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O DISCURSO DO TRADUTOR COMO ESPAÇO DE EXERCÍCIO DE PODER, DE MOSTRA DE ERUDITISMO, DE SABER

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 49-56)

2 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PODER-SABER

2.3 O DISCURSO DO TRADUTOR COMO ESPAÇO DE EXERCÍCIO DE PODER, DE MOSTRA DE ERUDITISMO, DE SABER

O primeiro aspecto que chama a atenção quanto às notas é o local em que elas se encontram no texto da tradução. Como foi dito no capítulo 1, com o tempo elas se deslocaram, e hoje em dia é comum vê-las em pé de página, destacadas, sempre com um sinal indicativo, uma sigla, indicando que não se trata de texto pertencente ao texto da tradução. Podemos começar por questionar a que remete essa sigla.

É claro que a sigla serve para indicar que o texto não pertence ao original, sendo um adendo, um anexo, um paratexto, ligado ao texto da tradução. No entanto, a sigla N.T. já denota algo no sentido de que remete a alguém habilitado para escrevê-la: não se trata de qualquer texto, mas do tradutor da obra, ou seja, aquele que fez uma leitura minuciosa do texto original e que por isso pode fazer observações sobre ele, ou sobre o processo da tradução. Ele está legitimado para isso. Nesse sentido, pode-se considerar que a marca N.T. é distintiva de lugar, do lugar do tradutor, legitimando, assim, o texto ao qual está aposta.

Sem querer entrar na eterna e improfícua discussão de se colocarem ou não notas de rodapé, de sua necessidade e logicamente de sua legitimidade, ou não, o objetivo deste trabalho é olhar mais a fundo o que, talvez, essas notas produzem como efeitos de sentidos, como efeitos discursivos, simplesmente por serem notas do tradutor. Assim, discorreremos especificamente sobre o objeto empírico deste trabalho: o discurso do tradutor expresso nas N.T., mais especificamente naquelas de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Da mesma forma, trataremos também do discurso do tradutor sobre o processo mesmo da tradução, ou seja, de um metadiscurso da tradução, usando como corpus a discussão de Paulo Rónai em seu livro A tradução vivida, por se configurar, como assinalamos, como expressão de poder- saber.

No capítulo 1, foi explicitado por um outro ângulo o discurso de Rónai sobre a tradução e também especificamente sobre a tradução da Comédia, da qual ele foi coordenador. Como foi devidamente citado, o professor justifica as inúmeras N.T. em função, segundo suas próprias palavras, da “distância que em espaço e tempo separava a França da Comédia humana do Brasil de então” (Rónai, 1981, p. 185).

Não há dúvida de que as notas propiciam conhecimento, ajudam o leitor, esclarecem pontos obscuros, mas elas são, sobretudo, como vem sendo falado neste trabalho, expressão do discurso do tradutor, do seu saber. E se, segundo Foucault, todo saber engendra um poder, elas se configuram como espaço de poder-saber: um saber expresso e legitimado em função de um poder exercido e reconhecido pela posição que se ocupa. Segundo o próprio Rónai, em seu livro A tradução vivida, ele foi escolhido para o trabalho na Comédia porque “era especialista em língua e literatura francesa e defendera tese sobre Balzac” (1981, p. 184). Não se questiona aqui o fato da escolha da editora. É óbvio e claro que um trabalho é realizado – ou deveria ser – por aquele que tem a mestria no assunto. O que chama a atenção aqui é o discurso expressando o

poder-saber do professor: sua escolha foi feita em função da especialidade que havia adquirido ao defender tese sobre Balzac, ou seja, seu saber era legitimado pela posição que ocupava.

É importante ressaltar que o livro de Paulo Rónai, A tradução vivida, é praticamente um manual sobre como traduzir: que erros não cometer, quais as prerrogativas de um bom tradutor, isto é, que caminho este deve trilhar. A parte empírica da obra se revela na explicação do trabalho realizado para a tradução da Comédia humana, sob sua supervisão. Para isso, há um capítulo específico, cujo título é “A operação Balzac”, em que Rónai ressalta os pormenores do trabalho que empreendeu.

O referido capítulo inicia-se com uma sucinta descrição da tarefa do tradutor – o que já tinha sido tratado nos outros capítulos do livro –, para, em seguida, dar início à explicação do processo de tradução especificamente no âmbito da Comédia humana. Rónai explica como a equipe de tradutores foi formada e qual foi sua tarefa nessa empreitada. A seguir, principia uma descrição pormenorizada da obra balzaquiana e de sua importância, o que ocupará quatro páginas do capítulo. O parágrafo que dá origem a essa descrição tem o seguinte texto: “Imagino que nem todos os que me leem sejam especialistas de literatura francesa e ainda menos de Balzac; a estes quero, pois, explicar sucintamente a importância de sua obra, que só faz crescer com os anos” (1981, p. 179). Nesse pequeno texto já se pode perceber a marcação de lugar de saber, de eruditismo de Rónai, fato esse que lhe permite dar informações mais esclarecedoras sobre a obra em questão.

A descrição da obra e de sua produção continua, revelando em Rónai um exímio conhecedor da literatura francesa e especialmente do texto balzaquiano. Quatro páginas depois, o professor retoma a descrição da “operação Balzac”, voltando a esclarecer os percalços e problemas ocorridos durante a tradução da Comédia, bem como as soluções adotadas, a maior parte sugerida por ele. Observemos os parágrafos seguintes:

Deveria ter sido escolhido e imposto no começo do trabalho o texto de uma das muitas edições da Comédia Humana. Como isso não ocorrera aos editores, resolvi adotar por minha conta a edição reputada melhor, a da Pléiade, organizada por Marcel Bouteron, a ela conformar, nos trechos onde havia alteração, as traduções já entregues e pedir aos tradutores das obras ainda não começadas que utilizassem esse original.

No caso específico de Balzac a opção por uma ou outra edição tinha muita importância. É que, quando o escritor morreu, deixou inacabados três de seus romances mais significativos, Les

Paysans, Les Employés e Le Député d’Arcis. A viúva de Balzac, algum tempo depois da morte,

confiou a um escritor de terceira ordem, Charles Rabou, a difícil tarefa de terminar os dois últimos. Rabou executou a encomenda, e essas duas obras saíram em sua primeira edição como livros completos, sem que houvesse qualquer indicação daquela colaboração espúria. Assim, Le

Député d’Arcis, não só nessa primeira edição mas em diversas reedições, saiu com uma segunda

parte não escrita por Balzac, oito vezes mais extensa que a primeira parte! Na edição da Pléiade, obviamente, esses acréscimos indesejáveis já não figuravam (1981, p. 186-187).

Esse trecho revela-se muito interessante para nossa análise. Primeiramente, com “resolvi adotar por minha conta a edição reputada melhor, a da Pléiade”, Rónai já revela a que veio: como especialista e conhecedor da obra balzaquiana, tinha todo o respaldo para decidir sobre a melhor edição a ser usada na tradução, já que havia divergências entre as várias existentes. Ele continua a mostrar isso no parágrafo seguinte, ao afirmar a importância da escolha da edição correta, denotando ainda seu eruditismo, ao discorrer sobre pormenores da produção da obra após a morte do escritor, e também a autoridade que lhe é permitida como especialista no assunto do qual está tratando, característica que pode ser observada em palavras como: “escritor de terceira ordem”, “difícil tarefa”, “colaboração espúria”, “acréscimos indesejáveis”. Esses vocábulos revelam sua autoridade no assunto e também certa “intimidade” com o tema, se podemos dizer assim, fato que só acontece a quem se dedica ao estudo de algo durante parte da vida. E é interessante também atentar para a palavra “obviamente”, com relação à edição da Pléiade. Somente alguém que conheça bem a literatura francesa e suas publicações pode afirmar com tanta veemência ser essa edição a melhor. E tal afirmação requer também do leitor uma cumplicidade, pois o que é óbvio o é para todos, ou seja, está claro para quem quiser ver.

Mas num ponto essa edição, excelente em tudo mais, não me satisfazia. É que nela o texto de Balzac, já difícil por si em muitos trechos, saía excessivamente compacto, sem um espaço branco, uma interrupção, um parágrafo numa dezena de páginas. Se tal fosse a intenção do autor, teríamos de aceitar essa característica, assim como os tradutores de Proust e de Joyce respeitam aquela disposição maciça de linhas impressas sem um respiradouro ao longo de tantas páginas. Mas, devido à familiaridade com a história bibliográfica da obra, sabia que todos aqueles romances tinham saído inicialmente em rodapés de jornais, divididos em capítulos breves, com títulos muitas vezes espirituosos, engraçados, pitorescos, mantidos nas primeiras edições em volumes. Foram os editores sucessivos que, contra a vontade de Balzac, suprimiram a divisão em capítulos por motivos de economia. Em benefício do leitor brasileiro, reintroduzi a divisão em capítulos, assim como os títulos primitivos (1981, p. 187).

Com a afirmação “não me satisfazia”, o professor Rónai mais uma vez reafirma a autoridade com que desenvolveu o trabalho na Comédia. As decisões eram tomadas por ele, pois tinha “familiaridade com a história bibliográfica da obra” e “sabia que todos aqueles romances tinham saído inicialmente em rodapés de jornais...”.

No entanto, há outro aspecto interessante nesse trecho. No capítulo 1, discorremos um pouco sobre as visões de tradução e verificamos que Paulo Rónai expressa no texto de seu livro uma visão “tradicional” da tradução, de que esta deve ser tal qual o texto original, que deve resgatar a mensagem passada pelo autor. Vemos aqui, na citação anterior, mais uma mostra desse pensamento. Com “Se tal fosse a intenção do autor”, Rónai revela que é possível saber qual é a intenção do autor de determinada obra. Ora, se como estudioso (no caso dele) ou como leitores podemos entrever essa intenção, da mesma forma o tradutor tem essa capacidade, e, mais ainda, é sua prerrogativa fazê-lo ao realizar a tradução.

Tal característica também é expressa quando ele utiliza os exemplos dos tradutores de Proust e Joyce para reforçar sua ideia de que o tradutor deve ser “fiel” ao texto original, inclusive na sua forma, pois o aspecto de texto maciço da Comédia deveria ser respeitado se “tal fosse a intenção do autor”, “assim como os tradutores de Proust e de Joyce respeitam aquela disposição maciça de linhas impressas sem um respiradouro ao longo de tantas páginas”. A observação dessa característica é importante porque refletirá fortemente na

produção das notas. Muitas delas foram redigidas na tentativa de produzir um texto da tradução o mais próximo possível do original. Veremos isso no capítulo 3, quando da análise empírica.

Retomando a expressão poder-saber, citar as obras de Joyce e Proust também se configura como uma mostra de eruditismo, de poder-saber, pois ambas as obras são de célebres autores, muito conhecidos por textos difíceis de serem lidos e, consequentemente, de serem traduzidos – já que a tradução, como dissemos no capítulo 1, é uma das leituras mais minuciosas de qualquer texto. Assim, tal menção, longe de ser inocente, denota um saber de especialista, aliado ao poder expresso por esse discurso.

E, finalizando esse trecho, não podemos deixar de observar a imagem que Rónai produz do leitor brasileiro: “Em benefício do leitor brasileiro...”. Ou seja, o objetivo de tantas pesquisas e observações sobre a divisão da obra em capítulos é para facilitar o leitor brasileiro em sua leitura. Muito além especificamente do leitor brasileiro, Rónai denota aqui a imagem que produz do próprio tradutor: este, além de ser “fiel” ao texto original, deve também procurar, na medida do possível, fazer uma tradução que desperte no leitor curiosidade sem “indispô-lo com a obra” (o que já foi visto no capítulo 1), competindo ao tradutor facilitar ao máximo esse acesso ao pensamento do autor do texto original e, consequentemente, à mensagem que ele queria passar ao escrever o texto.

Assim, respondendo às duas primeiras perguntas expressas no início deste capítulo – Que poder o discurso do tradutor irá engendrar e que saber está ligado a esse poder? Como a relação poder-saber legitima esse discurso, e como o tradutor, mesmo sem o saber, vale-se dessa prerrogativa, desse lugar que ele ocupa para produzir o seu discurso nas notas? –, podemos perceber que o tradutor recorre a vários meios para expressar seu saber, que é perpassado por um poder no mais das vezes não percebido por ele. Seu poder-saber é

expresso no próprio discurso, legitimado pela posição de tradutor e muitas vezes, como no caso de Paulo Rónai, pela de especialista no assunto do qual está tratando, ou pelo fato de ser acadêmico, professor, posições que denotam por si só eruditismo e que são reconhecidas socialmente. E tendo já dito, o tradutor vale-se dessa prerrogativa ao se colocar na própria posição-sujeito do profissional, que já é legitimada como lugar de destaque, de saber e de expressão de poder. O tradutor é aquele que faz a leitura mais profunda da obra, mas que também, segundo Rónai, teria o poder de “acessar o pensamento do autor do original”. Nesse caso, é dele a capacidade de transmitir ao leitor a mensagem do autor, com o máximo de isenção possível, tendo em vista o caráter de certa forma “sagrado” do texto original.

Contudo, apesar de pregar uma isenção do tradutor – estando o sentido transcendental de busca da verdade presente no discurso de Rónai –, ou seja, o tradutor deve ser o máximo possível “isento” na sua tradução, para “preservar” o texto do autor, o próprio Paulo Rónai entra em contradição. Isso acontece porque sua pretensa “isenção” é contradita pelo número de notas do tradutor produzidas por ele para a Comédia – 12 mil, como já mencionado. Se as N.T. são o local onde o tradutor aparece “de fato”, essa “pretensa” isenção desaparece pela efetiva presença da sigla N.T. no texto da tradução (mesmo que seu aparecimento não se efetive, como nas notas escritas por Rónai, em que a sigla não existe). Isto é, o eruditismo de Rónai, sua especialidade em Balzac, é o tempo todo revelado nas N.T., que são, nesse caso, seu lugar de poder-saber.

E continuando a utilizar o discurso de Rónai sobre o processo de tradução da Comédia, no próximo item serão respondidas as duas últimas questões apresentadas anteriormente: Que papel as N.T. desempenham em uma tradução? Que efeitos de poder elas suscitam?

Não se tratará especificamente do texto das N.T., pois isso será realizado no capítulo seguinte, mas, sim, do discurso de Paulo Rónai em seu livro sobre a tradução.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 49-56)