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PODER-SABER: O EIXO DA TRAMA DISCURSIVA

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 41-49)

2 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PODER-SABER

2.2 PODER-SABER: O EIXO DA TRAMA DISCURSIVA

No capítulo anterior, foram apresentadas as N.T. como local discursivo, em que o tradutor pode se expressar legitimamente, em que fica evidente e efetivamente produz discurso. Mostrou-se também que, de acordo com a AD de Michel Pêcheux, todo discurso é permeado por imagens produzidas pelos interlocutores, no e a partir do discurso produzido por eles. Assim, o mesmo ocorre com o discurso expresso nas notas: elas são emolduradas por imagens produzidas pelo tradutor – imagens do autor do texto original, da obra que está sendo traduzida, do leitor a quem se dirige o texto, do seu próprio papel desempenhado de tradutor. Mostrou-se, assim, que o discurso é expresso pela posição-sujeito do interlocutor: quem fala,

de onde fala, a quem se dirige. Contudo, esse lugar discursivo, essa posição-sujeito também pode se expressar de outra forma, como local de poder-saber: a partir do lugar que se ocupa, que saber é expresso através do poder legitimado por esse lugar? Mais claramente: como a posição-sujeito do tradutor possibilita que este exerça seu poder através do seu saber? E se o poder-saber é expresso pelo indivíduo através da posição em que ele ocupa na sociedade, segundo Foucault, e se para a AD o discurso legitimado depende da posição-sujeito, está aqui um dos pontos em que as duas teorias se encontram, o que já foi mencionado no item anterior. Para Gregolin (2006, p. 53-54) também, os dois teóricos – Foucault e Pêcheux – possuem pontos em comum, mas também diferenças significativas, que darão a direção de suas teorias. Segundo suas próprias palavras:

(...) ambos tinham projetos epistemológicos que, apesar de distintos, encontraram-se em vários pontos. Em Pêcheux, ele se concretiza na busca de construir a análise do discurso, e nela estão envolvidos a língua, os sujeitos e a História. Por estar fortemente centrado na construção desse campo, ele dialoga constantemente com a Linguística por meio de uma relação tensa com Saussure, Marx e Freud. Essa Tríplice Aliança acompanha a construção de um projeto teórico de refacções constantes e que visava à construção de uma teoria materialista do discurso aliada a um projeto político de intervenção na luta de classes, a partir da leitura althusseriana do marxismo-leninismo. Concebendo a teoria fortemente vinculada à prática política, Pêcheux tinha, ao mesmo tempo, uma busca metodológica que se materializa na tentativa de construir um método para a análise do discurso (a “análise automática”).

O projeto foucaultiano também se relaciona tensivamente com uma “tríplice aliança” – Nietzsche, Freud, Marx – o que já indica a relação muito mais forte de Pêcheux com a Linguística e de Foucault com as problemáticas da História e da Filosofia. Por isso, o projeto foucaultiano não tinha como objetivo imediato construir uma teoria do discurso – suas temáticas sempre foram amplas e envolveram as relações entre os saberes e os poderes na história da sociedade ocidental e, inserido em vastas problemáticas, sua investigação abriu-se em várias direções: buscou compreender a transformação histórica dos saberes que possibilitaram o surgimento das “ciências humanas” na sua fase chamada de “arqueológica”; tentou compreender as articulações entre os saberes e os poderes, na fase denominada de “genealógica”; investigou a construção histórica das subjetividades, em uma “ética e estética da existência”. Essas temáticas estão, sempre, articuladas a uma reflexão sobre os discursos: pressupondo que as coisas não preexistem às práticas discursivas, Foucault entende que estas constituem e determinam os objetos. É, assim, no interior da reflexão sobre as transformações históricas do fazer e do dizer na sociedade ocidental que uma teoria do discurso vai-se delineando e encontra um lugar central na obra de Foucault (grifos do original).

Tendo em vista essa citação e o que foi tratado no capítulo 1, pode-se perceber que, enquanto Pêcheux se centrará muito mais na prática discursiva propriamente dita, Foucault partirá do discurso para traçar os contornos da sociedade e do objeto que pretende estudar. Assim, partindo do discurso produzido, ele estudará a loucura, a medicina, a prisão, delineando as transformações sofridas pela sociedade nesses campos a partir do discurso produzido neles e por eles. Como as transformações do discurso sobre determinado campo de saber engendraram transformações nesse mesmo campo de saber?

Se fôssemos seguir o procedimento foucaultiano de análise empírica, teríamos de tratar historicamente da tradução, isto é, quais foram os regimes discursivos que estabeleceram, ao longo da história, a concepção de tradução que temos como “verdadeira” atualmente? Lembremos que vimos no início desta pesquisa que uma das concepções correntes de tradução a concebe, simplificadamente, como reprodução do texto original do autor. Esta seria uma análise arqueológica e genealógica da tradução, que iria investigar a matriz de poder-saber do discurso sobre esse objeto. Contudo, considerando a dimensão restrita desta pesquisa, tomaremos como ponto de estudo somente o lugar ocupado pelo discurso do tradutor nas N.T. Concebendo, como Foucault, que o discurso científico (aquele da medicina, do sistema judiciário, por exemplo) é legitimado, levaremos em conta também a importância do discurso do intelectual e como ele produz saber a partir do local que ocupa na sociedade, ou seja, exercendo o seu poder. Nesse caso, qual a dimensão que ganha o discurso de Paulo Rónai, como acadêmico e professor respeitado, ao discorrer, em seus livros publicados no Brasil, sobre o ofício do tradutor e a obra de Balzac? Sobretudo, qual a sua importância como intelectual? Que efeitos essa sua posição produz a partir de seu discurso?

Em Microfísica do poder (p. 13), Foucault discorre sobre o intelectual, figura para ele importante na trama social do poder-saber:

(...) ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades. (...) É então que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribuem ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (...).

Dessa forma, retomando as N.T., analisá-las passa a ser muito mais do que pensar o lugar em que o tradutor se revela, se mostra, aparece. Trata-se, sobretudo, de pensar o lugar do discurso do tradutor, e, assim, o lugar de produção de conhecimento, de produção de saber e, consequentemente, de exercício de poder, em virtude da posição que ele ocupa na sociedade (posição-sujeito, segundo Pêcheux), posição essa que dá a seu discurso um caráter de “verdade”, pois ele passa a ser legitimado.

Para entender o discurso do tradutor sob essa perspectiva, é preciso ressaltar que, sob a presente perspectiva de análise, não existe a dicotomia linguagem/realidade, pois a realidade não pode ser considerada como uma “entidade”, ou seja, algo que possui uma essência em si, aprioristicamente falando. Assim, se o discurso não é algo que se diz sobre uma realidade preexistente, que pode retratá-la, a realidade é construída pelo e no discurso, na prática, o que questiona a crença em uma verdade “transcendental” que deveria ser buscada, mas que nunca poderia ser alcançada, porque é inacessível. Essa verdade, na visão foucaultiana, não existe. Ela também é produzida pelo e no discurso, sendo corroborada por determinadas práticas discursivas. Ou seja, a verdade é construída.

Segundo o próprio autor:

(...) a verdade não existe fora do poder ou sem poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de

discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (1979, p. 12).

Deve-se atentar que, se cada sociedade produz a “sua” verdade, legitimada pelo e no discurso, essa verdade [discursiva] vai variar de acordo com a época e quem a produz. Isso será importante ao compararmos, no capítulo 3, os discursos produzidos em duas N.T. referentes a um mesmo trecho da tradução, no corpus analisado, em duas traduções diferentes da mesma obra. Veremos que esses discursos se alteram com a época e, consequentemente, também os efeitos produzidos por eles serão de outra ordem. Nas palavras de Foucault:

Há efeitos de verdade que uma sociedade como a sociedade ocidental, e hoje se pode dizer a sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se verdade. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam. São essas relações verdade/poder, saber/poder que me preocupam (Foucault, [1977] 2006, p. 229).

Assim, se pensarmos o discurso do tradutor por essa via, poderemos afirmar que a tradução, ao ser considerada como reprodução “fiel” do texto original, “re-produção”, na concepção tradicional, no sentido de produzir algo novamente, já produzido antes, pode ser comparada à questão de se buscar a verdade absoluta, “essencial”, transcendental, de algo. No sentido de existir a priori uma “essência” das coisas, que devemos tentar alcançar a todo custo. No caso do objeto desta pesquisa, essa essência seria o próprio “pensamento” do autor, expresso no texto original, suas ideias, que caberia ao tradutor “des-cobrir” (ou seja, mostrar o que estaria encoberto) e “re-produzir” no texto traduzido. Nesse sentido, a única coisa que poderia obstar esse processo seria sua incompetência em “des-cortinar” (ou seja, tirar o véu) esse pensamento previamente dado, que está à disposição. O tradutor deveria ser hábil para trazê-lo à tona e revelá-lo ao leitor ávido pela verdade. Essa definição da tradução, que a

resume a simplesmente uma reprodução tal e qual do texto original, é a definição corrente, que a AD, como visto no capítulo 1, ao ser usada para analisar o processo tradutório, questiona.

Se o discurso é prática e se a noção de “verdade” é produzida nele, não cabe ao tradutor “buscar” uma verdade previamente dada, em um plano metafísico qualquer (no caso, sendo esse plano o texto original do autor), mas sua tarefa será sempre a de produzir um discurso próprio, que será uma interpretação (entre tantas possíveis) e trará em seu bojo outros discursos, outras interpretações e todo um contexto social que se refletirá, em maior ou menor grau, no seu texto. Os discursos não possuem uma “verdade”, um núcleo ao qual se pode chegar, onde está a ideia que deve ser resgatada. Isso significa que é impossível ao tradutor chegar ao que o autor “quis dizer”, pois ambos os discursos, do tradutor e do autor, são únicos em si mesmos. Não existe uma “verdade transcendental” a ser revelada e transmitida. Existem discursos a serem formulados, que estão sujeitos a certas condições de produção, condições econômicas, sociais, do próprio “assujeitamento” do sujeito, ou seja, condições que envolvem o discurso e que o determinam, pois estes “são séries de acontecimentos que a ordem do saber produz e controla” (Araújo, 2004, p. 236).

Retomando as N.T., se elas se configuram o lugar de evidência do discurso do tradutor, onde este se revela em sua singularidade, elas passam a refletir, em maior ou menor grau, o comprometimento do tradutor com a produção de saberes e, assim, com o exercício de seu “micropoder”.

Dessa forma, considerar o discurso do tradutor como local de exercício de poder, expresso principalmente nas notas, é fundamental ao pensarmos esse profissional como produtor de saberes, pois poder e saber são inseparáveis para Foucault, já que, para ele, não existe um “poder”, no sentido absoluto da palavra, mas micropoderes, que estão pulverizados

no tecido social e nas relações, e macropoderes, estes tendo como representantes principais o Estado e as instituições.

Nas suas palavras ([1977] 2006, p. 233):

As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele

que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de

relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos,

microlutas, de algum modo. Se é verdade que essas pequenas relações de poder são com

frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço militar, se não houvesse, em torno de cada indivíduo, todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor – àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal ou tal ideia? (grifos nossos)

Esses macropoderes e micropoderes imbricam-se, entremeiam-se, e o que vemos é uma rede de exercício de poderes, uma trama, na qual todos exercem uma parcela de poder. Como o poder é exercido por todos e produz saber, ele “possui uma eficácia produtiva, uma riqueza, uma estratégia, uma positividade” (Machado, 1995, p. XVI); ele “não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o fabrica” (idem, p. XX), produz o indivíduo porque o singulariza. E sendo fabricado, esse indivíduo passa a também exercer poder, bem como a expressar saber. Daí a formulação poder-saber como algo que não se exerce separadamente, constituindo-se reciprocamente.

Ainda com relação à caracterização do poder como algo que está pulverizado na sociedade e nas relações sociais e discursivas, Foucault tem o cuidado de separá-lo do significado que comumente lhe damos de algo que somente é exercido como repressão, tendo um caráter meramente cerceador:

Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se definem os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e

esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz

discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito

mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir (1979, p. 8 – grifos nossos).

Assim, na perspectiva foucaultiana, qualquer relação social engendra um poder, e, se trouxermos isso para o campo discursivo, poderemos dizer que todo discurso também engendra um poder e um saber, um poder-saber, e que nesse sentido também existem microssaberes, ou seja, um saber que se pulveriza, que possibilita a cada um assumir uma posição, emitir uma opinião, mostrar seu saber “individual” (ou pelo menos ser percebido como tal), lembrando que o indivíduo, quando se estabelece, passa a exercer também uma parcela desse poder.

Entretanto, esses micropoderes e microssaberes também estão sujeitos a determinadas condições históricas, pois para épocas diferentes são produzidas diferentes epistemes, “grandes redes organizadoras do saber” (Araújo, 2004, p. 217), ou seja, diferentes conhecimentos. Assim, o discurso precisa ser historicizado, pois, para Foucault, seu objeto não são as matrizes linguísticas, ou os contextos em que os discursos se formaram; é muito mais amplo. Trata-se de analisar por que determinado tipo de discurso surgiu em determinada época, pois ele é da ordem do acontecimento, ou seja, da ordem da historicização. É preciso estabelecer quais foram as condições sociais, históricas, políticas, econômicas, etc., que possibilitaram que esse discurso fosse produzido. A análise, nesse sentido, sai do nível micro, da linguística, para o nível macro, do corpo social.

Assim, nessa perspectiva, o que importa são os saberes situados historicamente, os saberes que são produzidos sobre determinado objeto. Esses saberes irão mudar de acordo com a época, o lugar, o contexto social, o grupo a que se referem, pois são produzidos na prática social, não estão contidos no objeto de análise em si. Pode-se, então, pensar que o

discurso do tradutor, sem que este se dê conta, é também engendrado por essas epistemes epocais. Daí a constatação de que duas traduções da mesma obra realizadas em épocas distintas produzirão traduções, ou textos (no processo tradutório), diferentes. É o que será mostrado ao se analisar o corpus desta pesquisa, com relação às notas do tradutor, no próximo capítulo.

Nos próximos itens, trataremos do discurso do tradutor sobre a tradução e desse discurso expresso nas N.T. como se configurando um espaço de exercício de poder-saber. Retomando as perguntas do início, vamos respondê-las com base no que foi discutido até aqui.

2.3 O DISCURSO DO TRADUTOR COMO ESPAÇO DE EXERCÍCIO DE PODER, DE

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 41-49)