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Discurso direto substituído

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 162-168)

4 OS TIPOS DE DISCURSO E AS MANIFESTAÇÕES DAS RELAÇÕES

4.2 ESTILO PICTÓRICO

4.2.4 Discurso direto substituído

O “discurso direto substituído” ocorre quando “o autor se apresenta no lugar do seu herói, diz em seu lugar o que ele poderia ou deveria dizer, o que convém dizer” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 178, grifo do autor). O exemplo desse discurso trazido por Bakhtin/Volochínov (1929, p. 177-178) é o seguinte trecho de O prisioneiro do Cáucaso de Púchkin:

“Apoiando-se sobre suas lanças, os cossacos observam o curso sombrio do rio, enquanto, ocultos pelo nevoeiro, um bandido e sua arma passam flutuando... O

que pensam vocês, cossacos? Recordam batalhas de anos passados?... Adeus, livres aldeias fronteiriças, casa paterna, tranquilo Don, guerra e jovens bonitas. O inimigo oculto alcançou nossas margens, a flecha deixa o cartaz, assobia e o cossaco tomba ensanguentado da barricada”.

Segundo Bakhtin/Volochínov (1929, p. 177), nessa passagem “o autor em pessoa fica aqui na frente da cena, substitui o seu herói, servindo-lhe de porta-voz”. Assim, todo trecho “Adeus, livres aldeias fronteiriças, casa paterna, tranquilo Don, guerra e jovens bonitas. O inimigo oculto alcançou nossas margens, a flecha deixa o cartaz, assobia e o cossaco tomba ensanguentado da barricada” seria um discurso em que o autor substitui o discurso da personagem.

Novamente creio ser esse um tipo de discurso filiado à segunda corrente do estilo pictórico, mas diferente dos discursos em que a palavra da personagem teria mais força que a do narrador ou, em algum sentido, se igualaria a esta, no caso do discurso direto substituído “o discurso narrativo avança contra a enunciação citada” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 172). A voz do autor ou narrador tem mais força que a da personagem, tanto que o autor ou narrador sente-se no direito de substituir com suas palavras as palavras da personagem. O autor/narrador diz no lugar da personagem o que ela “poderia ou deveria dizer, o que convém dizer” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 178, grifo do autor).

Apesar dessa dominância, não se trata de um discurso da corrente decorativa, pois as falas das personagens não são tomadas como objeto “decorativo”, a “cor” dessas palavras não é mais importante que seu sentido. Se, por exemplo, em muitas obras de Gógol o discurso do outro é veiculado de modo decorativo, como algo, inclusive, pouco sério e do que se pode zombar, no exemplo de Púchkin, o narrador encarra seriamente as palavras (e a posição) das personagens, tanto que se sente instigado a falar por elas o que elas mesmas não dizem ou talvez não consigam dizer. Trata-se de um discurso que, por ser importante em termos de sentido, é trazido para a responsabilidade do narrador. O narrador está tão interessado em dizer o que poderia ser dito pelas personagens, que, se estas não o fazem, ele faz. O narrador toma para si o dever de lembrar tudo que estava sendo perdido naquele momento: “Adeus, livres aldeias fronteiriças, casa paterna, tranquilo Don, guerra e jovens bonitas”. Em razão do “inimigo oculto” ter alçando as margens do rio, “a flecha

deixa o cartaz, assobia e o cossaco tomba ensanguentado da barricada”. A propósito, nesse trecho, a identificação do narrador com as personagens, coloca mesmo em xeque sua posição. Ora ele se coloca como mais um dos participantes da ação – o “inimigo oculto alcançou nossas margens” (grifo nosso) –, ora se distancia, falando da personagem como de uma terceira pessoa do discurso – “a flecha deixa o cartaz, assobia e o cossaco tomba ensanguentado da barricada” (grifo nosso). De todo modo, o narrador está interessado pelo destino das personagens, ainda que fale por elas, delas não se distancia, tanto que quase chega a se confundir com elas ou a se colocar como elas.

Exemplo de discurso direto substituído, semelhante a esse da substituição do discurso do outro pela voz do narrador, é encontrado em algumas das redações do corpus desta pesquisa, especialmente em textos do vestibular 2001, que trazia a seguinte proposta para confecção do Tema B (narração) (COMVEST, 2001, p. 101-102, grifo do autor):

Ser ou não ser, eis a questão.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Situações limite são uma constante, tendo sido retomadas tanto pela literatura como pela sabedoria popular.

Pensando nisso, escreva uma narrativa em primeira pessoa, na qual o narrador não seja o protagonista da ação. Considere os aspectos abaixo, que constituirão um roteiro para a sua narrativa, a qual pode corresponder a diferentes situações, como um drama familiar, uma questão de ordem psicológica, uma aventura etc.:

• uma situação problemática, de cuja solução depende algo muito importante;

• uma tentativa de solução do problema, pela escolha de um dos caminhos possíveis, todos arriscados: ultrapassar ou não ultrapassar uma fronteira;

• uma solução para o problema, mesmo que origine uma nova situação problemática.

Essa proposta solicitava que o narrador relatasse os conflitos pelos quais outra pessoa passava. Uma proposta que, a meu ver, influenciou a escolha de candidatos que optaram por descrever, através do discurso do narrador, certos dilemas interiores de uma personagem. A título de exemplo, transcrevo a seguir trecho de uma redação em que o narrador expõe, através de suas palavras, o drama interior pelo qual, supõe, outra personagem está passando. O narrador é o marido que discorre acerca das possíveis ponderações de sua esposa, Alberta, diante de um mendigo que revira o lixo, buscando comida. Segundo o narrador, a cena leva a mulher a refletir sobre vários aspectos de sua vida. Segue o trecho:

O lixo não sabia, mas pôs à prova a parte mais dura, a essência de Alberta, criada entre joias e perfumes franceses... Não podia, o que diria sua mãe se a visse convidando um mendigo para o jantar? O que diria seu pai? Suas tias? Lutou a vida toda para se esquecer que um dia ia apodrecer e chamou isso de viver bem. Como ia, agora, poder se aproximar de alguém que podia tirar vida daquilo que sempre chamou de morte? As fronteiras eram claras para ela! (COMVEST, 2001, p. 114-115).84

No fragmento, o narrador-personagem fala no lugar de outra personagem. Ele se coloca, em termos discursivos, à frente da cena para falar supostamente aquilo que sua mulher “poderia ou deveria dizer” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 178, grifo do autor). O narrador se sentir à vontade para falar no lugar da personagem, para falar por ela, atesta que o discurso do narrador está, de certo modo, acima do discurso da personagem.

Porém, diferentemente do que ocorre na corrente decorativa, não se negligencia nessa passagem “o significado de uma enunciação em favor de sua ‘cor’” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 157). As palavras do narrador que representam o pensamento de sua mulher são extremamente importantes do ponto de vista do sentido. É a representação desse suposto discurso interior que permite divisar as dúvidas de Alberta. Isso, aliás, é importante quando se considera o contexto da prova em que o candidato deve explicitar para a banca de correção – melhor seria dizer banca de avaliação – que a personagem atravessa “uma situação problemática”, está indecisa frente à “escolha de um dos caminhos possíveis, todos arriscados” (COMVEST, 2001, p. 101-102).

Ao representar as possíveis dúvidas da personagem – “Não podia, o que diria sua mãe se a visse convidando um mendigo para o jantar? O que diria seu pai? Suas tias?” –, o candidato atende à indicação da proposta, que solicitava a “exposição” dos conflitos de uma personagem frente a uma situação limite: “ultrapassar ou não ultrapassar uma fronteira” (COMVEST, 2001, p. 102).

A representação da suposta voz interior da personagem longe de ser algo “decorativo”, ou dispensável do ponto de vista do sentido, é não apenas importante como essencial para o texto e para a avaliação a que o candidato está submetido. O discurso direto substituído mostra a força da voz narrativa em relação à voz da personagem, mas isso não indica que esta seja dispensável. Como se vê pelos exemplos de Púchkin e da redação, a voz que o narrador toma sob sua responsabilidade é de grande importância para a condução do texto.

Mesmo que nesse caso “o discurso narrativo” avance “contra a enunciação citada” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 172), a voz citada e representada não é um elemento sobejo. A voz representa é importante para a narrativa e interessa diretamente ao narrador, seja por este ser parte do acontecimento narrativo, comungando das emoções das personagens, como no exemplo de Púchkin, seja por que o autor deve demonstrar o que vai na consciência de suas personagens, como no caso da redação, em que o narrador- personagem precisa – por imposição da proposta – descrever os conflitos (psicológicos) de outra personagem.

Tanto o exemplo de Púchkin quanto o da redação me levam a crer que o discurso direto substituído é propício à representação da (suposta) voz interior das personagens, já que o autor/narrador fala pelos heróis aquilo que eles mesmos não expressam em diálogos exteriores. Assim, o discurso direto substituído permite ao narrador dizer, pela personagem, aquilo que não sairia de sua boca, permanecendo em sua consciência, em seu diálogo interior. O discurso direto substituído permite mostrar ao leitor o que o herói não disse. Entretanto, como essas palavras são relevantes para a composição do texto, o autor ou narrador “se apresenta no lugar do seu herói, diz em seu lugar o que ele poderia ou deveria dizer, o que convém dizer”.

Passo agora a discutir os tipos de discurso indireto elencados por Bakhtin/Volochínov.

4.2.5 Discurso indireto sem sujeito aparente

Entre os discursos indiretos mencionados por Bakhtin/Volochínov (1929, p. 159) está o “discurso indireto sem sujeito aparente”85. Entretanto nada é dito a respeito desse discurso, apenas mencionado entre aqueles que “possuem maior flexibilidade e são mais permeáveis às tendências do contexto narrativo” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 159).

Diante disso, abstenho-me de procurar exemplos desse tipo de discurso, que é apenas brevemente citado. Reconheço, porém, que alguns autores têm, a partir de Marxismo e filosofia da linguagem, dado interpretações para o que seria esse “discurso quase indireto”. Segundo Boje & Smith (2005, p. 5, tradução nossa):

Discurso quase indireto [...] é a narração sobre o discurso falado, enquanto o discurso direto cita os falantes. Discurso quase indireto envolve a transposição de declarações pelo narrador. Há uma textura para [envolvendo] a história, o uso de pausas, preenchimento de lacunas, ou preenchimento no contexto, fazendo mais comentários, e usando construções mais expressivas (metáforas, ritmo de fala, etc.).86

Não encontrei, porém, em Marxismo e filosofia da linguagem alguma passagem que pudesse, a meu ver, sustentar essa glosa dos autores. Sigo, portanto, sem mais retornar a esse tipo de discurso, que, se é mencionado na obra, parece despertar pouco interesse de Bakhtin/Volochínov.

Apenas a título de informação, observo que esse discurso indireto sem sujeito aparente é listado na página 159 da edição utilizada de Marxismo e filosofia da linguagem

85

Denominado tanto na tradução espanhola quanto na inglesa de Marxismo e filosofia da linguagem como “discurso quase indireto”: respectivamente, “discurso cuasi indirecto” (VOLÓSHINOV, 1929) e “quasi indirect discourse” (VOLOSINOV, 1929, p. 122). Na tradução de Miotello et al. esse discurso é denominado “discurso indireto impróprio” (BAKHTIN, 1929, p. 81).

86 Quasi indirect discourse […] is a narration about the discourse spoken, whereas direct discourse quotes the speakers. Quasi indirect

discourse involves a transposition of utterances by the narrator. There is a texture to the story, the use of pauses, filling in the gaps, or filling in the context, making more commentary, and using more expressive construction (metaphors, rhythm of speech, etc.).

como pertencendo às variantes do estilo pictórico. Conforme já discutido na seção 4.1.3, isso é um problema, pois nessa tradução brasileira – de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira – a expressão “discurso indireto sem sujeito aparente” aparece ora se reportando a uma variante linear (na página 157), ora a uma variante pictórica (na página 159).

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 162-168)