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Discurso indireto analisador da expressão

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 168-174)

4 OS TIPOS DE DISCURSO E AS MANIFESTAÇÕES DAS RELAÇÕES

4.2 ESTILO PICTÓRICO

4.2.6 Discurso indireto analisador da expressão

Um segundo tipo de discurso indireto apontado por Bakhtin/Volochínov é o “discurso indireto analisador da expressão” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 167), também chamado “discurso indireto analítico da textura do discurso” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 159)87. Segundo Bakhtin/Volochínov (1929, p. 166, grifo do autor), no discurso indireto analisador da expressão se busca:

[...] apreender e transmitir de forma analítica a enunciação de outrem enquanto

expressão que caracteriza não só objeto de discurso (que é, de fato, menor) mas

ainda o próprio falante: sua maneira de falar (individual, ou tipológica, ou ambas); seu estado de espírito, expresso não no conteúdo mas nas formas do discurso (por exemplo, a fala entrecortada, a escolha da ordem das palavras, a entoação expressiva, etc.); sua capacidade ou incapacidade de exprimir-se bem, etc.

No discurso indireto analisador da expressão, mais do que transmitir o “conteúdo” que o outro disse, o objeto de seu discurso, pretende-se mostrar, através da “expressão”, o modo individual e/ou tipológico da voz citada.

Por isso o discurso indireto analisador da expressão:

[...] integra na construção indireta as palavras e as maneiras de dizer do discurso de outrem que caracterizam a sua configuração subjetiva e estilística enquanto expressão. Essas palavras e maneiras de dizer são introduzidas de tal forma que sua especificidade, sua subjetividade, seu caráter típico são claramente percebidos. Na maioria das vezes elas são colocadas abertamente entre aspas (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 168).

87 Na versão inglesa, “modificação [do discurso indireto] analisador da textura” (texture-analyzing modification, VOLOSINOV, 1929, p.

130); na versão espanhola “modalidade analítico-discursiva” (modalidad analítico-discursiva, VOLÓSHINOV, p. 202). Na tradução de Miotello et al. “variante analítica da palavra ou variante analítico-verbal” (BAKHTIN, 1929, p. 93).

Trata-se de um discurso indireto que se abre para inserção de algumas palavras do discurso da personagem. Essas palavras da personagem, isoladas geralmente por aspas, servem para mostrar seu modo típico de falar, sua expressão particular. Um dos exemplos trazidos por Bakhtin/Volochínov para ilustrar esse tipo de discurso é a passagem de Os irmãos Karamázov em que se descreve parte do julgamento de Mítia, acusado de matar seu pai. Durante o julgamento são convocados alguns poloneses que haviam encontrado o alcoolizado Mítia em um bar, momento em que ele ostentava muito dinheiro (“largas somas de dinheiro”). Suspeita-se que Mítia teria assassinado o pai, a fim justamente de roubar esse dinheiro. Observe-se o trecho:

A mesma coisa aconteceu também com os poloneses: eles chegaram com uma demonstração de orgulho e independência. Afirmaram em alta voz que, em primeiro lugar, estavam “a serviço da coroa” e que “a senhor Mitia” oferecera três mil rublos para comprar a honra deles, e que eles tinham visto com seus próprios olhos largas somas de dinheiro nas mãos deles. (Trecho de Os irmãos

Karamázov). (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 168).

No fragmento em questão nota-se que certas palavras dos poloneses são colocadas entre aspas pelo narrador, seja para ironizar a importância que se dão – pois faziam questão de dizer que estavam “a serviço da coroa” –, seja para mostrar que como estrangeiros não dominavam o russo, construindo expressões impróprias conforme procura destacar a tradução de “a senhor Mítia” com artigo feminino inadequado ao substantivo masculino a que se refere88.

Creio que esse tipo de discurso é, mais uma vez, exemplar daquela corrente do estilo pictórico em que “as palavras citadas espalham-se e enxameiam por todo o contexto narrativo, tornando o flexível e ambíguo” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 172). O contexto autoral se deixa atravessar pelas palavras do outro.

É de se notar, porém, que as palavras alheias são trazidas ao contexto autoral sob forte influência do autor/narrador que seleciona “as palavras e as maneiras de dizer do

88 Apenas a título de comparação, na tradução de Paulo Bezerra de Os irmãos Karamázov o trecho é vertido do seguinte modo: “O

mesmo aconteceu com os polacos: estes se apresentaram de forma ativa e independente. Testemunharam em voz alta, dizendo que, em primeiro lugar, ambos ‘haviam servido à Coroa’, e que ‘pan Mítia’ lhes havia proposto três mil para lhes comprar a honra, e que eles mesmos haviam visto muito dinheiro nas mãos dele”. (DOSTOIÉVSKI, 1881, p. 867, grifo do autor). Nessa tradução em vez de “a senhor Mítia” aparece “pan Mítia”. Conforme explica Bezerra (2010a, p. 162), em nota ao conto Viy (GÓGOL, 1832-1842): “A palavra

pan, de origem polonesa, significa fazendeiro, nobre e senhor, em relação aos servos na Ucrânia e Bielorrússia. Tem o sentido, ainda, de

discurso de outrem” que julga apropriadas para caracterizar a “configuração subjetiva e estilística” da voz alheia. É o autor/narrador que escolhe quais palavras alheias deixará atravessar seu discurso e, além disso, colocará o discurso do outro sob seu acento. O autor/narrador tem liberdade para destacar certas palavras da personagem e acentuá-las sob sua perspectiva. No trecho de Os irmãos Karamázov reproduzido anteriormente, por exemplo, as palavras das personagens colocadas em evidência estão sob o tom irônico do narrador, que marca de modo cômico a fala dos poloneses.

Exemplo similar, embora sem o viés irônico, é visto na passagem a seguir de uma redação do vestibular Unicamp 2007. No trecho, o narrador relata a conversa entre a personagem Lúcio e sua mãe, quando ele tenta explicar a ela a situação financeira da fazenda da família:

“Lúcio explicou que eles não poderiam desperdiçar o ‘capital de giro’ da fazenda, que ficariam ‘descapitalizados’ e que tais ideias eram um despropósito, principalmente naquele momento, em que pretendiam aumentar as exportações de oleaginosas!” (COMVEST, 2007, p. 143)89.

Esse exemplo se aproxima do exemplo utilizado por Bakhtin/Volochínov porque também nesse caso o narrador destaca entre aspas algumas palavras da personagem, para marcar expressões que denotam seu modo típico de falar. Na redação são colocadas em evidência as expressões “capital de giro” e “descapitalizados” à semelhança do trecho de Dostoiévski em que “a serviço da coroa” e “a senhor Mitia” aparecem isoladas entre aspas, para sublinhar o modo típico de falar das personagens.

Se, no excerto de Os irmãos Karamázov, o narrador anuncia que os poloneses “Afirmaram em voz alta que...” (grifo nosso), no trecho da redação, o narrador relata que “Lúcio explicou que...” (grifo nosso). Nos dois fragmentos, o narrador propõe reproduzir a fala – conforme marcam os verbos dicendi “afirmaram” e “explicou” – alheia, que será relatada em discurso indireto após a conjunção “que”. E o discurso das personagens será, realmente, relatado em discurso indireto até que, em certo momento, inserem-se entre aspas determinadas expressões que servem para distinguir a fala das personagens.

No caso da redação, as expressões “capital de giro” e “descapitalizados” caracterizam a personagem Lúcio, que se coloca como alguém mais atualizado que a mãe em termos de conhecimento sobre o mundo dos negócios, conforme se faz notar justamente pelos termos destacados. Trata-se, assim, de uma “construção indireta” em que “as palavras e as maneiras de dizer do discurso de outrem que caracterizam a sua configuração subjetiva e estilística enquanto expressão [...] são introduzidas de tal forma que sua especificidade, sua subjetividade, seu caráter típico são claramente percebidos” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 168).

Um ponto a se comentar é a possível relação do discurso indireto analisador da expressão em sua conexão com o “discurso [direto] citado antecipado e disseminado, oculto”, o qual precisa de um terreno em que se apoie. Esse terreno, parece-me, é o discurso indireto analisador da expressão. O discurso das personagens poderia ser “antecipado e disseminado”, surgindo nas linhas do discurso indireto analisador da expressão, que integraria “na construção indireta as palavras e as maneiras de dizer do discurso de outrem que caracterizam a sua configuração subjetiva e estilística enquanto expressão” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 168). No caso do discurso citado antecipado e disseminado, oculto, porém, diferentemente dos exemplos analisados, as palavras alheias não são “colocadas abertamente entre aspas” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 168), como comumente ocorre no discurso analisador da expressão. No trecho de Os irmãos Karamázov e na redação, as expressões típicas das personagens são marcadas pelas aspas, como que para se ressaltarem do contexto autoral. Diferentemente disso, no trecho de Uma história desagradável, analisado na seção 4.2.2, “as palavras e as maneiras de dizer do discurso de outrem que caracterizam a sua configuração subjetiva e estilística enquanto expressão” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 168) aparecem “ocultas”, sem aspas que marquem esse discurso como alheio.

A meu ver, ambos os casos mostram a interação entre a palavra outra, a palavra da personagem, e o contexto autoral, realizado através de discurso indireto analisador da expressão. A diferença é que, em uma ocorrência, a voz do outro vem abertamente marcada como alheia através das aspas; em outra manifestação dessa interação entre o contexto autoral e o discurso da personagem as expressões desta aparecem “ocultas”, sem uma

marca gráfica que abertamente a diferencie da voz do autor/narrador. Mesmo que no discurso indireto analisador da expressão observe-se que na “maioria das vezes” as palavras alheias “são colocadas abertamente entre aspas” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 168), pode ser também que essas palavras não sejam graficamente destacadas do contexto autoral, como ocorre nos casos de discurso direto citado, antecipado, disseminado e oculto.

Ainda neste tópico, é importante lembrar que, segundo Bakhtin/Volochínov (1929, p. 168), convém distinguir o discurso indireto analisador da expressão “dos casos de passagem do discurso indireto ao direto sem modificações”, embora reconheça que “suas funções são praticamente idênticas”.

Se o exemplo anterior que contém a fala dos poloneses é ilustrativo do discurso indireto analisador da expressão, o exemplo seguinte, retirado por Bakhtin/Volochínov de Os irmãos Karamázov, seria um daqueles casos em que “o discurso direto continua o indireto”:

Trífon Boríssovitch tentou como pôde ser evasivo, mas depois de ter sido questionado pelos camponeses, acabou confessando que tinha achado a nota de cem rublos; acrescentou somente que ele tinha no mesmo momento devolvido tudo escrupulosamente a Dmítri Fiódorovitch, “palavra de honra, só que, vocês veem, o cavalheiro, como estava naquele momento completamente bêbado, não consegue lembrar-se”. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 169).

Embora Bakhtin/Volochínov não discutam essa diferença detalhadamente, creio que esse exemplo se distingue do outro pela “extensão” da voz alheia isolada entre aspas. Se no exemplo dos poloneses apenas pequenos fragmentos – “a serviço da coroa” e “a senhor Mitia” – da voz das personagens são colocados entre aspas para expressar seu modo típico de falar, no segundo exemplo se vê o discurso indireto do narrador ser imediatamente completado por um “razoavelmente extenso” discurso direto da personagem. No exemplo da fala dos poloneses apenas algumas palavras são usadas pelo narrador para caracterizar o modo típico de expressão das personagens, sendo o narrador o principal responsável pela transmissão do discurso alheio. No segundo exemplo, o narrador vai transmitindo a palavra do outro até o ponto em que cede seu discurso para a inserção da voz direta da personagem. Além disso, parece-me que, no caso do discurso direto imediatamente após o indireto, o autor marca menos sua apreciação da palavra alheia do que no discurso indireto

analisador da expressão, em que o autor ou narrador destaca certas palavras alheias, marcando com evidência uma determinada posição valorativa em relação a elas. Não que a fala da personagem imediatamente após o contexto autoral não seja matizada pela orientação e pelo acento do autor/narrador. Por emergir do contexto autoral, é impossível que a voz da personagem não receba os reflexos da voz do autor/narrador, não sinta a sombra que o contexto autoral deita sobre a voz do herói.

Ocorre que no discurso indireto analisador da expressão, quando se destacam certas palavras da personagem, essas palavras sublinhadas são colocadas em ênfase. É como se o autor/narrador dirigisse a atenção do leitor para essas palavras. Veja-se, por exemplo, que as expressões “a serviço da Coroa” e “a senhor Mítia” colocadas em relevo pelo narrador de Os irmãos Karamázov adquirem uma proeminência, evidenciando a ironia com que o narrador grifa essas expressões. Quando o discurso direto do herói segue imediatamente após o discurso do autor/narrador, também se pode depreender o modo típico de falar das personagens, sua expressão. Porém, neste caso, a ênfase não estaria tanto nas expressões individuais empregadas por este ou aquele personagem, mas no sentido de suas palavras, naquilo que elas comunicam. Tão importante quando seu modo de falar são as informações veiculadas na voz da personagem, que completa o fio discursivo conduzido pelo narrador/autor.

Como neste momento o contexto autoral cede espaço à voz do outro, à voz da personagem, creio, mais uma vez, tratar-se de uma interorientação entre o contexto autoral e a voz do herói pertencente à segunda variante do estilo pictórico (variante esta não nomeada por Bakhtin/Volochínov).

Seria um daqueles “casos em que o discurso narrativo avança contra a enunciação citada” (BAKHTIN/VOLÓCHINOV, 1929, p. 172), pois, conforme notam Bakhtin/Volochínov (1929, p. 169), nos casos de passagem imediata do discurso indireto (do narrador/autor) para o discurso direto (das personagens): “a subjetividade do discurso [citado] aparece com maior nitidez e no sentido que convém ao autor”. O autor/narrador dá espaço à voz da personagem, quando e no sentido que lhe convém. No exemplo anterior da fala de Trífon Boríssovitch, é como se, a partir de determinado momento, o narrador

preferisse dar a palavra à personagem para mostrar, através da voz dela, seu embaraço tentando explicar os motivos do sumiço do dinheiro.

Mesmo que, nesse caso, mostre-se a força do contexto autoral e a distância a que o narrador/autor pode se manter da personagem, não se trata de um caso de variante decorativa do estilo pictórico, já que as palavras da personagem veiculam informações importantes, que não estão empregadas apenas de modo caracterológico e decorativo. Ou seja, o discurso alheio é exemplar da segunda orientação do estilo pictórico, pois o conteúdo da voz da personagem é importante. Mesmo que esse discurso seja recebido a partir da orientação do contexto autoral, a voz do herói é fundamental, suas palavras não são, de modo algum, dispensáveis. A própria interação entre a voz narrativa, que cede espaço para a voz do herói, mostra que, embora nesse caso seja marcante a gerência da voz do autor/narrador, a voz alheia ainda é considerada e trazida para o diálogo.

Isso pode parecer incoerente, uma vez que, em vários momentos, especialmente em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin afirma que na literatura dostoievskiana o narrador não se coloca acima da personagem. Lembre-se, porém, que Bakhtin também concebe a possibilidade de uma obra conjugar vários tipos e variantes de discurso. Assim, o fato de, nesse trecho, o narrador preparar a emergência do discurso da personagem não significa que, em toda a extensão da obra ou em todas as obras de Dostoiévski, o narrador sempre se coloque acima da personagem, sempre imponha certa orientação para as palavras alheias, para o discurso (citado) do outro. Ocorrências como essa não contradizem a percepção bakhtiniana de que, em grande parte da escrita dostoievskiana, a voz da personagem “é como se soasse ao lado da palavra do autor” (BAKHTIN, 1929/1963, p. 5, grifo do autor). Até mesmo porque, como se notou, a palavra do herói não está a pretexto, é relevante, é importante para a narrativa e para o diálogo.

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 168-174)