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Discurso direto esvaziado

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 148-155)

4 OS TIPOS DE DISCURSO E AS MANIFESTAÇÕES DAS RELAÇÕES

4.2 ESTILO PICTÓRICO

4.2.1 Discurso direto esvaziado

71 “Discurso direto reificado” nas traduções espanhola (discurso directo reificado, VOLÓSHINOV, 1929, p. 210) e de Miotello et al

(discurso direto reificado, BAKHTIN, 1929, p. 101) ou “discurso direto particularizado” na tradução para o inglês (particularized direct

No discurso direto esvaziado, o “contexto narrativo” “é construído de tal forma que a caracterização objetiva do herói, feita pelo autor, lança espessas sombras sobre o seu discurso direto” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 172-173). Para ilustrar esse tipo de discurso, Bakhtin/Volochínov sugerem a seguinte comparação:

“De maneira semelhante, quando reconhecemos uma personagem cômica no palco por seu estilo de maquilagem, sua roupa e sua atitude geral, já estamos prontos a rir mesmo antes de apreender suas palavras” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 173).

A descrição do autor ou do narrador acerca da personagem já indica, de antemão, como será o discurso dela. A voz da personagem seria concebida para corroborar a caracterização previamente feita pelo narrador.

Segundo Bakhtin/Volochínov (1929, p. 173), “é assim que se apresenta, na maior parte das vezes, o discurso direto em Gógol e nos representantes da chamada escola natural72. Na sua primeira obra, Dostoiévski precisamente esforçou-se por dar vida a esse discurso direto particularizado”.

A primeira obra de Dostoiévski é Gente Pobre, pequeno romance de caráter epistolar, constituído pela justaposição das cartas trocadas entre os protagonistas Makar Diévuchkin e Varienka. Supostamente a maneira como essas personagens se expressam mostraria de que modo o autor pode lançar “espessas sombras” no “discurso direto” das personagens a fim de caracterizá-las. O discurso direto das personagens seria usado pelo autor, de acordo com sua vontade, na composição da imagem delas.

Sugiro, então, a apreciação de um excerto de Gente Pobre, em que Makar Diévuchkin escreve a Varienka, reconhecendo sua incapacidade de “escrever alguma coisa mais complicada”, pois é um “homem velho” e “sem estudos”:

E não me leve a mal, minha filha, por lhe escrever uma carta dessas; ao relê-la vejo que está tudo tão incoerente. Sou um homem velho, Várienka, sem estudos, quando era jovem não aprendi direito, e agora, mesmo que recomeçasse a estudar, não me entraria nada na cabeça. Reconheço, minha filha, que não sou nenhum mestre da descrição, e sei, sem ninguém precisar apontar e ficar rindo, que, se

72 Segundo Bianchi (2006, p. 98), a escola natural procura mostrar “a vida das pessoas pobres da cidade e exigia dos escritores

objetividade de representação, ou seja, que acentuassem em suas obras a ‘verdade da vida’, a obra literária deveria possuir um caráter de protesto e de crítica social evidente”. A tentativa de caracterizar as personagens com fidedignidade, porém, leva certas obras da escola natural a esbarrem no caricatural. Assim, por exemplo, carrega-se nas cores ao se representar a linguagem de um “funcionário pobre”, como em O capote (1842) de Gógol.

quisesse escrever alguma coisa mais complicada, sairia uma porção de disparates. (DOSTOIÉVSKI, 1846a, p. 22-23).

No fragmento, o próprio Diévuckhin reconhece sua escrita como pouco rebuscada, o que talvez mostre que Dostoiévski procurava expor a “verdade da vida” (BIANCHI, 2006, p. 98) de suas personagens também em termos das expressões por elas usadas. Nesse caso, a escrita de Diévuckhin corrobora a imagem de uma pessoa sem estudos, cujas cartas não são exemplares de certos modelos de beletrismo. O discurso da personagem serve para reafirmar sua identidade social, para enfatizar sua baixa instrução. Sua forma de expressão assemelha-se a uma “maquilagem”, a auxiliar o leitor a reconhecê-la como pertencente a determinado grupo social.

Acredito que o discurso direto esvaziado pertence à “corrente decorativa”73, na medida em que o autor/narrador tem liberdade “no tratamento do discurso citado” do outro para até “negligenciar o significado de uma enunciação em favor de sua ‘cor’” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929, p. 157). Seria um discurso caricatural, empregado para caracterizar (ou ajudar a caracterizar) a personagem. Mais relevante que o “significado” da enunciação, seria a “cor” do discurso, utilizado para sublinhar as idiossincrasias do falante. Mais ou tão importante quanto transmitir o que a personagem fala é assinalar seu modo típico de falar, o que relevaria suas características, reiterando a descrição já proposta pelo autor/narrador.

Certo é que qualquer representação do discurso (de personagem ou não) é, em algum sentido, um modo de descrever a pessoa por seu discurso, pois a forma de expressão indica particularidades individuais e sociais. Assim, por caricatural entendendo um discurso deliberada e exageradamente empregado com a finalidade de distinguir uma personagem. Assumindo o risco de uma gradação “pouco científica” entre discursos pouco ou muito caricaturais, julgo que as representações do discurso direto esvaziado são pertinentes ao âmbito do notadamente caricatural.

73 No excerto anteriormente analisado de O capote, a fala de Akáki Akákievitch possivelmente pertença à corrente decorativa e seja um

Dito isso, segue um exemplo de uma redação do vestibular Unicamp 2000. Na passagem, um repórter investigativo é abordado por uma mulher que tenta ajudá-lo a entender o mistério que os cerca: a origem de um derramamento de óleo no rio Atibaia.

A confusão ainda era grande quando Álvaro encerrou a entrevista e decidiu ir embora para preparar a manchete do dia seguinte. Já afastado do tumulto, Diguinho, como era chamado o repórter Álvaro Rodrigues – recém-formado, trabalhava no Jornal Diário Popular; sangue novo, saliva ao pensar numa grande matéria, todavia sua boca andava meio seca e angustiosa... Diguinho queria uma matéria de arrepiar a sua carne! – Cabisbaixo, frustação e ódio reviravam suas vísceras... “FAÇA BEM FEITO; O BARULHO DEVE SER GRANDE” essas palavras cresciam, cresciam e atordoavam sua mente, eram as ordem de seu chefe João Brandão, e, quando o seu pensamento já o ensurdecia, eis que uma voz rouca e cálida o vem calar:

– Homi branco! Bão pai e marido! Tá ficano preto! – arruma o cigarro caído no canto da boca, respira fundo. – Tá ficano vermeio igual esse braço cheio de terra. De um profundo gelo na espinha que lhe roubara a cor da bochecha avermelhada, Diguinho dirige-se à mulher de cabelos brancos que cobriam, despenteados, o seu rosto:

– Que tremendo susto a senhora me deu! Falou comigo? Quer dar alguma declaração?

– Essa história tá pela metade, meu fiüo! Tá pela metade mais os grande nunca morre!

– Minha senhora, não posso entendê-la! Aguarde um minuto vou pegar meu gravador.

Quando virou-se Diguinho era tarde demais, desapareceu da mesma forma que apareceu. (COMVEST, 2000, p. 154-156)74.

O discurso direto da “senhora” com a qual o repórter fala é bastante caricatural. Mesmo que pouco seja dito acerca dela – sabe-se que era idosa e estava com os cabelos “despenteados” –, pode-se acreditar, talvez embasado por certo estigma, que se trate de uma pessoa pobre e de baixa instrução, dada sua maneira de falar. Nesse sentido, a representação caricatural do discurso direto da personagem chega a seu objetivo, se era assim que o autor do texto pretendia que os leitores imaginassem essa “senhora”.

Porém não se tem nesse caso um longo trabalho do narrador de modo que o “contexto narrativo” seja “construído de tal forma que a caracterização objetiva do herói, feita pelo autor” lance “espessas sombras sobre o [...] discurso direto” da personagem. Nada é dito sobre a personagem antes de sua fala. O discurso direto da personagem não é previamente “esvaziado” por um trabalho do autor que já a caracterizasse tão fortemente

para que suas palavras soassem “naturalmente” como continuação dessa caracterização. Não se pode afirmar, portanto, que personagem fala assim, já que somente desse modo poderia se expressar uma personagem previamente descrita de certa maneira pelo narrador.

No caso da redação do vestibular, um gênero “curto”, talvez não haja espaço composicional e tempo suficiente para que o narrador caracterize tanto a personagem antes que seja introduzida sua fala. Assim, se indico que a fala dessa “senhora” pode ser considerada exemplo do discurso direto esvaziado é por seu caráter caricatural, de algum modo, decorativo.

A Comvest, é importante ressaltar, abona registros informais nos textos narrativos:

Você [candidato] deverá demonstrar, em sua redação, capacidade de exprimir-se de forma adequada ao estilo escrito e formal. Em certas circunstâncias poderão ser aceitas modalidades próprias da linguagem oral (por exemplo, se você estiver reproduzindo um diálogo coloquial, em uma narrativa). (COMVEST, 1999, p. 34)

A voz dessa personagem preenche justamente essa hipótese colocada pela Comvest, pois o vestibulando esboça “modalidades próprias da linguagem oral” na reprodução de “um diálogo coloquial”. Note-se ainda que a Comvest pontua ser essa abertura possível “em uma narrativa”, ou seja, precisamente por ser uma narrativa, é cabível um estilo menos formal a conferir mais verossimilhança à voz dessa personagem representada no texto.

A título de comparação, observe-se que no contexto do vestibular é esperado que se preze nas dissertações por um estilo mais formal, já que a voz condutora do texto é a do autor, é a do vestibulando – voz esta que está sendo diretamente avaliada. Mesmo assim é possível que em uma dissertação apareçam vozes informais. Porém, nesse caso, possivelmente tratar-se-á de vozes alheias, enunciados do outro, que não são o discurso do autor, do candidato. O vestibulando pode em sua dissertação lançar mão de uma citação em estilo informal ou em uma variedade mais popular e isso será julgado adequado – ou não será mal avaliado –, se ficar patente que essa voz é do outro, uma voz estranha ao contexto autoral.

Imagine-se, por exemplo, que um vestibulando queira em sua dissertação se referir à expressão “imexível”, enunciada, em 1990, por Antônio Rogério Magri, então Ministro do Trabalho do Brasil, que, quando perguntado acerca de uma possível redução do salário

mínimo, disse: “O salário do trabalhador é imexível”. No uso dessa expressão, seria adequado o candidato distingui-la como alheia, já que para alguns o termo é inapropriado, embora atualmente já conste em dicionários de língua portuguesa. Outro exemplo seria o vestibulando se referir à declaração de Fernando Henrique Cardoso que, em 2007, durante o 3º Congresso do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em crítica indireta ao então presidente Lula, declarou desejar “brasileiros melhor educados, e não brasileiros liderados por gente que despreza a educação, a começar pela própria”. Para gramáticos mais tradicionalistas, a expressão “melhor educados” é incorreta, pois nesse arranjo com particípio seria esperada a construção “mais bem educados”. Assim, um vestibulando, receoso de ser mal avaliado, poderia destacar essa expressão entre aspas ou inserir o “sic”, marcando ser “assim (mesmo)” que a expressão foi utilizada.

Já na narrativa, a voz informal – como ocorre no exemplo anterior – é uma criação do autor. Mesmo que esteja representando a voz de uma personagem não se trata exatamente do mesmo tipo de discurso alheio presente no caso da dissertação. Na dissertação, o discurso alheio pertence a outro que não o candidato. Na narrativa, o discurso alheio – a voz de uma personagem, por exemplo – pertence ao vestibulando.

Na narração, a voz do outro é concebida pelo autor, pelo candidato, está sob a responsabilidade dele. A Comvest (1999, p. 34, grifo nosso) ao esclarecer que em “certas circunstâncias poderão ser aceitas modalidades próprias da linguagem oral”, indica que isso será concedido caso “você [candidato] estiver reproduzindo um diálogo coloquial, em uma narrativa”. Pelo dêitico “você”, que se refere ao candidato, a Comvest deixa transparecer que, na narrativa, o discurso informal é de responsabilidade do vestibulando. Assim, a ressalva colocada pela Comvest, que aceita a informalidade em alguns casos, salvaguarda o candidato que na narrativa optar por um discurso informal para representar a voz de alguma personagem. A concessão da Comvest é importante porque na narração a voz informal da personagem é uma criação do vestibulando, está sob sua responsabilidade e, a depender da interpretação, poder-se-ia julgar que a voz informal de uma personagem atesta o desconhecimento do registro culto, o qual o candidato deveria dominar.

Um ponto a se notar, portanto, é que diferentes gêneros podem ter modos diversos de orientação para a palavra alheia. Se, na dissertação, o mais frequente é que a voz alheia

seja de outrem, nas narrações é bastante comum a concepção da voz de personagens, como vozes que se colocam como alheias, diferentes da voz do contexto autoral, mas que tem, a despeito disso, a mesma origem do discurso autoral: todas são de responsabilidade do autor do texto. É característica de gêneros narrativos a “criação” de vozes alheias, a representação de vozes de personagens. Como isso é esperado em narrativas, é de se admitir, como o faz a Comvest, a concepção de vozes informais, adequadas à representação de determinadas personagens, de determinados heróis. Desse modo, a instituição reconhece a “narrativa” como mais flexível aos registros, na medida em que possibilita a reprodução de vozes de diferentes sujeitos, de diferentes personagens, o que, de algum modo, reflete a flexibilidade do gênero, assim colocada por Bakhtin ([1952-1953], p. 265):

Todo enunciado – oral e escrito, primário e secundário e também em qualquer campo da comunicação discursiva – é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual. Entretanto, nem todos os gêneros são igualmente propícios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual. Os gêneros mais favoráveis [são os] da literatura de ficção [...].

Precisamente por ser uma narrativa ficcional, é cabível um estilo menos formal a conferir mais verossimilhança à voz dessa personagem representada no texto. A flexibilidade propiciada por gêneros narrativos, como os “da literatura de ficção”, atesta também como certas escolhas estilísticas se pautam pelo gênero discursivo. Na redação em destaque, por exemplo, o candidato fica mais à vontade para inserir um discurso em estilo mais informal, devido às possibilidades oferecidas pelo gênero discursivo em que se inscreve. O estilo que o candidato escolhe dar ao discurso de seu narrador e às vozes de suas personagens pode ser mais “colorido”, porque nos gêneros literários ficcionais é previsto um maior exercício da individualidade estilística do escrevente. Aliás, de algum modo, isso é mesmo esperado. Se em vários gêneros a explicitação de marcas estilísticas é um “epifenômeno do enunciado, seu produto complementar” (BAKHTIN, [1952-1953], p. 266), nos gêneros “artístico-literários” o “estilo individual [...] faz parte do plano do enunciado” (BAKHTIN, [1952-1953], p. 265-266).

Ressalto, por fim, que a despeito dos “erros” presentes na fala da “senhora”, personagem da redação, o texto do candidato figura entre os melhores do vestibular daquele

ano, até mesmo porque, como apontado, a Comvest aceita esse tipo de registro se o candidato “estiver reproduzindo um diálogo coloquial, em uma narrativa” (COMVEST, 1999, p. 34).

No documento Relações dialógicas em narrativas (páginas 148-155)