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2 O contraditório e a ampla defesa no sistema constitucional vigente: estudo do tema a partir do direito positivo como

2.1 Teorias de eficácia das normas constitucionais.

2.1.1 A eficácia das normas constitucionais na teoria de José Afonso da Silva.

2.1.1.2 Normas constitucionais de eficácia contida.

Constituem normas de eficácia contida os dispositivos constitucionais que, embora sejam dotados de aplicabilidade direta e imediata, têm a integralidade de seus efeitos jurídicos sujeita a restrição. Por tal razão, se que esta é completa e juridicamente dotada de eficácia plena” (SILVA, José Afonso da.

Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 96).

diz-se, quanto às normas de eficácia contida, que elas possuem eficácia direta e imediata, porém não integral.

Existem normas constitucionais que fazem expressa referência a uma legislação superveniente. Essa normação futura invocada pelo preceito constitucional pode assumir naturezas diversas; ela pode constituir tanto um elemento de integração da eficácia da norma constitucional, expandindo seus efeitos, como pode constituir um elemento de contenção dos seus efeitos jurídicos. Nesta primeira hipótese, o jurista se depara com uma norma constitucional de eficácia limitada, que será estudada adequadamente no tópico seguinte. Na segunda hipótese, que a lei futura assume contornos de limitação, verifica-se uma norma constitucional de eficácia contida.

Um exemplo é sempre um bom aliado. O artigo 5º, XIII, da Constituição Federal de 1988 garante ser “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Em uma primeira vista, esta lei posterior a que se refere o artigo 5º, XIII, da Carta Constitucional pode ser compreendida como um elemento necessário para o desenvolvimento da eficácia desta norma constitucional. Dito de outra forma, é possível, em uma análise menos detida, entender que o dispositivo constitucional em questão encerra uma norma de eficácia limitada, na medida em que dependeria de uma lei posterior que complemente sua normatividade para que possa criar uma situação subjetiva de vantagem ou de vínculo.

José Afonso da Silva, estudando este mesmo dispositivo constitucional, adverte que tal interpretação é equivocada, pois a liberdade reconhecida no artigo 5º, XIII, da Constituição Federal de 1988 não depende de lei posterior. A lei posterior seria necessária apenas para estabelecer as qualificações necessárias para determinadas profissões, como ocorre, por exemplo, com o exercício da advocacia92 ou da medicina. A lei posterior, com

92 O Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do artigo 84 da Lei nº

efeito, não teria o caráter de ampliar a carga eficacial do dispositivo constitucional em questão, mas apenas restringir sua integral aplicação naquelas hipóteses em que o legislador considerou necessário o estabelecimento de qualificações específicas ao profissional. No caso em estudo, “a lei só pode interferir para exigir certa habilitação para o exercício de uma ou outra profissão ou ofício. Na ausência da lei, a liberdade é ampla”93.

As normas de eficácia contida terão eficácia plena enquanto a legislação limitadora não for expedida. “São de aplicabilidade direta e imediata, visto que o legislador constituinte deu normatividade suficiente aos interesses vinculados à matéria de que cogitam”94. Neste aspecto, em tudo se assemelham às normas de eficácia plena. Tal semelhança, contudo, se encerra quando se verifica a possibilidade de uma limitação de sua eficácia por meio de um ato normativo posterior, quando adquirem alguma semelhança com as normas de eficácia limitada95.

bacharel em Direito no chamado Exame de Ordem. Embora o julgamento tenha sido permeado pela Teoria dos Direitos Fundamentais, é perceptível o reconhecimento de eficácia contida no artigo 5º, XIII, da Constituição Federal, invocado para o confronto de constitucionalidade. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ementa: TRABALHO – OFÍCIO OU PROFISSÃO – EXERCÍCIO. Consoante disposto no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. BACHARÉIS EM DIREITO – QUALIFICAÇÃO. Alcança-se a qualificação de bacharel em Direito mediante conclusão do curso respectivo e colação de grau. ADVOGADO – EXERCÍCIO PROFISSIONAL – EXAME DE ORDEM. O Exame de Ordem, inicialmente previsto no artigo 48, inciso III, da Lei nº 4.215/63 e hoje no artigo 84 da Lei nº 8.906/94, no que a atuação profissional repercute no campo de interesse de terceiros, mostra-se consentâneo com a Constituição Federal, que remete às qualificações previstas em lei. Considerações”. Recurso extraordinário nº 603.583, Recorrente: João Antônio Volante. Recorrido: União e outros. Relator: ministro Marco Aurélio. Brasília, 26 out. 2011. Diário da

justiça de 25 mai. 2012.

93 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2003, p. 106.

94 Idem, p. 104.

95 Tal semelhança com as normas de eficácia limitada acaba gerando muitas confusões,

sobretudo no estudo in concreto dos dispositivos constitucionais. Apenas para ilustrar como é fácil incorrer em equívocos, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do agravo regimental no agravo de instrumento nº 618.986, afirmou que o artigo 37, VII, da Constituição Federal (“o direito de greve [dos servidores públicos] será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”) constitui norma de eficácia contida. No entanto, a fundamentação do voto- condutor, inclusive as citações e transcrições da obra de José Afonso da Silva, são relacionadas às normas de eficácia limitada. O Supremo Tribunal Federal adotou fundamentação que induz à conclusão de se tratar de norma de eficácia limitada (o que está correto, pois, de fato, trata-se desta espécie de norma), porém atribuiu a denominação de

A partir de sua entrada em vigor, as normas de eficácia contida seriam aplicáveis direta e imediatamente às suas respectivas hipóteses de incidência. Seriam, portanto, plenamente eficazes enquanto não forem objeto de restrição por norma superveniente. Por esta razão, alguns autores entendem inadequado o emprego da expressão contida, preferindo empregar a adjetivação contível, restringível ou redutível, o que nos parece ser bastante justificável96.

Dissemos que a restrição da eficácia da norma pode advir de legislação inferior solicitada no próprio dispositivo constitucional, como é o caso do exemplo servido poucas linhas atrás. No entanto, é possível que a hipótese de restrição seja proveniente de outro dispositivo da Constituição, ou seja, de uma “norma constitucional de contenção da eficácia de outras”97. Os exemplos mais evidentes de normas constitucionais restritivas da eficácia de outras podem ser vistos nos artigos 138 e 139 da Constituição Federal de 1988, que autorizam, durante a vigência de estado de sítio, a suspensão de diversas garantias constitucionais, como a liberdade de locomoção, a inviolabilidade das correspondências e a liberdade de reunião, dentre outras98.

norma de eficácia contida. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma. Ementa; “CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO. DIREITO DE GREVE. ALEGADA VIOLAÇÃO AO ARTIGO 37, VII. PRECEITO CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA CONTIDA. NECESSIDADE DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA REFLEXA. AGRAVO IMPROVIDO. I - O preceito constitucional que garante o exercício de greve aos servidores públicos é de eficácia contida, de acordo com jurisprudência consolidada desta Corte. II - A eficácia plena do preceito constitucional demanda a existência de norma infraconstitucional que regulamente os efeitos e a forma de exercício deste direito. III - A ausência de lei não conduz a conclusão de que a Administração Pública deveria considerar justificadas as faltas, a ofensa ao texto constitucional, se ocorrente, seria meramente reflexa. IV - Agravo regimental improvido”. Agravo regimental no agravo de instrumento nº 618986. Agravante: Agueda Raghiante e outro. Agravado: Estado de São Paulo. Relator: ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, 13 mai. 2008. Diário da justiça de 06 jun. 2008.

96 Neste sentido, DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 8ª ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 117.

97 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2003, p. 107.

98 Constituição Federal de 1988, artigo 138: “O decreto do estado de sítio indicará sua duração,

as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas”.

Encerrando seu mapeamento das normas constitucionais de eficácia contida, José Afonso da Silva constata que determinados dispositivos constitucionais fazem referência a conceitos indeterminados, quase sempre com conteúdo ético-social, e que atuam também como limitadores da eficácia da norma. Serve, como exemplo, o direito de propriedade, que está consagrado no artigo 5º, XXII, da Constituição Federal de 1988, porém que tem sua eficácia limitada no inciso XXIV do mesmo artigo, nas hipóteses de “necessidade e utilidade pública, ou por interesse social”, nas quais se justificaria a desapropriação do bem.

Assim, na teoria de José Afonso da Silva, as normas constitucionais de eficácia contida

são aquelas em que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados99.

Para José Afonso da Silva, as normas que conferem direitos subjetivos aos cidadãos a partir da limitação da interferência dos Poderes Públicos, como é o caso dos direitos e garantias fundamentais, são, em sua maioria, normas de eficácia contida100.

Constituição Federal de 1988, artigo 139: “Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no artigo 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: [§] I - obrigação de permanência em localidade determinada; [§] II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; [§] III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; [§] IV - suspensão da liberdade de reunião; [§] V - busca e apreensão em domicílio; [§] VI - intervenção nas empresas de serviços públicos; [§] VII - requisição de bens. [§] Parágrafo único. Não se inclui nas restrições do inciso III a difusão de pronunciamentos de parlamentares efetuados em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva Mesa”.

99 Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 116. 100 Idem, pp. 105 e 188-190.