstração e generalidade.

O contraditório e a ampla defesa são comumente citados como um princípio geral de direito. A referência ao contraditório e à ampla defesa como um princípio não está incorreta, porém, no âmbito da teoria das normas constitucionais, ela deve ser adotada com reservas.

É perfeitamente válido falar em princípio do contraditório e da ampla defesa quando a linha de pesquisa está inserida na teoria geral do direito ou no direito processual civil.

Os princípios gerais, segundo a teoria geral do direito, podem ser definidos como sendo as “enunciações normativas de caráter genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação, quer para a elaboração de novas normas”261. A doutrina

controverte a origem destas enunciações, conjecturando se elas correspondem ao direito natural, ou se decorrem de uma determinada ordem de valores ou, ainda, se são emanadas por pressuposições obtidas a partir de um sistema jurídico organizado. Há, no entanto, um ponto de convergência de todas as teorias: os princípios gerais são irradiações do ideal de justiça, assim considerada em sua acepção mais ampla262.

Como dito páginas atrás, a defesa do acusado constitui elemento essencial para a realização da justiça, na medida em que constituiu instrumento para obtenção da verdade e pesquisa do Direito. A defesa do réu compõe o conjunto de variáveis que o juiz deve equacionar na pacificação de qualquer conflito de interesses. As garantias do contraditório e da ampla defesa, portanto, são inerentes ao ideal de justiça, condição esta que as posiciona na categoria de princípio geral de direito.

Também é possível pensar no contraditório e na ampla defesa como princípio de direito processual. O direito processual constitui um sistema jurídico autônomo, porém que, como todo conjunto normativo, é tributário dos valores consignados na Constituição Federal. Suas regras, portanto, recebem a irradiação direta das disposições constitucionais, que atuam, dentro do subsistema processual, como princípios de direito. Basta ver que, embora o Código de Processo Civil não faça referência expressa ao contraditório e à ampla defesa, é absolutamente perceptível que tais garantias estão entranhadas no Estatuto Processual, que as efetiva em diversas passagens.

261 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 304. 262 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 26ª ed. São Paulo: Revista

Embora possamos falar em contraditório e ampla defesa como princípio geral de direito ou princípio processual, o estudo ora desenvolvido se dedica, exclusivamente, à teoria da Constituição. A questão, então, é definir se a norma encastelada no artigo 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, constitui um princípio dentro da dogmática do direito constitucional.

Na tradicional teoria constitucional, os princípios sempre foram tratados como elementos meramente informativos dirigidos ao legislador, motivo pelo qual eram considerados não autoaplicáveis. Com a moderna teoria constitucional, as normas programáticas passaram a ganhar maior importância no ordenamento jurídico, como verificamos na obra de José Afonso da Silva, tendo sido abandonada a ideia de servirem de meros conselhos. O constitucionalismo contemporâneo elevou os princípios constitucionais ao universo normativo, colocando-o ao lado das regras. Essa visão dos princípios como normas jurídicas é, talvez, a mais marcante característica da escola pós- positivista, razão pela qual foi ela que produziu os estudos mais completos sobre o modelo de princípios e regras.

Pretendendo uma “clarificação tipológica da estrutura normativa” da Constituição, José Joaquim Gomes Canotilho traça as linhas que separam os princípios das regras. Sinteticamente, pois o próprio autor reconhece a complexidade da missão, os princípios se diferenciariam das regras porque: a) teriam um grau de abstração mais elevado do que as regras; b) seriam mais vagos e indeterminados, carecendo de uma medição concretizadora; c) teriam natureza estruturante ou caráter de fundamentalidade no ordenamento; d) estariam mais próximos do ideal de direito e justiça, enquanto as regras teriam um caráter funcional; e) constituiriam o fundamento das regras, dos quais estas seriam irradiações263-264.

263 Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 1160

-1161.

264 No mesmo sentido, mas com uma classificação um pouco mais abrangente, ver MIRANDA,

Traçadas essas linhas gerais, Canotilho decompõe os princípios em quatro espécies: a) princípios jurídicos fundamentais, que corresponderiam àqueles “historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional”; b) princípios políticos constitucionalmente conformadores, grupo no qual se concentrariam “as opções políticas nucleares e se reflecte a ideologia inspiradora da constituição”; c) princípios constitucionais impositivos, nos quais “subsumem-se todos os princípios que impõe aos órgãos do estado, sobretudo ao Legislador, a realização de fins e a execução de tarefas”; e, por fim, d) princípios-garantias, que correspondem aos princípios que instituem direta e imediatamente garantias ao cidadão, tais como o princípio do juiz natural e o do in dubio pro reo265.

Robert Alexy afirma que há uma distinção qualitativa entre regras e princípios. Segundo Alexy, o ponto decisivo nesta distinção estaria no fato de que os princípios “são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”. Alexy esclarece melhor seu conceito, definindo os princípios como “mandamentos de otimização”, cujas características seriam a possibilidade de serem satisfeitos em graus variados e pelo fato de que sua satisfação dependeria de possibilidades jurídicas e não fáticas. Estas possibilidades jurídicas seriam determinadas pelos outros princípios e regras também aplicáveis ao caso e que podem entrar em colisão266.

Luís Roberto Barroso apresenta um modelo de regras e princípios que sintetiza com bastante precisão as características que marcam um e outro elemento normativo. Para referido autor, a teoria constitucional contemporânea reconhece como insuficiente a distinção das regras e dos princípios baseada unicamente no critério da maior generalidade destes frente àquelas. A dogmática constitucional vem se empenhando, então, em delimitar

265 Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, pp.

1165-1167.

266 Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo:

as distinções qualitativas ou estruturais existentes entre as regras e os princípios. Luís Roberto Barroso condensa os pontos comuns existentes nas várias propostas doutrinárias. Para Luís Roberto Barroso, os princípios distinguem-se das regras a partir de três critérios: a) o conteúdo; b) a estrutura normativa; c) as particularidades da aplicação267.

No que se refere ao conteúdo, os princípios identificariam valores a serem protegidos ou alcançados, tais como isonomia, moralidade, justiça social, desenvolvimento regional, redução das desigualdades etc. As regras, por sua vez, limitar-se-iam a traçar condutas específicas. “Regras são descritivos de conduta, ao passo que princípios são valorativos ou finalísticos”268.

Quanto à estrutura normativa, os princípios, por sua característica valorativa e finalística, não especificariam a conduta esperada e que deve ser seguida para sua realização, delegando ao intérprete a difícil tarefa de definir o comportamento que o jurisdicionado ou o Estado deve respeitar. As regras, ao contrário, trariam o relato mais detalhado da conduta esperada para o seu cumprimento. Adverte o autor em estudo que a aplicação da regra não pode ser confundida com um ato mecânico, pois ao juiz caberia sempre “dar o toque de humanidade que liga o texto à vida real”. A diferença principal, portanto, estaria no fato de que “a aplicação de uma regra normalmente não envolverá um processo de racionalização mais sofisticado, Se ocorre o fato previsto em abstrato, produz-se o efeito concreto previsto”269.

Ainda quanto à estrutura normativa, os princípios, por traduzirem um “estado ideal a ser transformado em realidade”, não poderiam conter um núcleo objetivamente determinado, mas sim um núcleo mínimo essencial que dispõe de ampla indeterminação, que “estará sujeita à

267 Interpretação e integração da constituição: fundamentos de uma dogmática

constitucional transformadora. 7ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 352-358.

268 Idem, p. 355. 269 Ibidem, pp. 355-356.

concepção ideológica ou filosófica do intérprete”. É o que ocorre, por exemplo, com o princípio da dignidade da pessoa humana, no qual se observa tanto uma indeterminação de seu conteúdo normativo como quanto à conduta que deve ser respeitada para sua realização270.

Por fim, quanto as particularidades de sua aplicação, as regras teriam aplicabilidade ao caso concreto por meio de subsunção, ou seja, o juiz verificaria se a hipótese concreta se adequa à norma abstrata e, sendo positiva a resposta, a aplica de forma integral. Ocorreria um “tudo ou nada”: ou a norma é aplicável ao caso concreto e, então, incidirá de forma integral, ou não é aplicável ao caso, situação em que não teria qualquer incidência no caso271.

Em Alexy, as regras “são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exigem, nem mais, nem menos”272. Já os princípios, por sua vez, por terem maior carga valorativa, teriam sua aplicação formatada por um critério de ponderação, cabendo ao juiz colmatar a incidência maior ou menor no princípio à luz das peculiaridades do caso, principalmente à luz da incidência de outros princípios273.

As regras, portanto, traduzem um juízo de ponderação prévio do legislador. Tal juízo, no que se refere aos princípios, é realizado pelo aplicador da norma jurídica. “É por isso que as determinações estabelecidas no nível das regras têm primazia em relação a determinadas alternativas baseadas em princípios”274.

270 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e integração da constituição: fundamentos de

uma dogmática constitucional transformadora. 7ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 356.

271 Tal como na lição de Ronald Dworkin (In: Levando os direitos a sério. Tradução Nelson

Boeira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 39).

272 Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2011, p. 91.

273 BARROSO, Luís Roberto, Op. cit., pp. 356 - 358. 274 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 140.

A partir deste rápido apanhado teórico, podemos afirmar que a norma constante no artigo 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, traduz uma regra jurídica e não um princípio constitucional. Vejamos o texto da norma:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

É possível observar que o texto legal não veicula um valor a ser protegido ou alcançado, não possuindo, portanto, um valor finalístico. A norma acima transcrita tem uma inequívoca natureza instrumental, não encerrando um fim em si mesmo. Vale dizer, o contraditório e a ampla defesa é instrumento de proteção de outros direitos, esses sim potencialmente integrantes do universo principiológico. Demonstra-se, com isso, tratar-se de norma de natureza funcional, que decorre de princípios constitucionais.

Sobre outro aspecto, a norma em análise não dispõe de elevado grau de abstração e generalidade, na medida em que possui um núcleo jurídico determinado, que permite identificar, de imediato, seu âmbito de proteção. Da mesma forma, não se trata de uma norma dotada de ampla generalidade, pois ela própria indica de forma específica as hipóteses fáticas de sua incidência. Verifica-se, claramente, que a norma não exige qualquer mediação concretizadora para que possa atuar no caso concreto.

Por fim, no que se refere à aplicabilidade da norma, opera-se exatamente o modelo binário: preenchidas as condições fáticas, ou seja, se o fato concreto corresponder à hipótese in abstrato da norma, ela incidirá plenamente no caso; caso contrário, não será aplicada à situação concreta. Não é possível aplicar parcialmente o contraditório ou a ampla defesa, sendo um caso típico do “tudo ou nada” já referido.

Assim, é possível afirmar que a norma contida no artigo 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, não se trata de um princípio constitucional. Trata-se, efetivamente, de uma norma-regra, ou, simplesmente, de uma regra constitucional.

As garantias do contraditório e da ampla defesa são irradiações de princípios constitucionais específicos, o que confirma sua natureza de norma-regra. De forma próxima, ela constitui irradiação do princípio do devido processo legal, veiculado no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. De forma mais remota, é irradiação dos princípios fundamentais da liberdade, da justiça, da propriedade e da igualdade (artigos 3º e 5º da Constituição Federal), estes sim valores de natureza estruturante e fundamental no ordenamento. Observam-se, aqui, normas dotadas de elevado grau de abstração em seus núcleos, na media em que empregam locuções – “liberdade”, “devido processo legal”, “igualdade” - que exigem um complexo trabalho de integração por parte do intérprete, que terá que recorrer a conceitos históricos e filosóficos com densidade variável em tempo e lugares diferentes, além de uma generalidade muito mais ampla de aplicação.

Partindo-se da premissa aqui defendida, no sentido de que a norma contida no artigo 5º, LV, da Constituição Federal constitui uma regra constitucional, sua aplicação, segundo a Teoria dos Direitos Fundamentais, ocorre de forma plena, sempre que o fato concreto corresponder ao suporte fático da norma. Nesta hipótese, o juiz fara a regra incidir de forma completa sobre o caso, produzindo seus efeitos integrais.

Embora talvez seja o mais nobre dos temas de direito constitucional, o Supremo Tribunal Federal brasileiro poucas vezes enfrentou o problema da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. É possível observar, nos poucos julgados a respeito da matéria, como a

jurisprudência evoluiu até a adoção, pelo STF, da tese que defende a eficácia horizontal imediata das normas definidoras de direitos fundamentais275.

275 Para Virgílio Afonso da Silva, falta ainda uma sistematização na jurisprudência do STF, que

nunca teria se preocupado a “desenvolver uma tese sobre o problema ou a aplicar algum modelo a tais casos” (In: A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1ª ed. 3ª tir. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 93).

4 Estudo de casos: a eficácia das garantias do contraditório