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Discurso (direto) citado antecipado e disseminado, oculto

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 155-158)

4 OS TIPOS DE DISCURSO E AS MANIFESTAÇÕES DAS RELAÇÕES

4.2 ESTILO PICTÓRICO

4.2.2 Discurso (direto) citado antecipado e disseminado, oculto

Próximo ao discurso direto esvaziado, por também trazer para o discurso autoral temas e palavras do herói, está o “discurso citado antecipado e disseminado, oculto no contexto narrativo e aparecendo realmente no discurso direto do herói” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 173, grifo do autor). Nessa ocorrência, palavras e expressões das personagens vão sendo lançadas no contexto autoral sem uma marcação – aspas ou itálico, por exemplo – que evidencie pertencerem tais palavras aos heróis. No discurso narrativo/autoral, termos e fragmentos de discurso das personagens aparecem disseminadas, mas são citados de modo oculto. Veja-se inicialmente uma passagem de Uma história desagradável76 de Dostoiévski, utilizada por Bakhtin/Volochínov (1929, p. 174) para discutir essa questão:

Naquele tempo, numa noite de inverno clara e gelada, por volta da meia-noite, três cavalheiros extremamente respeitáveis estavam sentados num aposento

confortável e até mesmo luxuosamente arrumado numa soberba casa de dois

andares, situada em São Petersburgo, e estavam ocupados em uma conversa séria

e de alto nível sobre um assunto extremamente interessante. Eles estavam

sentados à volta de uma mesinha, cada um numa soberba poltrona macia, e durante as pausas na conversa eles confortavelmente bebericavam champanha77.

Segundo Bakhtin/Volochínov (1929, p. 176), notam-se nesse exemplo “interferências de discurso”, pois as expressões grifadas pertencem concomitantemente à voz do narrador e às vozes das personagens. Porém na voz do narrador essas palavras são irônicas e na voz das personagens essas palavras são sérias. Tais expressões, que

75Na versão de Marxismo e filosofia da linguagem que estou utilizando aparece a expressão “discurso disperso” uma única vez, na

página 159. Acredito que não se trate de um outro tipo de discurso, mas do “discurso citado antecipado e disseminado, oculto”, pois o que na tradução brasileira aparece como “discurso disperso” é vertido como “discurso direto disseminado” tanto na tradução inglesa (disseminated direct discourse, VOLOSINOV, 1929, p. 122) quanto na de Miotello et al. (BAKHTIN, 1929, p. 81). Na versão em língua espanhola, a expressão utilizada é “discurso direto difuso” (discurso directo difuso, VOLÓSHINOV, 1929, p. 192).

76

Ou “Uma história lamentável” (DOSTOIÉVSKI, 1862), conforme título proposto na tradução de Gulnara Lobato de Morais Pereira.

77 Os grifos em itálico são de Bakhtin/Volochínov. Conforme pontuou a professora Fátima Bianchi, na qualificação da tese, há uma

notória semelhança entre essa passagem de Dostoiévski e a cena inicial do conto O espelho de Machado de Assis, em que um grupo de respeitáveis senhores se encontra em uma sala à noite conversando sobre assuntos da época.

caracterizam o discurso citado antecipado e disseminado, não estão entre aspas, pois não são palavras total ou exclusivamente das personagens. É como se o narrador/autor se apropriasse do discurso alheio, fazendo-o passar como discurso autoral/narrativo. Como denota a própria denominação desse discurso, as palavras citadas do outro estão “ocultas”.

Porém, conforme vão sendo ocultamente citadas, as expressões da voz de outrem são recobertas no contexto autoral com acentos – como o de ironia, no excerto acima – que fazem essas palavras se destacarem do contexto autoral, fazem-nas soar “estranhas”. Isso permite ao leitor divisar nessas palavras um enfrentamento de duas perspectivas, de dois acentos: os do autor/narrador e os da(s) personagem(ns). O discurso pertence ao contexto autoral, mas é, ao mesmo tempo, a expressão típica de determinado(s) herói(s).

De acordo com Bakhtin/Volochínov (1929, p. 175, grifo do autor), na passagem de Uma história desagradável transcrita anteriormente:

[...] cada palavra dessa narrativa pertence simultaneamente, do ponto de vista de sua expressividade, de sua tonalidade emocional, do seu relevo na frase, a dois

contextos que se entrecruzam, a dois discursos: o discurso do autor-narrador

(irônico, gozador) e o da personagem (que nada tem de irônico).

Como essas palavras pertencem a vários sujeitos do discurso – ao narrador e às personagens –, elas não são colocadas em evidência pelas aspas. O discurso da personagem se embaralha ao do narrador, seu discurso vai aparecendo “citado e disseminado” de forma oculta no discurso do narrador, até que venha a emergir na forma de discurso direto do herói.

Creio ser esse discurso exemplar daquela segunda corrente, em que, segundo Bakhtin/Volochínov (1929, p. 157), “a dominante do discurso é deslocada para o discurso citado; esse se torna, por isso, mais forte e mais ativo que o contexto narrativo que o enquadra”78. Se não for possível dizer que o discurso da personagem nesse exemplo é “mais ativo e mais forte” que o discurso do narrador, pelo menos, é cabível afirmar que o discurso das personagens se imiscui no discurso do narrador. O narrador não se coloca acima das personagens, mantendo as palavras delas a uma nítida distância. O discurso do

78 A propósito, a organização das relações dialógicas entre o discurso do narrador e o discurso da personagem nessa passagem de Uma

história desagradável é bastante próxima à interação discursiva estabelecida entre o narrador e a personagem Goliádkin na cena de O duplo examinada anteriormente como exemplo da segunda corrente do estilo pictórico (ver páginas 125 e 126).

narrador se deixa atravessar pelas palavras das personagens. O discurso do narrador, de certa maneira, é enfraquecido em sua autoridade, pois não se opõe claramente às palavras das personagens.

De todo modo, ao deixar que as palavras delas lhe atravessem o discurso, abre-se a possibilidade do narrador dar a essas palavras um acento diferente daquele originalmente presente nas vozes das personagens. Trata-se de um claro exemplo de relações dialógicas entre narrador e personagens, pois, mais do que falar sobre as personagens, o narrador parece dialogar com as personagens, a exemplo de uma conversação em que os interlocutores retomam as palavras do outro. No trecho de Uma história desagradável, o que se vê é um narrador discretamente irônico, que se apropria das palavras das personagens, utilizando-as como se fossem suas, para as por sob um sutil acento de ironia.

Procedimento análogo é encontrado em uma redação do Vestibular Unicamp 2000. No texto, o narrador ironiza a personagem, empregando enfaticamente o pronome possessivo “sua” para denotar o egoísmo do herói. Na passagem, descreve-se o estado de ânimo da personagem, um repórter, que decide investigar por que a água, a “sua” água, estava faltando havia dias:

Tal ideia veio, como num estalo, enquanto ele lia o texto sobre a falta de água, em um jornal de Campinas, na manhã daquela terça-feira. Achou os acontecimentos muito suspeitos. Manchas de óleo imensas o suficiente para comprometer a distribuição da sua água, sua, sua, para sua casa, despejadas em esgoto doméstico. Tantos e tantos litros de combustível que poderiam abastecer o seu automóvel por sabe-se lá quanto tempo, sendo jogados fora pelo ralo de uma pacata residência no interior paulista. Ou não. Era preciso investigar. (COMVEST, 2000, p. 129).79

No excerto, o narrador não destaca termos e expressões entre aspas para indicar que certas palavras são da personagem. O discurso da personagem aparece, assim, disseminado por entre o discurso do narrador. Isso possibilita que trechos como “sua água, sua, sua, para sua casa” sejam duplamente acentuados. O acento de revolta da personagem é recoberto pelo acento irônico de um narrador, que parece debochar do egoísmo de uma personagem capaz de pensar assim:

E ele, justo ele, um repórter de fé e de bem, cidadão pagador de impostos, estava obrigado a adaptar seu estilo de vida à escassez do simples e precioso líquido! Tinha vontade de gritar, postar-se diante da prefeitura e exigir o direito de lavar o seu rosto, o seu carro e o seu quintal. Estão ouvindo? – diria – eu quero lavar o meu quintal. E com água corrente! (COMVEST, 2000, p. 128).

Assim como no exemplo utilizado por Bakhtin/Volochínov, narrador e personagem figuram estar em lados opostos e nos dois casos as escolhas do narrador, antes de serem “defeitos” de estilo, marcam a ironia com que se matiza a voz do outro. A repetição do pronome “sua”, portanto, não é um problema no texto; pelo contrário, concorre para assinalar, ao mesmo tempo, o egoísmo da personagem e o desdém do narrador em relação a esse egoísmo. Isso se torna possível porque as palavras são da personagem, mas, ao mesmo tempo, vêm no discurso do narrador, que as coloca sob o matiz que lhe convém. A dubiedade é uma característica desse discurso, em que as palavras do outro vem “citadas”, “antecipadas”, “disseminadas” e “ocultas” em um discurso – do autor/narrador – que pode lhes dar uma orientação diversa, um acento outro.

Aliás, a redação mostra também outro aspecto apontado por Bakhtin/Volochínov: o fato de que essas palavras de outrem, que apareceram “antecipadas”, acabarão por se expressar, depois, “no discurso direto do herói”. Se do discurso do narrador já se depreende o egoísmo do repórter preocupado com “sua água, sua, sua, para sua casa”, seu individualismo seria confirmado em seu discurso direto, se tivesse oportunidade de gritar: “eu quero lavar o meu quintal. E com água corrente!”.

Observa-se, assim, que as relações dialógicas entre o discurso do narrador e da personagem se dão de tal modo que palavras desta são “citadas, antecipadas e disseminadas” no contexto autoral/narrativo, para, por fim, emergirem “no discurso direto do herói” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 173).

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 155-158)