• Nenhum resultado encontrado

Eficácia horizontal dos direitos fundamentais no sistema constitucional brasileiro: um possível falso problema.

3 Constitucionalismo contemporâneo: normatividade dos princípios, prevalência e eficácia horizontal dos direitos

3.2 Constituição e direito privado: a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

3.2.1 Eficácia horizontal dos direitos fundamentais no sistema constitucional brasileiro: um possível falso problema.

O pensamento jurídico no Brasil sofre uma crise de identidade. A doutrina importa modelos e teorias de outros países, muitas vezes sem levar em consideração que, por vezes, os sistemas jurídicos são tão diferentes quanto são as realidades sociais. Especificamente no que se refere ao direito do trabalho, enaltece-se sistemas liberais e sua produção normativa autônoma, prestada via negociação coletiva, mas não se leva em conta os diferentes

245 “A nadie puede sorprender, por tanto, que la génesis y el desarrollo más fecundo de la teoria

de la Drittwirkung haya tenido como escenário el campo de las relaciones laborales” (UBILLOS, Juan María Bilbao. En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? In SARLET, I. W. (Org). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 304). A referência feita por Ubillos é ao ensaio publicado por Hans Carl Nipperdey em 1950, na Alemanha, sobre a igualdade salarial da mulher, o que é considerado como a primeira abordagem teórica do problema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

desníveis que separam o capital e o trabalho ou o problema da representatividade dos sindicatos. Compara-se o “custo da mão de obra” com países que há anos têm seus produtos internos brutos divulgados com dois dígitos, mas não se compara as diferenças em termos de conquistas sociais. Estimula-se a solução autônoma de conflitos, via conciliação, mas não se leva em conta o efeito perverso que isso vem causando, na medida em que dissemina a ideia de que é mais econômico não cumprir a lei e depois transacionar por um custo mais baixo.

Apontamos o direito do trabalho como escusa para criticar outros ramos. O direito civil falhou em sua missão de promover o equilíbrio social porque não considerou uma realidade brasileira, que é o fato de que, entre nós, uma lei que não impõe sanção é o mesmo que nada. Atualmente, o descumprimento de uma obrigação civil gera, no máximo, um comando judicial para que a obrigação seja cumprida e nada mais. É como se retirássemos do crime de roubo sua pena e disséssemos ao ladrão que o pior que lhe pode acontecer é ter que devolver o bem roubado. Este é o direito civil de hoje. O número de causas repetitivas e contra os mesmos réus nos Juizados Especiais Cíveis é o sintoma de que algo está errado.

O direito constitucional alemão é realmente fascinante por sua tradição argumentativa, sua sistematização e pela impressionante produção de seus juristas. Nos dias atuais, é impossível estudar direito constitucional sem visitar as obras de Robert Alexy, Günter Dürig, Hans Carl Nipperdey, Jürgen Schwabe, Konrad Hesse, Clauss-Wilhem Canaris, dentre outros. As teorias desses autores têm influenciado enormemente a doutrina brasileira.

Sob tal influência, o problema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais passou ocupar espaço nos relatórios acadêmicos e na produção doutrinária. No entanto, uma pergunta poucas vezes foi feita: esse problema realmente tem relevância para o direito constitucional brasileiro? Será que, ao invés de uma solução, estaríamos importando um problema que não é nosso? Explicamos o motivo desta inquietação:

A Lei Fundamental Alemã, de 1949, possui cláusula que estabelece a vinculação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário aos direitos fundamentais:

Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário246.

Esta disposição da Lei Fundamental Alemã identifica a chamada eficácia vertical dos direitos fundamentais, que se refere à irradiação desta categoria de direitos na relação cidadão-Estado. Desde então, a doutrina alemã vem se ocupando em compreender a extensão desta disposição da Lei Fundamental, florescendo diversas teorias, dentre as quais a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

A teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais é uma construção doutrinária que pretende superar a limitação imposta pela Lei Fundamental Alemã ao vincular apenas os órgãos do Estado aos direitos fundamentais.

Em outros países, o problema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais foi superado pelo próprio texto constitucional. Como exemplo, a Constituição da República Portuguesa anuncia que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas” (artigo 18º, 1). Observa-se que, no sistema constitucional português, a teoria da eficácia horizontal direta e imediata dos direitos fundamentais foi absorvida e adotada pelo próprio legislador constituinte, tornando praticamente esgotada qualquer discussão acerca da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.

246 Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (Grundgesetz für die Bundesrepublik

Deutschland), 1949, artigo 1º, 3. Disponível em <http://www.brasil.diplo.de/contentblob/ 3254212/Daten/1330556/ConstituicaoPortugues_PDF.pdf>. Acesso em 17 nov. 2012.

É fácil perceber, então, que a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais possui extrema relevância na doutrina alemã, suscitando intensos debates acadêmicos que vão desde a negação deste modelo eficacial até a defesa de uma irradiação direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações particulares. Esta mesma discussão doutrinária, no entanto, deixou de fazer sentido no sistema constitucional português, que, por opção política, adotou a tese de irradiação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas. Em Portugal a discussão acadêmica foi encerrada pela Carta Constitucional.

Um dos principais referenciais teóricos em direitos fundamentais é a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy. Logo no início de sua obra, Alexy adverte que sua teoria

diz respeito a uma teoria jurídica geral dos direitos fundamentais da Constituição alemã. [...] Isso a diferencia tanto de teorias sobre direitos fundamentais que tenham vigido no passado (teorias histórico-jurídicas), como de teorias sobre direitos fundamentais per se (teorias filosóficos- jurídicas), como de teorias sobre direitos fundamentais que não os da Constituição alemã – por exemplo, teorias sobre direitos fundamentais de outros países ou teorias sobre direitos fundamentais dos Estados Federados alemães247.

É certo que a teoria dos direitos fundamentais tem importância em qualquer sistema constitucional, dado o caráter universal destes direitos, assim como tem importância acadêmica incontestável que transcende os contornos do direito positivo local248. No entanto, a proposta da presente

pesquisa não é uma imersão na dogmática constitucional contemporânea, mas, como já delimitamos, entender em que medida os direitos fundamentais, e, mais precisamente, as garantias do contraditório e da ampla defesa, geram efeitos nas relações privadas. Nesta perspectiva concentrada, a questão suscitada neste tópico se mostra relevante: a discussão acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais é válida no direito constitucional brasileiro?

247 Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2011, pp. 31-32.

248 Como, aliás, anuncia Claus-Wilhelm Canaris. In: Direitos fundamentais e direito privado.

A Constituição Federal de 1988 não foi explícita quanto a Constituição da República Portuguesa no tocante à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais; porém também não foi explícita como a Lei Fundamental Alemã ao prever apenas a eficácia vertical dos direitos fundamentais. A Carta de 1988 não delimita sua eficácia às relações cidadãos- Estado, mas também não afirma que os direitos fundamentais se aplicam nas relações privadas. A opção do legislador constituinte foi simplesmente declarar que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (artigo 5º, § 1º).

A partir da nossa realidade constitucional, seria possível defender tanto a tese de que a eficácia horizontal não foi assimilada pela Constituição Federal de 1988, quanto a tese de que tal opção foi perfeitamente desenvolvida pelo Legislador Constituinte, na medida em que ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.

A negação da eficácia horizontal encontraria pelo menos três obstáculos de difícil transposição. O primeiro é que para defender a vinculação exclusiva dos órgãos de Estado aos direitos fundamentais, o jurista seria obrigado a reduzir a Constituição a um mero programa para a atuação estatal. Para tanto, seria necessário refutar toda a construção doutrinária moderna que consolidou a Constituição como norma jurídica de nível superior capaz de constituir, por si, situações subjetivas de vantagem e de vínculo, tal como visto no tópico 2.2.

O segundo obstáculo reside no fato de que a Constituição Federal de 1988 possui várias disposições de direitos fundamentais que regulam exclusivamente relações jurídicas entre particulares, ao contrário do que ocorre com outras Constituições, como a alemã, que possuem estrutura normativa concentrada em princípios.

O melhor exemplo é o catálogo de direitos fundamentais sociais dos trabalhadores contido no artigo 7º da Constituição Federal de 1988.

Todos os direitos previstos neste catálogo se dirigem exclusivamente aos trabalhadores vinculados à iniciativa privada, na medida em que os servidores públicos terão “regime jurídico único”, tal como previsto no artigo 37 da Carta Constitucional, que estendeu a estes trabalhadores apenas parte dos direitos fundamentais contidos no artigo 7º da Constituição Federal249.

Direitos como a participação nos lucros e resultados e o reconhecimento das convenções e acordo coletivo não fazem parte do patrimônio jurídico dos servidores públicos. São, portanto, direitos fundamentais que a própria Constituição destina exclusivamente aos entes particulares. Para não haver dúvidas sobre os destinatários de determinadas normas de direitos fundamentais, basta observar que o artigo 7º, § único, da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre direitos dos trabalhadores domésticos; uma inequívoca relação privada.

Por fim, seria necessária uma interpretação restritiva do artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988, o que envolve alguns problemas já referidos no item 2.4.1, supra.

A partir de uma leitura sistemática da Constituição Federal de 1988, consideramos impossível constatar qualquer limite à eficácia dos direitos fundamentais à relação cidadão-Estado. Ao contrário, a Carta Constitucional expressamente refere a direitos fundamentais que se desenvolverão exclusivamente nas relações privadas, o que nos leva a afirmar que a Constituição de 1988 optou por assimilar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. E o fez sob a tese de eficácia imediata, tal como consta em seu artigo 5º, § 1º.

249 Constituição Federal de 1988, artigo 39: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. [§} § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir”.

O problema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais parece ter sido solucionado pelo próprio legislador constituinte, tal como fez o constituinte português de 1976. Nesta dimensão, muitas das teorias sobre eficácia dos direitos fundamentais não têm o mesmo impacto no Brasil que têm em outros países, sobretudo na Alemanha. A importância destas teorias entre nós está concentrada mais no problema de aplicação do direitos fundamentais do que no problema da eficácia horizontal destes direitos, esta incontroversa.

3.3 A estrutura das normas de direitos fundamentais. O artigo