• Nenhum resultado encontrado

OS TIPOS DE DISCURSO E AS RELAÇÕES DIALÓGICAS

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 180-189)

4 OS TIPOS DE DISCURSO E AS MANIFESTAÇÕES DAS RELAÇÕES

4.3 OS TIPOS DE DISCURSO E AS RELAÇÕES DIALÓGICAS

Para concluir esta seção, volto a discussões colocadas anteriormente, quando se questionou: qual o interesse das formas de citação para se entender o dialogismo?

Bakhtin/Volochínov (1929, p. 201) consideram que “as relações entre o discurso citado e contexto narrativo” tendem, no extremo, a tomar “uma forma análoga às relações entre linhas alternadas no diálogo”. A palavra citada, no limite, tende a se opor ao contexto autoral como uma réplica do diálogo se opõe a outra. Claro que isso não chega a acontecer, pois, então, ter-se-ia realmente um diálogo e não uma enunciação de um narrador ou autor que engloba palavras outras, palavras de outrem.

De todo modo, a relação entre o contexto autoral e a palavra citada se dá no sentido do diálogo; o contexto autoral tende a dialogar com a palavra citada. Quando mais forte for essa palavra citada, quando mais em pé de igualdade ela estiver com o contexto autoral, mais evidente será essa tendência ao diálogo. A narrativa se constrói, então, como um simulacro de diálogo em que a voz do autor/narrador dialoga com as vozes das personagens. Esse caso é mais marcante no discurso indireto livre, quando “o autor coloca- se no mesmo nível que sua personagem, e sua relação toma a aparência de um diálogo” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 201). Isso porque no discurso indireto livre os

94 A propósito, se no Brasil a denominação mais corrente é discurso indireto livre, focalizando o caráter transmissor desse discurso – um

discurso sob a responsabilidade do contexto autoral, um discurso relatado de modo indireto –, em várias outras línguas (como o espanhol e o inglês) a nomenclatura “discurso quase direto” coloca a ênfase no discurso citado, no discurso (quase) direto da personagem.

acentos de narrador e de personagens se apresentam concomitantemente, sem uma clara distinção de dominância entre eles.

Para ressaltar a importância das formas de citação na compreensão das relações dialógicas, sublinho que as observações de Bakhtin/Volochínov acerca desse ponto são realizadas a partir das seguintes questões, colocadas bem no início da terceira parte de Marxismo e filosofia da linguagem:

Como, na realidade, apreendemos o discurso de outrem? Como o receptor experimenta a enunciação de outrem na sua consciência, que se exprime por meio do discurso interior? Como é o discurso ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele tem sobre a orientação das palavras que o receptor pronunciará em seguida? (BAKTHIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 152)

Essas questões, com as quais iniciei o presente capítulo, lembram que todo o estudo das formas de citação empreendido por Bakhtin/Volochínov é um estudo da reação da palavra a palavra, da relação da palavra própria com a palavra do outro.

Segundo Ponzio (2011, p. 22):

Reportando a palavra outra, a palavra tem necessariamente que realizar ligações, conexões, tem que se combinar com a palavra outra, enfrentar os problemas de sintaxe. É justamente na sintaxe que se evidencia em grau máximo o encontro da palavra própria com a palavra outra, a sua relação de interação; e é, sobretudo, na sintaxe do discurso reportado, direto, indireto, indireto livre, que se evidencia o modo no qual se orienta a recepção e a transmissão da palavra outra, que se manifesta a disposição para a escuta e a dialogicidade constitutiva da enunciação.

Assim, mais do que elencar e classificar quais tipos ou variantes de discurso aparecem em um texto ou enunciado, o interesse da “sintaxe da enunciação”, conforme a expressão de Ponzio, é alertar que qualquer retomada da palavra alheia nunca é neutra. Pelo contrário, a escolha de um tipo de discurso e de uma variante para citar, para isolar ou diluir a palavra alheia mostra não apenas que existem concreta e textualmente relações dialógicas, mas atesta, além disso, existirem diferentes modos de ser fazer uma retomada dialógica. Desse modo, escolher citar a palavra do outro isolada entre aspas ou diluída na enunciação indica certas escolhas que o falante/escreve tem para assimilar e citar a voz do outro.

O modo de se apropriar da palavra alheia atesta como certas escolhas se filiam a ou contestam dados modelos de se fazer essa apropriação. Modelos esses que são comuns a

determinados campos da comunicação discursiva. Citar a palavra do outro marcadamente isolada e mostrada como do outro pode, por exemplo, ser importante na esfera científica, mas não tão necessária na esfera literária. Não se trata exclusivamente de uma imposição, mas dos efeitos de sentido que se consegue ao empregar um ou outro modo de referência à palavra do outro. Simplificando bastante a distinção entre o científico e o literário, é possível dizer que na esfera acadêmica citar a palavra do outro de modo isolado confere credibilidade ao contexto autoral e ainda evita a acusação de se apropriar indevidamente da palavra alheia. Na literatura, trazer sem marcações evidentes certas palavras ou expressões de um outro autor ou escola literária pode conferir certa valorização não apenas a quem cita, mas a quem lê. Autor e leitor dialogam com essas referências, identificam essas referências e, assim, reconhecem-se como leitores “proficientes” de certa literatura. Saber que determinadas palavras ecoam vozes alheias qualifica o autor, que conhece essas palavras e as emprega no sentido que lhe convém, e qualifica o leitor, que compartilha com o autor as referências implícitas indicadas no texto.

Cabe ainda mencionar que as colocações de Bakhtin/Volochínov levam a se questionar algumas definições dos discursos direto, indireto e indireto livre. Da perspectiva bakhtiniana, não se presume ser o discurso direto aquele que reproduz direta e fielmente a voz de outro. De acordo com os postulados bakhtinianos, observam-se os seguintes tipos de discurso direto: em estilo linear: (i) discurso direto “monumental”, (ii) discurso direto com sujeito não aparente, (iii) discurso direto retórico; em estilo pictórico: (i) discurso direto esvaziado, (ii) discurso (direto) citado antecipado e disseminado, oculto, (iii) discurso direto preparado e (iv) discurso direto substituído. A variedade de tipos de discurso direto já indica que nem todo discurso direto é igual.

Além disso, existirem discursos diretos em estilo linear e em estilo pictórico aponta para diferentes modos de relacionamento entre o discurso citante e o citado. Proponho apenas uma comparação. No discurso direto monumental, pertencente ao estilo linear, procura-se manter uma respeitosa distância em relação à palavra citada, a fidelidade às palavras citadas é uma condição indispensável desse discurso. Bem distinta é a relação entre o discurso citante e a palavra alheia no discurso direto substituído, quando não se tem a reprodução de um discurso do outro (discurso da personagem), mas a substituição do

discurso alheio pela voz do narrador/autor. No discurso direto substituído as palavras do outro não são fielmente reproduzidas em discurso direto. Ainda se tem o discurso direto, mas quem fala é o autor/narrador no lugar do outro.

Também as variantes do discurso indireto elencadas por Bakhtin/Volochínov mostram uma nova perspectiva para além da concepção comum do discurso indireto como a reprodução (neutra?) da voz outro, como um discurso simplesmente reportado. Comparar o discurso indireto analisador do conteúdo, variante do estilo linear, com o discurso indireto analisador da expressão, variante do estilo pictórico, já aponta uma diferença fundamental sob a denominação comum de discurso indireto. Se, na variante analisadora do conteúdo, o que mais importa é que “através da construção indireta, transpõe-se de maneira analítica sua composição objetiva exata (o que disse o falante)” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 166), bem diferente é o discurso indireto analisador da expressão, veiculado quando se procura mostrar mais o modo de expressão do que veicular “o quê” o outro disse. Para isso, integram-se “na construção indireta as palavras e as maneiras de dizer do discurso de outrem que caracterizam a sua configuração subjetiva e estilística enquanto expressão” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 168).

Veja-se, por exemplo, que, na passagem a seguir, o narrador isola uma expressão da personagem para mostrar seu modo típico de falar:

“Seu João era teimoso e impaciente, além de achar um absurdo que poderia ser ensinado por um ‘pivete’”. (COMVEST, 2011, p. 121)95. Nesse caso, isola-se dentro do discurso indireto a expressão “pivete” para marcar que esse modo típico de falar é da personagem e não do narrador. Se, por exemplo, o trecho fosse reproduzido como “Seu João era teimoso e impaciente, além de achar um absurdo que poderia ser ensinado por um pivete”, poder-se-ia acreditar que a expressão “pivete” pertencia ao narrador. Além disso, perder-se-ia um aspecto importante da narrativa: a expressão “pivete” mostra como João, um senhor que perdeu o emprego por não compreender certas tecnologias digitais, desvaloriza seu neto, um “pivete”, que domina tais tecnologias. Para João, seu neto está abaixo dele, é um “pivete”, daí se negar a aceitar que o jovem possa ensinar algo a ele.

Sob a denominação de discurso indireto, portanto, coexistem, pelo menos, dois modos de orientação para o discurso do outro: um mais interessado no conteúdo (o discurso indireto analisador do conteúdo), outro mais interessado na expressão (o discurso indireto analisador da expressão). É preciso lembrar, porém, que mesmo o discurso indireto analisador do conteúdo não é um discurso neutro, pois, ainda que buscando transmitir “apenas” o quê o outro disse, o autor/narrador sempre realiza suas opções nesse processo de transmissão, sempre conjuga na voz do outro seu ponto de vista.

Bakhtin/Volochínov detêm-se ainda a estudar o discurso indireto livre, trazendo para discussão vários autores que até aquele momento, início do século XX, já haviam se dedicado a analisar o fenômeno. A diversidade de opiniões expostas nessa retrospectiva já mostra suficientemente haver muitas maneiras de se abordar o discurso indireto livre.

De todo modo, pretendo discutir especialmente a partir da perspectiva bakhtiniana que o discurso indireto livre não é apenas um discurso em que não se consegue distinguir a voz do autor/narrador da voz personagem. Mais do que isso, no discurso indireto livre, como bem assinalam Bakhtin/Volochínov, não se tem apenas duas vozes, mas dois acentos. Em exemplo anteriormente comentado, o trecho de O idiota analisado por Bakhtin/Volochínov, em uma frase como “E por que então o príncipe agora não se aproximou dele [de Rogójin]?” não há apenas o acento do príncipe recobrindo o enunciado, há também o acento do narrador. Como indiquei se, de algum modo, o acento do príncipe é de “inconformismo”, talvez o acento do narrador seja de alguma “piedade”.

Assim, mais do que duas vozes, o que se apresenta no discurso indireto livre são dois pontos de vista diversos, possibilitados pelo fato de que, em uma mesma construção sintática, ressoam vozes de dois sujeitos, singulares em suas posições discursivas.

Dito isso, é preciso discordar da opinião de Miotello (2012, p. 162), segundo a qual:

Os discursos do eu e do outro podem ser misturados diretamente (discursos diretos), mantendo seus limites como uma cerca, indiretamente (discursos indiretos), com seus limites bem apagados, com numa pintura em que as tintas se misturam, ou mesmo de forma livre, praticamente irreconhecíveis como sendo do outro (discursos indiretos livres).

O que se nota, na verdade, é que nem sempre o discurso direto mantém “como uma cerca” os limites entre a voz do eu e do outro, nem sempre esses limites estão “bem

apagados” no discurso indireto e que o fundamental no discurso indireto livre não é estarem “praticamente irreconhecíveis” os limites entre o discurso citante e o citado. Veja-se, por exemplo, que no discurso direto substituído não há uma evidente “cerca” entre os discursos do narrador e das personagens, já que o narrador/autor se encarrega de dizer pela personagem aquilo que ela “poderia ou deveria dizer, o que convém dizer” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 178, grifo do autor). Por sua vez, nem sempre se observa no discurso indireto “limites bem apagados” entre o contexto autoral e a voz da personagem, haja vista no discurso indireto analisador da expressão o recurso às aspas, que isolam explicitamente determinadas expressões da personagem, marcando-as como pertencentes ao outro.

Também no que se refere ao discurso indireto livre, é preciso pontuar, como indicam Bakhtin/Volochínov (1929, p. 186), ser fácil para o leitor entender que esse “do ponto de vista estritamente gramatical” é um “discurso do autor” (ou do narrador) e “conforme o sentido” é um discurso “do herói”. Mais relevante que isso é a possibilidade de se conjugarem no discurso indireto livre os acentos da personagem e do narrador/autor.

De todo modo, o mais importante não é conseguir classificar com precisão os discursos em todos os tipos e variantes elencadas por Bakhtin/Volochínov, mas vislumbrar, no estudo das formas de citação, amostras das formas de relacionamento com a palavra do outro. Mais relevante do que conseguir rotular com exatidão um tipo ou variante de determinado discurso é entender que cada tipo e variante do discurso expressa um modo de relacionamento com a palavra alheia. O discurso citado mostra que as relações sintáticas são mais do que isso: são relações entre enunciados. Como os enunciados não existem sem enunciadores, através das formas de citação observam-se relações intersubjetivas, relações discursivas, relações dialógicas. Nas relações dialógicas há vínculos que perpassam as relações sintáticas, as relações entre enunciados, as relações entre enunciadores.

Dizer, por exemplo, que o discurso indireto utiliza, no caso da língua portuguesa, índices de terceira pessoa enquanto o discurso direto se fundamenta nos índices de 1ª pessoa é estar ainda bastante distante da perspectiva bakhtiniana, por desconsiderar que conjuntamente às relações sintáticas estão relações entre enunciados. Mais interessante, por exemplo, do que sublinhar os índices gramaticais que diferenciam o discurso direto do

indireto, é entender que as relações entre esses discursos estão fundamentadas por vozes. São vozes que são retomadas e transmitidas em discurso direto ou indireto. E a opção por transmiti-las através de um ou outro discurso mostra a relação entre os enunciadores, a liberdade ou o respeito que um sujeito mantém quando vai citar ou se referir à voz do outro. Conforme frisam Bakhtin/Volochínov, nas relações sintáticas estabelecidas nas citações se deixam ver relações entre os enunciadores.

Se, nas análises, busquei elencar os tipos de discurso e, dentro do possível, examinar separadamente cada variante do discurso, é preciso notar que esperava, assim, organizar melhor a exposição, facilitar ao leitor a incursão por conceitos que se apresentam diluídos nos textos bakhtinianos. Essa exposição, contudo, pode levar à falsa sensação de que uma variante de discurso se concretiza isoladamente, enquanto o mais comum é que os diferentes tipos e variantes se relacionem na tessitura do texto.

Apenas para dar um exemplo, lembro que, mesmo quando se procura isolar a palavra do outro, como ocorre no discurso direto monumental, é comum a interação entre diferentes discursos. Se o discurso direto monumental é isolado é porque ele surge nas linhas de um outro discurso, é porque ele emerge de determinado contexto autoral. Se uma citação direta monumental é expressa em um artigo acadêmico, essa palavra do outro precisa de um contexto reportante, de uma voz que a envolva e a sustente.

Creio ser o discurso indireto analisador do conteúdo um dos discursos mais propícios para conferir essa moldura ao discurso citado monumental. Haveria, assim, uma relação entre o discurso indireto analisador do conteúdo e o discurso direto monumental. As palavras deste seriam de base para a discussão proposta naquele, como ocorre frequentemente em textos acadêmicos em que a fala do outro é trazida (muitas vezes, isolada graficamente) para ser parafraseada, confirmada, contestada, completada, debatida.

Como notam Bakhtin/Volochínov (1929, p. 168), a variante analisadora do conteúdo “é encontrada essencialmente nos contextos epistemológicos ou retóricos (de natureza científica, filosófica, política, etc.), nos quais o autor é levado a expor as opiniões de outrem sobre um determinado assunto, a opô-las e delimitá-las”.

Uma das formas de expor essas opiniões de outrem seria o discurso direto monumental, que propicia ainda oportunidade para “delimitar” a palavra do outro, fazendo-

a se destacar como alheia. Nos contextos científicos e retóricos em que frequentemente o autor é convidado a ilustrar sua opinião com vozes alheias, pode ser um recurso valioso estruturar o texto através da interação entre a voz do outro, citada em discurso direto monumental, e a voz própria, verbalizada no discurso indireto analisador do conteúdo, através do qual se analisa e comenta a voz do outro, através do qual é possível citar “opiniões de diversos autores sobre um dado problema – algumas para refutar, outras para confirmar e completar” (BAKHTIN, 1929/1963, p. 215).

Em síntese, o mais relevante das análises empreendidas é perceber a necessidade de se rever estudos que ainda assumem os tipos de discurso como um fenômeno puramente linguístico e estrutural, sem considerar as relações discursivas e dialógicas que os sustentam. É importante considerar que os modos de apropriação e de citação das palavras alheias mostram que “a realidade linguística se apresenta para” o sujeito “primordialmente como um mundo de vozes sociais em múltiplas relações dialógicas” (FARACO, 2003, p. 80), que podem ser relações de “consonâncias”, “dissonâncias”, enfim, de “multissonâncias” (FARACO, 2003, p. 66).

Estudar o fenômeno das citações como algo estritamente linguístico é desconsiderar que, nos enunciados, não se tem apenas “um complexo de relações entre palavras, mas [...] um complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas” (FARACO, 2003, p. 64). Pessoas que têm seus interesses na recepção e na divulgação das palavras alheias, daí porque escolhem certas formas de citação para marcar ou apagar, dentro de alguns limites, os enunciados do outro integrados no enunciado próprio.

Como coloca Bakhtin (1929/1963, p. 223):

O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas.

É através da palavra do outro e com a palavra do outro que constituo a minha, independentemente de estar consciente a respeito do meu discurso ser sempre, em algum sentido, alheio.

5 EXAME DAS RELAÇÕES DIALÓGICAS EM ALGUMAS NARRATIVAS DO

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 180-189)