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Capítulo III – Linguagem, discurso e poder

3.2. Discurso: Teoria e Método

Quando se fala de “discurso”, as aceções são vastas e, muitas vezes, o termo pode querer dizer quase tudo ou quase nada, em função das interpretações e do uso que dele se faz. A polissemia é evidente, o que, efetivamente dificulta a tentativa de circunscrever o termo e “fixar” uma definição. Neste sentido, o conceito de “discurso” sofre alterações dependendo da corrente ou filosofia que estivermos a tratar e, consequentemente, os métodos e as ferramentas que tornam possível desenvolver uma pesquisa científica neste domínio.

A conhecida “Escola Francesa” já há muito que nos oferece contribuições no domínio da análise de discurso, um pouco na esteira do estruturalismo de Saussure e sob influência da corrente marxista, como Bakhtin e Althusser. De uma forma geral, atribui-se ao conjunto de pesquisas tendo por base o discurso, desenvolvidas durante os anos 60 e 70, em França, e que resultou na publicação de uma edição da revista Langages, organizada por Jean Dubois, intitulada L’Analyse du Discours, ainda marcante desta tendência de investigação o livro de Pêcheux, Analyse Automatique du Discours, publicado em 1969. Depois, a grande riqueza de contributos dos autores pós-estruturalistas, que conheceram o seu auge após Maio de 68, como Foucault, Derrida, Lacan, Deleuze, Guattari, Kristeva, entre outros.

Pertinente também a referência das teorias críticas que conheceram o seu núcleo duro na “Escola de Frankfurt” e que ofereceram aportes consideráveis, no sentido de enquadrar os estudos e pesquisas no domínio social. Habermas (2010a), uma das figuras mais proeminentes desta corrente, acompanhou a tendência das ciências sociais privilegiarem a linguagem como base do empreendimento de uma teoria social, a chamada Linguistic Turn que se observou na Europa e nos EUA.

A pragmática americana desenvolveu, igualmente, interesse pelo estudo do discurso, especialmente na vertente conversacional. Além disso, as abordagens como as de Austin sobre os atos de fala e a performatividade da linguagem vêm contribuir para o desenvolvimento desta abordagem teórica e metodológica. Ainda de especial relevo, a etnometodologia desenvolvida no âmbito das ciências sociais nos EUA, especialmente a Antropologia e a Etnografia, utiliza a análise de discurso como ferramenta de recolha e tratamento de dados. A “Escola de Chicago”, nomeadamente o Interacionismo Simbólico, desenvolveu alguns dos seus estudos com recurso a esta técnica. Continuando, ainda, neste ponto, a sociologia de Goffman (1976), especialmente a Frame Analysis, também utiliza a análise de discurso.

E por último, aquela que inaugura a tradição das pesquisas na área da cultura, ainda com uma abordagem de pendor marxista, desenvolve um interesse particular pelo estudo de objetos antes afastados pelos investigadores, como é o caso dos cartazes publicitários, das novelas ou da música popular – Os Estudos Culturais, da “Escola de Birmingham”. Tendo a “cultura” como principal objeto, os Estudos Culturais são a corrente que nos interessa explorar no presente estudo.

Naquela tradição, a análise de discurso é, sem dúvida, uma das principais ferramentas e métodos de análise. Podemos apresentar Hall e os seus estudos enquanto principais exemplos para demonstrar a ligação entre os contributos dos autores pós-estruturalistas franceses e as abordagens dos Estudos Culturais ingleses que, sem dúvida, se desenvolveram tendo Williams como um dos principais mentores. Hall coloca na linguagem a base da sua teoria, cujo conceito de “coding/decoding” e de “representação” são ilustrativos.

O discurso passa a constar, então, como objeto de análise em pesquisas de várias tradições e extensível a vários campos científicos, como a Linguística e os Estudos Literários, a Sociologia, a Geografia Humana, a Antropologia ou a Psicologia.

Autores como Maingueneau, Pêcheaux, Charaudeau e Foucault apresentam estudos e métodos no sentido de desenvolver a Teoria do Discurso como filosofia e enquanto metodologia. Nesta tradição, essencialmente desenvolvida em França, o “discurso” encontra-se muito associado a conceitos como os de “sujeito”, “ideologia” e “poder”. Muitas discussões tomaram parte de uma análise que incidisse exclusivamente em textos, em grande parte lideradas por linguistas. Mas, novas abordagens de entender o discurso para além da “Langue” tomavam lugar e espaço, assumindo, cada vez mais, o discurso enquanto “Parole” e como objeto social, em que o contexto histórico e as condições de produção seriam considerados elementos centrais na análise.

Alguns investigadores que se debruçaram sobre as teorias do discurso e os métodos que lhe são próprios apresentam, pelo menos, três abordagens, como sendo aquelas que mais coerência e validade apresentam, como filosofia e método, e que tornam viável a condução de pesquisas no domínio das ciências sociais, no contexto das correntes construtivistas - Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe; Análise Crítica do Discurso; Psicologia Discursiva.

Os campos discursivos são conceptualizados amplamente como territórios em que disputas de significado ocorrem (Steinberg 1999). Nos trabalhos de Steinberg é possível constatar que os significados são alvo de utilização por parte de grupos, orientados para uma verdadeira luta de classes entre proletariado e proprietários. Steinberg utiliza a análise de discurso, com base no conceito de dialogismo inspirado em Bakhtin (1977), e sugeriu a relevância do conceito de campo discursivo para a compreensão das atividades discursivas e de framing associados aos movimentos sociais.

As teorias escolhidas como centrais para dar uma visão geral do campo, já referidas atrás, partilham um posicionamento comum na forma como a linguagem e o sujeito deverão ser compreendidos, além de dirigirem a sua atenção para a análise das relações de poder na sociedade e, desta forma, investigar aspetos relacionados com a mudança social. Um dos grandes aspetos a salientar

e que une, de alguma maneira, as três abordagens é o facto de se desenvolverem no contexto das correntes construtivistas que, como já vimos, parte do princípio de que a realidade é socialmente construída, corrente essa que obteve a grande participação de Berger e Luckmann. O construtivismo social tem como premissas de base a visão da linguagem decorrente da linguística estruturalista e pós- estruturalista e a compreensão do indivíduo à luz do marxismo estruturalista. O construtivismo social constitui, assim, um termo guarda-chuva para um conjunto de novas teorias sobre a cultura e a sociedade, sendo que a análise de discurso é um dos métodos mais utilizados (Jorgensen e Phillips, 2002: 3-6).

Alguns autores atribuem a origem do construtivismo social ao pós-estruturalismo francês ou mesmo englobando este último no primeiro como se de uma categoria se tratasse. A teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe é a mais pura teoria pós-estruturalista, ao defender que o discurso constrói o mundo social em sentido e que, devido à instabilidade fundamental da linguagem, o sentido nunca pode ser permanentemente fixado, ou seja, nenhum discurso é uma entidade fechada, é, em vez disso, constantemente transformado através do contacto com outros discursos (Jorgensen e Phillips, 2002: 3-6).

O estudo das relações de poder e a forma como estas se manifestam na linguagem é, sem dúvida, o principal aspeto a ter em conta quando falamos de análise de discurso. Aqui importa refletir acerca do conceito de hegemonia e sobre a constante luta para conseguir atingir um estado totalitário, isto é, o de fixar significados de acordo com propósitos. Com inspiração no conceito original de Gramsci, a hegemonia pode ser entendida enquanto dominação a partir de uma determinada perspetiva. Se quisermos, os discursos concorrem num território com o objetivo último de fixar sentidos e, assim, conquistar espaço. Os discursos materializam-se pela linguagem, onde a ideologia desempenha um importante papel no processo.

A Análise Crítica do Discurso, corrente protagonizada por Teun Van Dijk e Norman Fairclough, defende também que a linguagem e o discurso desempenham funções cruciais na construção do mundo social. Contudo, aqui, o discurso é encarado como um entre muitos aspetos de qualquer prática social, estabelecendo uma distinção entre fenómenos discursivos e não discursivos, num movimento dialético, pelo que esta abordagem comparativamente à de Laclau e Mouffe está muito menos alinhada com o pós-estruturalismo, mantendo, ainda, os preceitos do marxismo tradicional. A perspetiva representada por Fairclough dirige o seu especial interesse para a investigação de processos de mudança que estão, naturalmente, implicados nos discursos e nas estruturas discursivas. Um dos conceitos mais importantes e que importa realçar, que, no fundo, é um conceito similar ao de “articulação discursiva” de Laclau e Mouffe, é o de “Intertextualidade”. Este conceito constitui o principal contributo de Fairclough no sentido de possibilitar a análise dos processos de mudança social. Importa, pois, entender como um texto individual decalca elementos e discursos de outros textos. É pela combinação de elementos de diferentes discursos que a linguagem concreta pode mudar os discursos individuais e, desta forma, também o mundo social e cultural. A análise da intertextualidade, além de ser uma excelente ferramenta para

investigar os processos de mudança, também permite analisar os processos de reprodução dos discursos e como estes aspetos se “naturalizam” nas estruturas discursivas.

A grande diferença entre a Análise Crítica do Discurso e a Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe é, sem dúvida, o objeto de análise que, na primeira, unicamente são considerados os textos nas modalidades escrita e oral, ao passo que, na segunda, toda a realidade é vista como discurso independentemente da sua configuração textual. Daí a abordagem de Laclau e Mouffe ser considerada mais abrangente e permitir uma dimensão de análise macro-estrutural, mais orientada para o “Político”. Relativamente à Psicologia Discursiva, área de especialização da Psicologia Social, esta utiliza a análise de discurso como principal metodologia de recolha e análise de dados empíricos. Orienta-se para a análise crítica de discurso, com especial enfoque em instâncias específicas da utilização da linguagem na interação social. Assim, interessa compreender como as representações aos níveis individuais e grupais se constroem e desenvolvem processos identitários, espírito de pertença e através deles se constituem práticas e ações, por exemplo, processos de negociação sobre as representações do mundo e das identidades, analisando, também as suas consequências no mundo social. Aqui, importa também analisar os processos de reprodução e de mudança social e cultural.

As abordagens de análise do discurso aqui apresentadas estabelecem o ponto de partida na crença da filosofia da linguagem estruturalista e pós-estruturalista, assumindo a linguagem como canal de acesso à realidade. A linguagem constitui o mundo social. Isto também se estende à constituição de identidades sociais e relações sociais. Nesta ordem de ideias, a existência de mudanças no discurso correspondem a alterações no mundo social. Assim, é possível afirmar que as lutas ao nível discursivo participam na mudança, bem como na reprodução da realidade social.

Segundo Saussure existe uma dimensão diádica, constituída pelo significante e pelo significado e a relação entre os dois é arbitrária, pois o sentido que conferimos às palavras não é inerente a elas, mas um resultado de convenções sociais pelo qual se associam os significados aos sons. Saussure distingue entre dois níveis de linguagem, “Langue” e “Parole”. “Langue” é a estrutura da linguagem, um sistema que é regido por regras fixas, uma rede de signos que dão sentido uns aos outros, constituindo o verdadeiro objeto de estudo dos linguistas, na sua opinião. “Parole”, por sua vez, situa-se no plano do uso social da linguagem, os signos atualmente em uso pelas pessoas e em situações específicas (Jorgensen e Phillips, 2002: 10).

A diferença conceptual entre estruturalismo e pós-estruturalismo reside no facto de no primeiro a linguagem ser entendida como algo permanente e imutável, enquanto o pós-estruturalismo também considera que a ideia do signo deriva o seu sentido não através das suas relações com a realidade fenomenal, mas através de relações internas na rede de signos, mas recusa, todavia, o carácter estável que o primeiro atribui à linguagem. Na teoria pós-estruturalista, os signos continuam a adquirir os seus significados por serem diferentes de outros signos, mas esses signos dos quais diferem podem mudar de acordo com o contexto em que eles estão a ser utilizados. Desta forma, o sentido estabelece-se através de um sistema em rede em que todos os signos, num determinado campo, estão conectados uns com os

outros, mas as ligações podem ser removidas, alguns sentidos excluídos, e outros podem emergir e constantemente alterar a estrutura. As estruturas existem mas sempre temporariamente e não necessariamente num estado consistente. No estruturalismo a estrutura é considerada circunscrita e imutável. No pós-estruturalismo, a estrutura torna-se mutável e os significados dos signos podem alterar- se em função das relações entre eles (Jorgensen e Phillips, 2002: 11-12).

Michel Focault, como já vimos, desenvolveu todo o seu trabalho com base no conceito de discurso. Para o filósofo, a verdade é uma construção discursiva e as relações de poder podem ou não estabelecer e fixar sentidos, construindo quadros de interpretação da realidade. No livro Arqueologia do Saber (2005b), Foucault descreve a origem das ciências sociais e a importância do discurso como manifestação de poder. Os discursos são, assim, compreendidos na qualidade de manifestos relativamente regulados, o que impõe limites ao que nos oferece como sentido. Focault desenvolve a teoria do poder e como este se relaciona com o conhecimento. O poder encontra-se distribuído por diferentes práticas sociais, mas pode estar concentrado em estruturas, instituições e agentes sociais. O poder constitui discurso, conhecimento, corpos e subjetividades. A utilização do poder pelas instituições de regulação da ordem social, como vimos em Vigiar e Punir (2004), produzem os sujeitos através de discursos inclusivos e excludentes.

Nesta conceção de poder, importa associar outro conceito que é o de “Ideologia”, enquanto forma associada à produção de sujeitos, de acordo com propósitos determinados. As representações podem ser determinadas pela ideologia, pelo exercício dos seus dispositivos de poder. Althusser (1980) associa o sujeito à ideologia porque, segundo o marxista estruturalista francês, o indivíduo torna-se um sujeito ideológico através do processo de interpelação realizado pelos discursos. Althusser (1980) define ideologia como um sistema de representações que escondem as verdadeiras relações, pois a ideologia destorce o reconhecimento das reais relações sociais. De acordo com Althusser (1980), todos os aspetos do social estão controlados pela ideologia, como podemos constatar em Ideologia e os Aparelhos Ideológicos do Estado, em que o autor defende existirem dispositivos de reprodução ideológica ao serviço do Estado, como a escola, por exemplo.

Alguns autores, como Lipovetsky (1989, 2000) e Baudrillard (2007), defendem que, atualmente, nós reproduzimos a ideologia do consumismo, de acordo com uma ideologia neoliberal capitalista. Assumimos o papel de sujeito na cultura de consumo e aceitamos que certos problemas sejam construídos como problemas pessoais, pelo que é da responsabilidade individual em vez de coletiva resolvê-los, à parte do Estado ou de outras instituições. Numa aceção alargada, os estudos baseiam-se na ideia que uma só ideologia, o capitalismo, é dominante na sociedade. Hoje, parece existir um consenso nos Estudos Culturais, na Communication Research e na Análise de Discurso que a tese da ideologia dominante subestima a capacidade das pessoas de oferecer resistência às ideologias. Com base no conceito de hegemonia, como já vimos, os discursos na sociedade neoliberal capitalista conquistam espaço e poder orientados no sentido de uma ocupação maioritária ou totalitária.

Todavia, as abordagens de Análise de Discurso diferem quanto ao grau de ênfase dada à liberdade do sujeito da ação no discurso. Laclau e Mouffe seguem a conceção de Foucault vendo o indivíduo como uma estrutura determinada. Além disso, a divergência na forma como a ideologia é concebida é igualmente um dos pontos a ter em conta entre as três abordagens da análise do discurso. A análise de discurso de Fairclough reserva o conceito de discurso para o texto, falado e outros sistemas semiológicos. Por outro lado, a abordagem teórica de Laclau e Mouffe não distingue entre as dimensões discursivas e não discursivas do social – as práticas são vistas enquanto exclusivamente discursivas. Aqui, o discurso ele mesmo é material e as entidades como a economia, a infraestrutura e as instituições são também parte do discurso. Quanto ao interesse de investigação, como já vimos, algumas abordagens têm maior interesse em aspetos relacionados com a mudança dos discursos e como estes se associam à mudança de práticas sociais e, consequentemente, de contexto cultural. Outras, como a Psicologia Discursiva, focam-se mais na prática quotidiana das pessoas e nas alterações de padrões e atitudes individuais (Jorgensen e Phillips, 2002: 16).

A obra principal de Laclau e Mouffe (1987, 2001) sobre Teoria de Discurso intitula-se Hegemonia e Estratégia Socialista (1985), onde os autores começam por desenvolver a sua teoria, com contornos diferentes de outras abordagens que tratam o mesmo objeto. Aqui, Laclau e Mouffe interessam-se pelo discurso no sentido de compreender estruturas e os seus processos de mudança associados à dimensão política e social. Com o propósito de compreender a construção discursiva, ou seja, todo o fenómeno social, pode ser analisado através de ferramentas da análise do discurso. Todavia, esta abordagem é vista por alguns investigadores como redutora, pois os métodos e ferramentas propostos pelos autores podem não ser suficientes para o desenvolvimento de análises mais aprofundadas. Desta forma, Fairclough desenvolve ferramentas específicas com base na Gramática Sistémico-Funcional de Halliday. Estas ferramentas em associação a conceitos da Semiótica são apropriadas para quando queremos analisar objetos textuais, como os que a Análise Crítica do Discurso assume. Outros autores recomendam, ainda, uma análise com recurso às várias ferramentas específicas das várias abordagens.