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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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FACULDADE DE LETRAS

DÉBORA DE CASTRO BARROS

AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LUGAR DISCURSIVO:

UMA ANÁLISE DAS NOTAS DE DUAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DE

O PAI GORIOT

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UMA ANÁLISE DAS NOTAS DE DUAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DE

O PAI GORIOT

por

DÉBORA DE CASTRO BARROS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa)

Orientadora: Profa. Doutora Márcia Atálla Pietroluongo.

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À minha orientadora, Márcia Atálla Pietroluongo, por ter me recebido como sua orientanda e sempre com muita atenção, firmeza e paciência ter me conduzido no processo que culminou nesta dissertação. Obrigada por todo o aprendizado.

Ao professor Marcelo Jacques de Moraes, por, mesmo depois de tantos anos desde minha graduação, ter me acolhido e me apresentado à professora Márcia. Obrigada pelo incentivo e por aceitar fazer parte da banca.

Aos demais professores do Mestrado, que me apoiaram e suscitaram tantas questões novas e instigantes sobre o meu objeto de estudo.

Aos funcionários da Secretaria da Pós-Graduação, por sua disposição em me ajudar nas tantas vezes em que precisei; em especial, nestes últimos momentos, ao Leonardo, por seu empenho, e à Fátima, por sua solicitude.

À professora Marcella Mortara, que foi minha orientadora na Especialização da UERJ. Seu incentivo e carinho naquela época foram muito importantes para meu ingresso no Mestrado.

Aos meus colegas e amigos do Mestrado, que me incentivaram sempre, com muito carinho.

Às minhas amigas Márcia da Anunciação Barbosa e Glícia da Silva Campos, que me acompanham desde a Especialização, a primeira comigo também no Mestrado. Obrigada pelos ouvidos atentos e pelos incentivos. À Márcia, especialmente, por partilhar comigo tudo o que aprendeu durante o seu próprio caminho no Mestrado e agora no Doutorado.

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primeira a me dizer para encarar esse processo, obrigada pelas horas de discussões ao telefone ou na mesa de um bar – as últimas as melhores, ouso dizer. Suas ideias e análises de professora doutora me esclareceram muitos pontos obscuros e muitas vezes me deram a certeza de estar no caminho certo. Muito obrigada.

Aos queridos amigos que a vida me trouxe, muitos e especiais, obrigada.

À Ana Luísa Mello de Araújo, minha chefe e amiga de tantos anos, que entendeu que eu precisava continuar estudando. Sem sua compreensão este trabalho não teria sido realizado.

E, finalmente, ao meu pai, Geraldo Pereira de Barros, que carinhosamente e sempre com muito cuidado revisou este trabalho. Segui os seus passos sem o saber e tenho muito orgulho disso: o gosto pela leitura, pelas letras, pelas palavras bem-escritas; e à minha mãe, Maria da Penha de Castro Barros, que me deu à luz uma segunda vez quando incentivou minha saída de casa para estudar. Mãe, você não tem ideia do quanto isso foi importante. Devo tudo a esse seu ato. Obrigada. E aos meus irmãos, Vinícius, Leonardo e Raquel, obrigada pela jornada espiritual.

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BARROS, Débora de Castro. As notas do tradutor como lugar discursivo: uma análise das notas de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas – Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Esta pesquisa tem por objetivo analisar discursivamente as notas do tradutor (N.T.) de duas traduções brasileiras do romance de Honoré de Balzac, O pai Goriot, uma realizada pela Editora Globo em 1989, para a segunda edição, sob a coordenação de Paulo Rónai, e outra, mais recente, realizada pela Editora L&PM em 2006, por Celina Portocarrero e Ilana Heineberg. Usando como base teórica os conceitos da Análise de Discurso (AD) de Michel Pêcheux e os estudos de Michel Foucault sobre o poder, estes centrados no binômio poder-saber, o trabalho pretende revelar as imagens que os tradutores produzem nas N.T. a partir do seu discurso, bem como de que forma se apresenta seu poder-saber.

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BARROS, Débora de Castro. As notas do tradutor como lugar discursivo: uma análise das notas de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas – Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Cette recherche a pour objet d’analyser discursivement les notes du traducteur (N.T.) de deux traductions brésiliennes du roman d’Honoré de Balzac, Le Père Goriot, la première réalisée par les Éditions Globo, en 1989, pour la deuxième édition, sous la coordination de Paulo Rónai, et la seconde, plus actuelle, réalisée par les Éditions L&PM, en 2006, par Celina Portocarrero et Ilana Heineberg. Utilisant comme support théorique les concepts de l’Analyse de Discours (AD) de Michel Pêcheux et les études de Michel Foucault sur le pouvoir, celles-ci centrées sur le binôme pouvoir-savoir, ce travail va révéler les images que les traducteurs produisent dans les N.T. à partir de leurs discours et la présence de leur pouvoir-savoir.

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INTRODUÇÃO 8

1 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE

PRODUÇÃO DE DISCURSO 12

1.1 Notas do tradutor: que lugar é esse? 12 1.2 O lugar discursivo das notas dentro do processo tradutório:

a análise de discurso 19

1.3 As N.T. como local de produção de imagens 25

1.4 Paulo Rónai e A comédia humana 28

2 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PODER-SABER 35 2.1 Arqueologia e genealogia: as duas fases dos estudos de Foucault 36

2.2 Poder-saber: o eixo da trama discursiva 40

2.3 O discurso do tradutor como espaço de exercício de poder,

de mostra de eruditismo, de saber 48

2.4 As N.T.: a “verdade” do tradutor 55

3 AS NOTAS DO TRADUTOR DE O PAI GORIOT 59

3.1 “O pai Goriot”, da Editora Globo, e O pai Goriot, da Editora L&PM 60

3.2 O quadro classificatório das notas 65

3.3 As N.T. das duas edições brasileiras de O pai Goriot 72 3.3.1 Primeira classificação: que tipo de saber as notas portam 74 3.3.2 Segunda classificação: a que as notas se referem 87

3.3.3 Casos especiais 103

CONCLUSÃO 108

BIBLIOGRAFIA 114

Apêndice

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INTRODUÇÃO

Os recentes estudos da tradução vêm ganhando crescente importância no meio acadêmico. Trazendo uma nova perspectiva para pensar a tradução, eles a consideram interdisciplinarmente, em que se relacionam disciplinas como as ciências sociais, a linguística e mesmo a psicanálise. Isso porque são considerados aspectos como as identidades culturais, as relações entre as línguas, para além das similaridades de significantes e significados, e o papel que exerce a figura central desse processo, o tradutor, como sujeito discursivo, entre outros.

Até bem pouco tempo, pensar a tradução quase que se restringia a vê-la como a transmissão das ideias de um texto, o original – expresso na língua de partida –, em um outro texto, o traduzido – expresso na língua de chegada. Assim, do tradutor era exigida uma isenção textual, na qual ele deveria ser o mais fiel possível ao pensamento do autor, o que dava à tradução um aspecto quase transcendental. Essa concepção – em que é esquecido o papel do tradutor como sujeito de discurso –, que ganha vários matizes e que será chamada nesta pesquisa de “tradicional”, ainda é a preconizada por muitos estudos da tradução e por boa parte dos tradutores.

Não se questiona o fato de o texto traduzido ser um produto derivado do original. Contudo, além de ele não trazer uma isenção textual, pois as palavras não trazem o significado inscrito nelas, também não traz uma isenção discursiva, pois, como veremos, dois textos similares, como são o original e sua tradução, apresentam em seu bojo dois discursos diferentes.

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se percebe que seu reconhecimento se dá nos paratextos da tradução: prefácios, introduções, apresentações e notas de pé de página e de fim de capítulo. É nesses lugares que se configura uma separação entre o discurso do autor, pretensamente acessado pelo tradutor e expresso no texto da tradução, e o do tradutor, presente nos paratextos citados. Nestes, o tradutor pode expressar sua opinião, fazer correções, intervenções e observações sem que a mensagem do texto da tradução, pertencente ao autor, seja “maculada”.

Com essa finalidade, o foco deste trabalho será um olhar para a tradução diferenciado do que a concepção dita tradicional tem. Tomando como suporte teórico a Análise de Discurso (doravante AD) de Michel Pêcheux, o ato de traduzir será considerado como processo tradutório, ou seja, como “um processo de produção de discurso” (Mittmann, 2003,

p. 11), e as notas serão analisadas como o lugar privilegiado de visibilidade do tradutor (Venuti, 1994), onde inclusive elas ganham a marca N.T. Além disso, esse espaço textual e discursivo será também considerado como expressão do poder-saber do tradutor, binômio foucaultiano que apresenta o discurso das notas como local de saber e de expressão de poder.

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Dessa forma, no primeiro capítulo, cujo título é “As notas do tradutor como local de produção de discurso”, pretende-se apresentar uma discussão sobre as N.T. e o papel desempenhado por elas em uma tradução, tendo como base o trabalho de Paulo Rónai realizado na Comédia humana. Além disso, e este é o ponto mais importante, esse capítulo apresentará uma das teorias com as quais esta pesquisa irá trabalhar, a Análise de Discurso de Michel Pêcheux, os seus pontos mais relevantes e que interessam para uma análise do processo tradutório. Será também trazido à discussão o discurso de Paulo Rónai sobre a tradução, expresso em seu livro A tradução vivida, de 1981. Veremos que ele preconiza por parte do tradutor a isenção textual de que se falou, configurando-se, assim, uma das concepções tradicionais da tradução, em contraponto à concepção de processo tradutório que será apresentada. O livro teórico de Paulo Rónai é importante, porque é ele o exemplo principal nesta pesquisa do discurso do tradutor fora do ambiente da tradução, ou seja, ele se apresenta como um metadiscurso da tradução.

No segundo capítulo, “As notas do tradutor como local de poder-saber”, serão apresentados alguns aspectos da teoria foucaultiana do poder-saber e sua relação com o discurso. Sendo o poder, para Foucault, disseminado em micropoderes, como ele se expressa no discurso e, sobretudo, como se expressa no discurso do tradutor ao formular as N.T.? Que saber ele corrobora? São perguntas que serão respondidas tendo sempre por base o discurso de Paulo Rónai em seu livro A tradução vivida. O ponto importante deste capítulo é a relação intrínseca e importante estabelecida entre poder-saber e discurso.

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análise e reflexão sob uma perspectiva discursiva (2003). Mittmann revela-se muito

importante para este trabalho, porque, além de ter usado também como base teórica a AD pêcheuxiana, suas análises são focadas nas N.T. Em seus estudos, são encontrados muitos argumentos que confirmam o que percebemos em nossa pesquisa. Ainda aqui, será apresentada a classificação das notas, cujo quadro completo encontra-se no Apêndice ao final da dissertação.

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AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PRODUÇÃO DE

DISCURSO

Traduzir pode ser uma operação pela qual se procura somente transportar o sentido do texto o mais exatamente possível, impor o Unívoco e estabelecer uma relação de controle, de autoridade, de fidelidade à Tradição e à transmissão em si. Mas pode e deve ser também um processo totalmente diferente, graças ao qual se coloca toda uma crítica e interpretação renovadas do texto, numa verdadeira abertura dialógica atenta ao equívoco, aos valores flutuantes das metáforas e das diferenças, (...) (Michaud, 2005, p. 122).

Como foi dito na Introdução, o objetivo desta pesquisa é desenvolver um outro olhar sobre a tradução, diferente do correntemente entendido, de decalque e transposição do texto original, para o de um texto que produz discurso. Nesse caso, tornar visível a voz do tradutor, que trabalha diretamente sobre o texto original, tendo-o como matriz, produzindo efeitos sobre ele, produzindo um outro texto, o da tradução. Daí observarmos que duas traduções de um mesmo texto são diferentes, apesar da similaridade, e da mesma forma o discurso produzido por elas.

Contudo, antes de adentrarmos essa discussão, é preciso lançar um olhar para o objeto deste trabalho dentro da análise de traduções: as notas do tradutor, ou N.T.

1.1 NOTAS DO TRADUTOR: QUE LUGAR É ESSE?

Em geral, o lugar ocupado pelo texto das notas em uma tradução é no pé da página. No entanto, segundo Henry:

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de capítulo, em fim de volume, até mesmo formando um volume especial. Os textos de pesquisa podem mesmo comportar um sistema de nível duplo, com notas de rodapé indicando um nome de autor ou uma data que remetem, por sua vez, a um corpo de notas bibliográficas mais completo em fim de artigo ou de livro. E encontramos também, na imprensa, notas entre parênteses no interior do texto dos artigos (2000, p. 229 – tradução nossa).

Nesse trecho, a autora descreve a disposição ao longo dos séculos não somente das N.T., mas das notas de um modo geral. E o que podemos observar é que elas ou estão colocadas à margem, de forma ampla (seja do lado do texto ou embaixo dele), ou, estando dentro do texto, são de alguma forma destacadas dele, pelo uso de fonte diferente, corpo menor ou parênteses. Por essa característica, de destaque, podemos pensar que as notas ocupam sempre um lugar marginal, no sentido de estarem fora do texto original.

Pensando especificamente nas N.T., que papel elas desempenham em uma tradução? Ou seja, já vimos que estão à margem do texto, conceito esse que será mais bem discutido adiante, porém, no contexto de uma tradução, do trabalho do tradutor, qual é o seu papel, considerando a tradução como produção de discurso?

Fazendo então um desvio, retomemos a tradução em si como ponto de partida para analisarmos o papel das notas. Assim, quando pensamos no trabalho do tradutor, a primeira questão que vem à mente é, necessariamente, o trabalho da tradução em si, ou seja, o de transpor, de uma língua para outra, um texto escrito por alguém, o que configura a concepção tradicional de tradução, de que traduzir seria transpor as ideias de um texto, o original, para um outro texto em outra língua, o texto traduzido. Nesse caso, então, o papel do tradutor é visto como secundário, porque esse profissional se revela como o instrumento que permite que tal processo aconteça.

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produção de discurso” (Mittmann, 2003, p. 11), como “um processo de produção de um discurso que se materializa no texto da tradução e que tem como especificidade partir da leitura de um texto específico anterior, o texto original” (ibidem, p. 42). Tal concepção é a adotada pela AD pêcheuxiana, e é com base nela que este trabalho pretende pensar a tradução e também o papel que o tradutor exerce nesse processo, como explanado na Introdução.

Neste último caso, ao se considerar a tradução como processo tradutório, ou seja, como processo de produção de discurso, o texto traduzido passa a portar um outro discurso, aquele do tradutor, apesar de ter como base uma “matriz”. Contudo, independentemente de qual posição se adote com relação à tradução, quem acaba por ficar em evidência, tanto para as boas críticas como para as ruins, é o tradutor.

Mas esse “estar em evidência” não o revela de fato, porque seu papel é, na maioria das vezes, visto como secundário em relação ao papel do autor ao produzir o texto original, isso porque a concepção de que a tradução é a produção de um novo discurso não prevalece. Assim, para que o tradutor seja visto, seja ouvido na sua própria voz, no seu próprio discurso, e não como um eco da voz do autor, no sentido de que acessa a mensagem que este quer transmitir, é preciso que seu discurso apareça. Isso quer dizer que, embora o texto traduzido já seja um lugar de produção do discurso do tradutor, sua voz passa a ser reconhecida nos prefácios, apresentações, isto é, nos paratextos, e, logicamente, nas notas do tradutor, em que esse espaço de evidência ganha uma marca: a N.T. É na produção das notas que ele aparece como produtor de um discurso dessa vez explicitamente seu; é nesse lugar que ele pode dar sua opinião sobre o texto que traduz, fazer correções, mostrar conhecimento, ou simplesmente interferir de alguma forma no texto. É nesse lugar que o tradutor se mostra como autor.

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traduzido, pois nesse âmbito é impossível a esse profissional reproduzir tal e qual o texto original, sendo o texto traduzido expresso através do seu discurso, um resultado do seu discurso, de sua interpretação, mesmo se construído sobre uma matriz, que é o texto original.

No entanto, esse lugar explicitamente discursivo dado ao tradutor é visto como marginal, ou seja, como não integrante do corpo do texto principal, a tradução. E o que é a margem, na noção corrente, senão aquilo que está fora, que limita, que permeia, mas que não se integra? Nesse caso, saindo do apagamento dado ao tradutor pela noção de que ele reproduz o texto original, o lugar que lhe resta é à parte, fora, lugar que circunda, que circunscreve, mas que não pertence ao que margeia. Será? Se a tradução é um processo

tradutório, de produção de discurso, ou seja, do discurso do tradutor, que é quem redige o texto, e as notas são o local de evidência desse mesmo discurso, não serão estas uma continuação do texto traduzido? E o que é a margem? Será mesmo o que está fora, o que circunda, não tendo relação com o que está dentro a não ser aquela de limite? Se seguirmos o pensamento de Derrida, é exatamente o contrário, pois

a margem não é um além, o que prescreveria o limite. Não é, por conseguinte, um “fora” (dehors) em oposição a um dentro (dedans). (...) O fora e o dentro se reescrevem e não se separam. A margem e o “marginalizado”, o “disseminado”, o “suplemento” e a possibilidade de ser da escritura (re)compõem o texto; mais do que exteriores a ele, são o “interior do interior”, razão de ser da estrutura que se deixa ler dentro (e) fora da superfície significante (Santiago, 1976, p. 57).

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discurso explicitamente aparece, as notas e a tradução seriam dois momentos de um mesmo processo, dois lugares discursivos em que um origina o outro. Segundo Mittmann (2003, p. 119): “o tradutor não vai para fora dos limites do texto fechado [o da tradução], para produzir um outro texto, o da N.T., mas apenas se estende, em resposta a uma determinada situação de tradução”. E, mais adiante (p. 129): “O discurso da N.T. ocupa um lugar à parte, fora do texto da tradução, e ao mesmo tempo é uma retomada de um elemento daquele texto, que é a expressão a ser definida, comentada, etc. É uma extensão que, geralmente, cria a ilusão de um fechamento de sentido.”

O interior e o exterior que se imbricam, se misturam, se complementam, não como entes separados, mas como dois momentos de um mesmo processo. A margem (as notas de tradução) e o marginalizado (o tradutor) seriam, nesse caso, “mais do que exteriores a ele, (...) o ‘interior do interior’, razão de ser da estrutura que se deixa ler dentro (e) fora da superfície significante”. Assim, o tradutor apresenta-se como aquele que, segundo Michaud, faz “provavelmente uma das formas mais refinadas e superiores de leitura” (2005, p. 121). Ou seja, é aquele que descortina o texto do autor, interpretando-o, esmiuçando-o, não para resgatar seu pensamento, mas para virá-lo do avesso, trazer à tona uma outra “possibilidade de ser da escritura” que vai recompor o texto. O tradutor vai ao “interior do interior”, mergulha na alma do texto e transforma-o a partir desse contato, estando, nesse sentido, totalmente imerso no processo. A isenção de si mesmo, de “exatidão” e de “fidelidade” ao pensamento do autor do original, almejada na concepção corrente de tradução, é uma ilusão.

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Essa fidelidade vai variar em maior ou menor grau, mas está frequentemente ligada à letra e seria uma das justificativas dos inúmeros paratextos que algumas traduções trazem, como é o caso da Comédia humana. O próprio Paulo Rónai, ao falar dessa necessidade de fidelidade, apresenta o tradutor como um eterno devedor do texto original, por não conseguir sempre essa prerrogativa. Segundo ele,

o tradutor, esse modesto artista, “o único que se comporta como se fosse artesão”, procura justificar-se, em prefácios, esclarecimentos, advertências, notas, réplicas e posfácios, tentando a apologia, encarecendo a utilidade do próprio serviço, pedindo a compreensão e a paciência do leitor; e às vezes, consciente de sua culpa, implorando o perdão do autor (...) (1981, p. 25).

Ao comparar o tradutor a um “modesto artista” que “se comporta como se fosse artesão” – mesmo que essa imagem hoje não seja tão forte, já que o trabalho artesanal está saindo da marginalidade –, Rónai está lhe designando um lugar de somenos importância no trabalho tradutório. Esse processo é falho, não chegará nunca à perfeição almejada, e por isso o tradutor tem de fazer seu mea culpa. Isso em função de uma impossibilidade de fidelidade completa, mas por falha do tradutor.

Contudo, pensando a tradução como processo tradutório, como se verá adiante, a pretensa fidelidade, tão ardentemente almejada, cai por terra, pois a tradução passa a ser uma interpretação, com todos os matizes de que esta é capaz.

Retomando o texto de Henry e a questão das N.T., a autora vai apresentar os tipos de notas. Segundo ela:

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A nota autorial, como o próprio nome já diz, seria redigida pelo autor, e, portanto, se se pensar no que foi dito antes, que as notas estariam à margem do texto, seria passível de questionamento se essa nota seria realmente marginal, no sentido de não pertencer ao texto, pois não seria escrita por um terceiro: ou seria redigida pelo próprio autor, assinada por ele, e se configurando, neste caso, uma “continuação” do corpo do texto, ou então seria uma nota escrita por um personagem do livro, tendo um caráter “falsamente paratextual”, segundo a própria Henry (p. 230).

Já a nota alográfica é o cunho do objeto deste trabalho. Escrita por um terceiro, normalmente, hoje em dia, é assinalada como sendo de outra pessoa (no caso das N.T., por exemplo), tendo como característica o fato de fazer comentários críticos sobre a obra, curiosidades linguísticas, dificuldades na tradução, etc.

Uma outra observação que a autora faz em seu texto e que se apresenta relevante para este trabalho é o fato que motiva a presença ou não das N.T., especificamente, em um texto:

(...) a respeito das notas do tradutor, um dos elementos que determinam a presença de notas, sua abundância, seu tamanho e sua maior ou menor autonomia em relação ao texto é, com frequência, mais o tipo de edição de uma obra que o tipo da obra propriamente dita: assim, a edição “nua” dos poemas de Victor Hugo seria desprovida de notas, enquanto sua edição “erudita” comportaria todo um aparelho de notas críticas, dando detalhes biográficos, bibliográficos, históricos, sobre as diferentes versões sucessivas dos textos, etc. (2000, p. 230 – tradução nossa).

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realização do trabalho: ele mesmo afirma em seu livro que foi chamado para coordenar a equipe de tradução porque era “especialista em Balzac” (1981, p. 184) e defendera tese sobre esse autor, segundo suas próprias palavras. Ou seja, veremos, antecipando o que será tratado no próximo item, que o lugar de onde o sujeito fala diz muito sobre o tipo de discurso que será produzido por ele e também sobre a maior ou menor legitimidade desse discurso. E sendo a tradução um processo de produção de discurso, nada mais óbvio do que se levar em conta a posição do produtor desse discurso, no caso, o tradutor.

Assim, é necessário considerar a perspectiva da AD, dessa vez com relação à posição do sujeito em face do seu próprio discurso. E sujeito aqui não se refere a indivíduo, como veremos no item seguinte, mas ao seu lugar discursivo: de onde fala, para quem, por quê, com que objetivo. Vejamos.

1.2 O LUGAR DISCURSIVO DAS NOTAS DENTRO DO PROCESSO TRADUTÓRIO: A ANÁLISE DE DISCURSO

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linguística e a psicanálise. Tais características dão à AD pêcheuxiana um caráter inovador, ao configurar a linguagem como trama discursiva que perpassa o ser social que é o homem. Nas palavras de Orlandi (2005, p. 15):

A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando.

E aqui cabe uma distinção importante para a AD, antes de adentrarmos os outros conceitos estabelecidos por ela: a distinção entre discurso e texto. Para esta, discurso não é a transmissão de informações entre interlocutores, mas, sim, o que produz efeito de sentidos entre eles. Já texto, nas palavras de Orlandi (ibidem, p. 63):

(...) é a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. O que faz ele diante de um texto? Ele o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se explicita em suas regularidades pela sua referência a uma ou outra formação discursiva que, por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formação ideológica dominante naquela conjuntura.

O discurso é expresso materialmente no texto, e o texto, nesse sentido, manifesta o discurso.

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lugar, para que seja eficaz e produza os efeitos de sentido de que é capaz, ele possui uma memória, a memória discursiva. Esta está ligada diretamente ao interdiscurso, e sua eficácia está no seu apagamento. É paradoxal, mas reproduzimos discursivamente o que sabemos sem o sabermos que sabemos, porque está no nível dessa memória, que é esquecida. É o saber que está na ordem do saber, na expressão foucaultiana, e também do não saber que constitui o saber (ver capítulo 2).

Retomando o interdiscurso, deve-se considerá-lo em relação ao intertexto, dentro do processo tradutório. O intertexto surge, no processo de tradução em si, quando o tradutor, para traduzir, estabelece relações intertextuais com o texto original. No entanto, ao comentar a tradução, por exemplo, o que se estabelece é a interdiscursividade: é um discurso sobre o discurso, ou um metadiscurso.

Assim, pensando no processo tradutório, pode-se considerar que o texto das N.T., nosso objeto de análise, na verdade é o intradiscurso do tradutor, pois está no campo da formulação subjetiva, vinculado ao interdiscurso, porque lança mão de outros discursos para produzir o seu, e ao mesmo tempo é um intertexto, nas suas relações com o próprio texto da tradução.

Como podemos perceber, interdiscurso e intertexto são paralelos, o primeiro remetendo ao discurso no sentido corrente e o segundo, a obras propriamente ditas (Maingueneau, 1998, p. 86-87). No caso das N.T., pode-se pensar nas relações interdiscursivas como aquelas que se estabelecem com a apresentação de determinada acepção retirada de um dicionário, por exemplo, e nas intertextuais como aquelas que vinculam o texto da N.T. ao da tradução.

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no que temos consciência, mas também naquilo que aparentemente não sabemos. E, para puxarmos o fio desse discurso, temos de historicizá-lo, para sabermos como ele foi produzido, e daí como se estabeleceram as “verdades” estabelecidas acerca de determinado objeto e também as imagens criadas a partir dessas verdades.

As imagens são da ordem do sujeito e estão ligadas às formações imaginárias, que são as projeções que ele faz do lugar do outro, do seu lugar, da situação discursiva, pois

não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos no discurso (Orlandi, 2005, p. 40).

É o caso do discurso produzido sobre a tradução, por exemplo, de que esta é feita à imagem e semelhança do texto original, de que tem o poder de “acessar” o pensamento do autor, resgatar suas ideias presentes no texto. Isso tudo está em uma formação imaginária, estabelecida a partir do discurso e consagrada na prática, ou seja, são imagens produzidas sobre a tradução no discurso produzido sobre esse mesmo objeto e que acabam por suscitar, por sua vez, outras imagens em quem produz o discurso. Por isso, estas são tomadas como verdade e acabam regendo toda e qualquer concepção corrente sobre a tradução. No entanto, a AD questiona essa concepção de tradução, e, mais do que isso, mostra que ela é apenas um dos discursos que poderiam ter sido consagrados sobre ela. Para a AD de Michel Pêcheux, o regime de “verdade discursiva” não existe, pois o discurso pode ser historicizado, na sua formação (interdiscurso) e na sua formulação (intradiscurso), pois é perpassado pela ideologia.

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inserido em uma formação ideológica, pois, para a AD, “o sentido não existe em si mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas” (Orlandi, 2005, p. 42). A formação ideológica faz com que, através do interdiscurso – ou seja, da memória discursiva que é apagada –, o sujeito não esteja na posse do seu dizer, pois está inserido em uma formação discursiva, que “se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (idem, ibidem, p. 43).

Assim, para a AD, “o sujeito não é o indivíduo que fala ou escreve” (Mittmann, 2003, p. 71), o que significa que “falar em sujeito, portanto, não é falar em indivíduo, e sim em uma posição-sujeito a ser ocupada pelo indivíduo: a mesma posição-sujeito pode ser ocupada por vários indivíduos, e um indivíduo pode ocupar várias posições-sujeito” (idem, ibidem). E a posição-sujeito está inserida em uma determinada formação ideológica, que é refletida

diretamente no discurso produzido a partir da posição-sujeito ocupada pelo interlocutor.∗ Nesse caso, se o interlocutor fala a partir de um lugar, e seu discurso é produzido tendo por base esse lugar, a noção de isenção, quer dizer, de “exatidão” e “fidelidade”, é rechaçada. E o mesmo ocorrerá no caso do processo tradutório, pois o discurso do tradutor, como qualquer outro discurso, será produzido a partir do lugar que ele ocupa na formação social, considerando também a época histórica, social, ou seja, as condições de produção. Ainda segundo Orlandi (ibidem, p. 30), as condições de produção

(...) compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte da produção do discurso. (...)

Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.

Uso interlocutor em um sentido amplo, podendo ser considerado não somente a pessoa com quem se fala, mas

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Considerando esses aspectos, a isenção preconizada pelo tradutor na concepção tradicional de tradução se constitui em uma formação imaginária de língua, de que os sentidos estão inscritos na materialidade discursiva e que basta ao tradutor resgatá-los. No entanto, as palavras de uma língua estão inscritas, de fato, em uma dada formação discursiva, e é na “formação discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes sentidos. Palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas diferentes” (idem, ibidem, p. 44). E essa formação discursiva está remetida a uma determinada formação ideológica e também a formações imaginárias. Nesse caso, não há sentido inscrito em palavras ditas. Este é produzido em uma dada formação discursiva, que tem, como arcabouço, uma determinada formação ideológica, que, por sua vez, suscita determinadas formações imaginárias, e essa formação de imagens ocorre em qualquer produção discursiva e em qualquer posição-sujeito, pois sempre falamos a partir de um lugar, construindo esse dizer com base nas imagens que formamos de nosso interlocutor, da situação discursiva, do objeto do discurso e até de nós mesmos.

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No seu trabalho, o tradutor muitas vezes deparará com esse tipo de questão. Algumas vezes ele a resolverá no corpo do texto. Em outras, utilizará o recurso mais difundido no meio: as N.T. Entretanto, o que se deve ter em mente é que esse uso das notas não é gratuito, isto é, não há uma isenção do tradutor ao produzir as notas. Ao contrário, elas, como qualquer outro discurso, produzirão imagens, do que já falamos um pouco. E é disso que trata o próximo item.

1.3 AS N.T. COMO LOCAL DE PRODUÇÃO DE IMAGENS

Assim, retorno ao ponto em que a tradução, ou o processo tradutório, como aqui tratada, é sempre o resultado de um trabalho de textualização do tradutor a partir daquele realizado pelo autor, pois é fruto de sua (do tradutor) interpretação do texto original. Pode-se considerar, nesse sentido, que esse profissional adquire um status de autor, esclarecendo, de certa forma, por que um mesmo original vai produzir tantas traduções diferentes quantos forem os tradutores, pois os discursos expressos nos textos são diferentes, dependendo das condições de produção. O mesmo vale para as N.T. Isso será explicitado por ocasião da análise das notas, no capítulo 3. Veremos que as N.T. das duas traduções utilizadas como corpus, a realizada pela Globo e a da L&PM, contêm discursos muitas vezes diferentes.

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com quem falo, em que situação de discurso nos encontramos. Essas posições irão determinar, de certa forma, a maior ou menor legitimidade do discurso produzido, sua maior ou menor credibilidade. Pois o discurso também é legitimado em função de quem o produz; daí o saber científico ser respaldado como o discurso da “verdade”, por ser produzido em uma dada época, um dado lugar, por determinados sujeitos que ocupam determinadas posições-sujeito. Desse modo, a posição que esses sujeitos ocupam faz com que esse discurso não seja questionado e ocupe um lugar privilegiado em detrimento de outros, que não têm “respaldo científico”. Ou seja, o discurso será respaldado pelo eixo poder-saber (expressão cunhada por Michel Foucault): que lugar ocupo, que posição de poder é essa, e em função desse lugar, que saber produzo? Isso será visto no próximo capítulo.

Trazendo essas questões para o campo discursivo no qual este trabalho se insere, o campo da tradução, novamente a noção de fidelidade é questionada, pois, se o discurso é sempre produzido através de imagens, logicamente que o discurso do tradutor também será permeado por elas. A tradução produzida por ele será, assim, o resultado de sua interpretação, mas também será recortada pelas imagens que o tradutor produz do texto original, remetido, seja dito, à cultura no qual está inserido, à época em que foi produzido. Nesse sentido, todo discurso é produtor de imagens, e a tradução, como discurso, também produzirá as suas.

Esse ponto é importante porque, no caso da tradução, logicamente quem faz esse processo acontecer é o tradutor, por meio do seu discurso, que está presente em toda a tradução, mas que claramente se mostra no local por excelência de visibilidade: as notas do tradutor.

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por que as palavras não são quase as mesmas, expressas na materialidade textual, algo que se configura inaceitável. Esse caminho, de preconizar uma “fidelidade” ao texto original, revela-se impossível pela perspectiva da AD, pois, revela-se esta “considera que a linguagem não é transparente” (Orlandi, 2005, p. 17), o sentido não está presente nas palavras, mas é produzido no próprio discurso, considerando suas condições de produção, as formações discursiva e ideológica nas quais se insere e levando em conta que todo discurso tem efeitos de sentido em seus interlocutores, que produzem imagens de todo o processo discursivo. Nesse sentido, buscar uma fidelidade em termos de tradução é exigir do tradutor que ele resgate do texto a “mensagem” que o autor queria passar (posição adotada por Paulo Rónai, como veremos adiante), é eliminar o sentido de tradução como interpretação, pessoal e intransferível. Tal processo, de acordo com a AD, se mostra falso e inconsistente.

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Levando em consideração esses pontos, veremos no item seguinte como o tradutor produz essas imagens mediante a análise do discurso do professor Paulo Rónai, quando discorre sobre a tradução em seu livro A tradução vivida.

1.4 PAULO RÓNAI E A COMÉDIA HUMANA

Já que estamos tratando do discurso do tradutor, vamos considerá-lo in loco, tanto nas N.T., objeto principal desta dissertação e que será visto no capítulo 3, como nas palavras de um dos mais consagrados teóricos e tradutores do Brasil: o professor Paulo Rónai, coordenador da tradução da obra completa de A comédia humana, de Balzac.

As N.T. presentes na Comédia humana traduzida pela Editora Globo constituem-se em um corpus riquíssimo quando se trata de analisar o discurso do tradutor, pois totalizam 12 mil, distribuídas nos 89 romances da obra. Para esta dissertação, como foi dito na Introdução, serão usadas como corpus as N.T. de duas traduções brasileiras de O pai Goriot, romance de Balzac, realizadas em épocas diferentes: aquelas presentes na tradução da segunda edição desta obra, de 1989, pela Editora Globo, realizada sob a coordenação de Paulo Rónai, que possui 142 notas, e as de uma tradução mais recente, de 2006, realizada por Celina Portocarrero e Ilana Heineberg para a Editora L&PM, a qual possui 110 notas. No entanto, como recorte epistemológico para a análise, mostrou-se mais interessante utilizar da L&PM somente as notas redigidas no mesmo local das da Editora Globo, para dessa forma poder comparar os discursos de diferentes tradutores realizados em épocas diferentes. Dessa forma, a análise empírica deste trabalho será centrada no discurso das notas da Editora Globo. Elas serão o ponto de partida.

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ao texto traduzido, porque, no caso dessa obra, uma equipe de tradutores se reuniu por 15 anos para fazer o trabalho, sob a supervisão e orientação do professor Paulo Rónai, que, no entanto, foi quem redigiu as N.T. Isso significa que, antes de mais nada, Paulo Rónai assume a posição do tradutor, ou seja, ocupa a posição-sujeito do tradutor, pois é ele quem assume o lugar onde o discurso desse profissional se revela, quando redige as N.T. É seu nome que sobressai quando se fala da tradução da Comédia, e muitas pessoas pensam que foi ele mesmo quem a traduziu. Contudo, como ele mesmo afirma em seu livro:

(...) A versão brasileira foi obra de uma equipe composta de mais de vinte tradutores. Mas coube-me organizar a edição, isto é, estabelecer o plano geral, escolher parte dos tradutores, cotejar e anotar toda a tradução, redigir prefácios para cada uma das 89 obras que a compõem e escrever uma extensa biografia de Balzac, selecionar a documentação iconográfica, reunir uma espécie de antologia da literatura crítica sobre Balzac, compilar índices e concordâncias para o volume final (1981, p. 179).

Dessa forma, analisar as notas da Comédia configura-se analisar o discurso do “tradutor” Paulo Rónai, mesmo que de fato ele não tenha feito a tradução, mas a supervisionado. Assim, é interessante notar como esse autor vê a tradução, o que pode ser observado no livro escrito por ele, A tradução vivida. Nesse livro, ele consegue abordar a profissão de tradutor de forma direta e clara, dando exemplos não só em francês e em inglês, mas também em outras línguas, e tratando dos problemas advindos da profissão: desde a questão da escolha dos significados até as características que um bom tradutor deve ter, segundo sua opinião. Para ele, a tradução é a “reformulação de uma mensagem num idioma diferente daquele em que foi concebida” (1981, p. 16). Quer dizer, o autor tem uma concepção tradicional do ato de traduzir, em que o tradutor é um “transmissor” da mensagem do autor, pois, para reformulá-la, certamente ele teria de apreendê-la. Como afirma ele:

(...) todo texto é alguma coisa mais do que a simples soma das palavras que o compõem. O

que devemos traduzir é sempre algo mais, isto é, a mensagem. E não há duas línguas que

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ora explicita algo que na língua B fica subentendido; ora deixa de exprimir, por óbvio, algo que naquela exige uma ou várias palavras (1981, p. 78 – grifo nosso).

Ou seja, para Paulo Rónai, o tradutor é capaz de apreender a mensagem do autor, devendo transmiti-la tal e qual este quis passar, adaptando-a à estrutura da língua de chegada. Na sua opinião, o que pode atrapalhar tal processo é a diferença entre as línguas, pois, em função de estruturas e léxicos distintos, impediria que a mensagem fosse completa e claramente passada ao leitor.

Atentemos para o fato de que tal concepção de tradução é a correntemente preconizada pelos leigos e também por inúmeros teóricos. E, sendo assim, podemos supor que ela faça parte do interdiscurso sobre a tradução, ou seja, discursos que reproduzem outros discursos sem que se saiba, porque estão inscritos em uma memória discursiva que foi apagada. E essa memória teria origem em uma concepção de língua marcada pela tradição filológica de que as palavras carregariam em si o seu significado, tornando possível ao bom tradutor resgatá-lo.

Nesse sentido, se para Rónai o tradutor consegue transmitir a mensagem do texto original, sendo o único empecilho ao êxito desse processo as diferenças linguísticas, pode-se concluir que, para ele, os significados estão presentes de alguma forma no texto, inscritos nele, e que basta ao tradutor tomá-los e “reformulá-los” do texto original. Ele não leva em conta que o tradutor traduz a partir da leitura pessoal do texto, ou seja, que o texto produzido por ele não porta o sentido, a mensagem do que o “autor quis dizer”, mas esse sentido é produzido no processo discursivo, a partir da interpretação pessoal do texto realizada pelo tradutor.

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(...) pareceu-me que a distância que em espaço e tempo separava a França da Comédia

Humana do Brasil de então era tamanha que exigia numerosas notas de pé de página. E já que

me propunha a redigir essas notas, poderia, ao mesmo tempo, fazer um cotejo entre o texto original e as traduções (1981, p. 185).

Como se vê, ele justifica as inúmeras notas em função das diferenças, sobretudo temporais, entre os dois países, mas também culturais, já que fala em espaço. Pode-se considerar que Paulo Rónai produz “imagens” da França dos romances, mas também do Brasil da época da tradução, o que justificaria as inúmeras notas, pois, como veremos adiante, segundo ele, o leitor precisa ser esclarecido em inúmeros pontos para que sua leitura da obra seja bem-sucedida. Nesse sentido, ele também produz uma imagem de leitor a quem dirige as notas. Ou seja, todo e qualquer discurso é produzido com base em “imagens” que produzimos da situação, do objeto do discurso, do interlocutor e até de nós mesmos, como já foi dito.

Mais adiante, há um comentário mais esclarecedor sobre as notas:

Uma palavra agora a respeito das notas de pé de página. A Comédia humana está tão cheia de alusões a instituições, acontecimentos, fatos, romances, peças e poesias da época, além de referências incessantes às artes das épocas anteriores, especialmente da Antiguidade clássica e da mitologia greco-romana, que a sua elucidação se tornava indispensável. Não convinha arriscar que a falta dessas explicações indispusesse o leitor com a obra; era bem pouco provável que ele mesmo se entregasse a pesquisas para esclarecer tantos trechos (1981, p. 189).

É interessante notar que, para Paulo Rónai, o fato de a tradução não conter explicações das “instituições, acontecimentos, fatos, romances, peças e poesias da época” poderia “indispor” o leitor com a obra. Vê-se, a partir daí, que o autor produz algumas “imagens” do leitor a quem a sua tradução se dirige; nesse caso, a de um leitor ávido de conhecimento, mas que não se entregaria “a pesquisas para esclarecer tantos trechos”, segundo nossa interpretação∗ um leitor passivo, que espera um texto totalmente esmiuçado e que não ofereça

Se grifo aqui esta expressão é para lembrar que o tempo todo eu também – como leitora de Paulo Rónai e das

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resistência à sua leitura. Ou seja, é a esse leitor imaginário, concebido por ele, que a tradução da Comédia se dirige, e é para ele que as inúmeras N.T. são redigidas.

Em outro trecho de seu livro, Rónai fala um pouco mais desse leitor a quem as notas são dirigidas:

Outro tipo de notas respeita às personagens e seus antecedentes. Nenhum leitor comum, ainda menos os de hoje, impacientes e solicitados por mil interesses, seria capaz de trazer na cabeça a biografia e os aparecimentos anteriores desta ou daquela personagem. Daí os vários cadastros e repertórios já publicados na França que constituem o Who’s who? do mundo balzaquiano. (...) Como a tradução e adaptação dessas obras seria muito trabalhosa além de pouco prática, pois raros leitores teriam a paciência de compulsá-las a cada passo, resolvi eu mesmo registrar os antecedentes dos protagonistas quando reapareciam pela primeira vez num novo romance. Por outro lado, distinguiria as personagens reais das fictícias (1981, p. 190-191 – grifos nossos).

Nesse trecho, podem-se verificar outras imagens produzidas por Rónai do leitor a quem se dirigem as notas da Comédia. As expressões grifadas – leitor comum; os de hoje, impacientes e solicitados por mil interesses; raros leitores; paciência – revelam a impressão

de um leitor, primeiramente, que não tem o saber que ele, professor Rónai, especialista em Balzac, possui; daí a expressão leitor comum. Em seguida, revelam também como esse leitor da época dele se apresenta a Rónai: os de hoje, impacientes e solicitados por mil interesses, ou seja, um leitor que não teria tempo de se debruçar minuciosamente sobre o texto de Balzac, pesquisar, tomar notas, ligar os fatos e acontecimentos dos vários romances e personagens da Comédia. Aqui se observa que o professor busca no leitor das notas uma cumplicidade. De

certa forma, ele quer que esse leitor também tenha um conhecimento da obra balzaquiana, compartilhado por ele, algo que lhe é impedido pelos tempos de hoje, pela impaciência e inúmeras solicitações da vida atribulada do mundo atual (da época da tradução da obra).

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têm um interesse profundo nos meandros da obra balzaquiana. Por isso são raros, porque a obra, na verdade, é lida por leitores comuns, em sua maioria, que leem apenas por prazer. Já paciência remete a impacientes e solicitados por mil interesses, ou seja, os leitores de hoje, os

que não têm tempo para se lançar a um desenredar da Comédia. É a todos os leitores que as N.T. dessa tradução se dirigem, para lhes acrescentar conhecimento, mergulhá-los mais fundo no mundo balzaquiano, suscitar-lhes interesses maiores.

Assim, voltando ao que pensa Rónai sobre a tradução, se o tradutor, em uma visão mais tradicional da tradução, como a dele, é visto como capaz de apreender a mensagem do autor, como enfatizei anteriormente, ele também deve ter a capacidade de conduzir o leitor

até o pensamento do autor. Assim, pode-se entender que o número expressivo de N.T. da

Comédia contém a ideia de que o leitor também deve ser conduzido “pela mão” a um

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fundamental, tal leitura partirá do texto produzido pelo tradutor, e não mais do texto original do autor.

Voltando às notas, elas também acabam por eliminar a possibilidade de interpretação do texto pelo leitor, em alguns casos, pois a interpretação será aquela do tradutor. Assim, esse leitor produzirá seu discurso, sua interpretação, emoldurado pelas explicações do tradutor. Sua interpretação, então, passará, de certa forma, a ser “guiada” pelo próprio tradutor.

Por outro lado, as N.T., de fato, descortinam um universo de saberes, esclarecem dúvidas, ampliam o conhecimento de um leitor que talvez não conseguisse por si só buscá-lo, muitas vezes não por falta de vontade, mas por falta de tempo, ou de acesso a informações. Ou então despertam nele um desejo de saber mais que não seria produzido caso as N.T. não existissem no texto.

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2

AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PODER-SABER

Ora, o que esses intelectuais descobriram (...) é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muitíssimo bem. Mas existe um sistema de poder que barra, interdita, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não está apenas nas instâncias superiores da censura, mas que se enterra muito profundamente, muito sutilmente em toda a rede da sociedade (Foucault, [1972] 2006, p. 39).

No capítulo anterior, foram apresentados os conceitos da Análise de Discurso de Michel Pêcheux para construir uma análise do processo tradutório, tendo como exemplo do discurso do tradutor o de Paulo Rónai, explanado principalmente em seu livro A tradução vivida. Neste capítulo, como contraponto à AD, vamos apresentar como suporte teórico as

considerações de Michel Foucault sobre o poder.

Foucault não empreendeu uma análise da tradução, tema desta pesquisa. Entretanto, seu trabalho sobre as articulações do poder pode servir de base para se examinar o discurso do tradutor explanado nas N.T. Nesse caso, o lugar discursivo das notas será visto como local de poder-saber, expressão foucaultiana que abarca o seu olhar sobre a sociedade e suas transformações. Afinal, segundo o próprio autor, em A vontade de saber (2007, p. 18), “o poder penetra e controla o prazer cotidiano – tudo isso com efeitos que podem ser de recusa, bloqueio, desqualificação, mas também de incitação, de intensificação, em suma, as ‘técnicas polimorfas do poder’”. E se o poder possui várias formas, se permeia o cotidiano em múltiplas atuações, seu polimorfismo também é expresso no discurso, tanto cotidiano como acadêmico, tanto corrente como legitimado.

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legitima esse discurso e como o tradutor, mesmo sem o saber, vale-se dessa prerrogativa, desse lugar que ele ocupa para produzir o seu discurso nas notas? Que papel as N.T. desempenham em uma tradução? Que efeitos de poder elas suscitam? Essas são algumas das questões que serão respondidas, utilizando como suporte teórico as formulações de Michel Foucault.

2.1 ARQUEOLOGIA E GENEALOGIA: AS DUAS FASES DOS ESTUDOS DE FOUCAULT

O objeto deste trabalho não são os estudos filosóficos e históricos de Foucault, por isso não entraremos a fundo em suas análises. No entanto, mostra-se necessária uma abordagem de como se processou seu desenvolvimento epistemológico, até se chegar ao ponto de interesse para esta pesquisa: a teoria em torno do poder.

Os estudos de Foucault são divididos em duas fases: a arqueologia e a genealogia, ou seja, a arqueologia do saber e a genealogia do poder.

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sexualidade, a medicina, por exemplo, vai mostrar como foi sua formação histórica, como eles se modificaram, em quê, em qual momento. A partir desse estabelecimento de suas trajetórias, será possível, assim, detectar seu aparecimento em determinado momento histórico e suas influências no campo social. Pois, para Foucault, o que interessa,

no problema do discurso, é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento. Não é o sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento. Para mim, trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao campo político, ou às instituições ([1978], 2006, p. 255-256).

Podemos estabelecer aqui um liame com o capítulo anterior. Se o que interessa no “problema do discurso é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento”, pode-se remeter tal assertiva à configuração do que, na AD pêcheuxiana, é chamado de posição-sujeito.

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ocupar – isto é, da posição-sujeito. E é esse grau de legitimação que vai fazer com que determinado discurso, produzido em determinada época e por determinada pessoa ou grupo de pessoas, remetidas a uma dada inserção social, ganhe legitimação tal que seja tomado como regime de verdade. É esse estabelecimento de determinados regimes de verdade (o discurso sobre a loucura, a sexualidade, a prisão) que é o objeto de estudos da arqueologia foucaultiana.

Novamente aqui podemos remeter ao capítulo anterior. Como foi dito no item 1.3 desse capítulo, não existe um “regime de verdade discursivo”. A verdade é produzida pelo e no discurso, e o que Foucault procura mostrar é que essas “verdades” podem se modificar a

partir do momento em que as regras de formação dos discursos que “portam” essas supostas verdades são modificadas. Falaremos sobre a “verdade discursiva” mais adiante neste capítulo.

E se o discurso produz “efeitos de verdade”, está, por sua vez, permeado pelos efeitos de poder que percorrem todo e qualquer discurso. E aqui anunciamos a nova fase dos estudos de Foucault. Depois da arqueologia do saber, a genealogia do poder. Contudo, estas não são estudos estanques, mas instâncias que se entremeiam, imbricam, resultando na expressão foucaultiana que resume suas pesquisas: o poder-saber.

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configurando-se em um micropoder, que é mais eficaz que o poder reconhecido como autoritário – mais eficaz porque não é localizável.

Foucault parte das instâncias discursivas tratadas em sua arqueologia para descobrir nelas esse agenciamento de poder insidioso e permanente. Um poder que coage os saberes, mantendo-os em uma teia discursiva que “seleciona”, por assim dizer, quais saberes devem ou não ganhar legitimidade. Segundo ele, quando se elege um saber, ou um discurso – o científico, por exemplo –, como o saber legítimo, desqualifica-se, em contrapartida, um outro que não pode ganhar esse estatuto. Nesse sentido, a produção de saberes está sempre em uma relação dialética com a desqualificação também de saberes. De acordo com o autor: “Enquanto a arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade” (1979, p. 172).

Portanto, o que Foucault pretende com sua genealogia é trazer à tona esses saberes não legitimados e desqualificados pelo poder. É descobrir, perceber os efeitos de poder que são expressos nesses discursos, que fazem com que a trama discursiva seja permeada pelo binômio poder-saber. Ainda em suas palavras:

A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico (1979, p. 172).

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Eu parto do discurso tal qual ele é! Em uma descrição fenomenológica, se busca deduzir do discurso alguma coisa que concerne ao sujeito falante; tenta-se encontrar, a partir do discurso, quais são as intencionalidades do sujeito falante – um pensamento em via de se fazer. O tipo de análise que pratico não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder está implicado, e para o qual o poder funciona. Portanto, o poder não é nem

fonte nem origem do discurso. O poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder ([1978],

2006, p. 253 – grifos nossos).

Assim, se o poder faz parte da trama discursiva, se ele a perpassa sem ser sua origem, o que há na relação discurso-poder-saber é, pode-se supor, um mecanismo de retroalimentação, em que as três instâncias engendram umas às outras, autorregulando-se, autoproduzindo-se e produzindo, por sua vez, efeitos na trama social. Um saber que é expresso em um discurso legitimado por um determinado poder. E é exatamente disso que trataremos no tópico seguinte: o saber expresso pelo discurso do tradutor legitimado pela posição que ele ocupa nesse campo de saber. Ou seja, de que forma o poder-saber perpassa o discurso do tradutor, objeto desta dissertação?

2.2 PODER-SABER: O EIXO DA TRAMA DISCURSIVA

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de onde fala, a quem se dirige. Contudo, esse lugar discursivo, essa posição-sujeito também pode se expressar de outra forma, como local de poder-saber: a partir do lugar que se ocupa, que saber é expresso através do poder legitimado por esse lugar? Mais claramente: como a posição-sujeito do tradutor possibilita que este exerça seu poder através do seu saber? E se o poder-saber é expresso pelo indivíduo através da posição em que ele ocupa na sociedade, segundo Foucault, e se para a AD o discurso legitimado depende da posição-sujeito, está aqui um dos pontos em que as duas teorias se encontram, o que já foi mencionado no item anterior. Para Gregolin (2006, p. 53-54) também, os dois teóricos – Foucault e Pêcheux – possuem pontos em comum, mas também diferenças significativas, que darão a direção de suas teorias. Segundo suas próprias palavras:

(...) ambos tinham projetos epistemológicos que, apesar de distintos, encontraram-se em vários pontos. Em Pêcheux, ele se concretiza na busca de construir a análise do discurso, e nela estão envolvidos a língua, os sujeitos e a História. Por estar fortemente centrado na construção desse campo, ele dialoga constantemente com a Linguística por meio de uma relação tensa com Saussure, Marx e Freud. Essa Tríplice Aliança acompanha a construção de um projeto teórico de refacções constantes e que visava à construção de uma teoria materialista do discurso aliada a um projeto político de intervenção na luta de classes, a partir da leitura althusseriana do marxismo-leninismo. Concebendo a teoria fortemente vinculada à prática política, Pêcheux tinha, ao mesmo tempo, uma busca metodológica que se materializa na tentativa de construir um método para a análise do discurso (a “análise automática”).

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Tendo em vista essa citação e o que foi tratado no capítulo 1, pode-se perceber que, enquanto Pêcheux se centrará muito mais na prática discursiva propriamente dita, Foucault partirá do discurso para traçar os contornos da sociedade e do objeto que pretende estudar. Assim, partindo do discurso produzido, ele estudará a loucura, a medicina, a prisão, delineando as transformações sofridas pela sociedade nesses campos a partir do discurso produzido neles e por eles. Como as transformações do discurso sobre determinado campo de saber engendraram transformações nesse mesmo campo de saber?

Se fôssemos seguir o procedimento foucaultiano de análise empírica, teríamos de tratar historicamente da tradução, isto é, quais foram os regimes discursivos que estabeleceram, ao longo da história, a concepção de tradução que temos como “verdadeira” atualmente? Lembremos que vimos no início desta pesquisa que uma das concepções correntes de tradução a concebe, simplificadamente, como reprodução do texto original do autor. Esta seria uma análise arqueológica e genealógica da tradução, que iria investigar a matriz de poder-saber do discurso sobre esse objeto. Contudo, considerando a dimensão restrita desta pesquisa, tomaremos como ponto de estudo somente o lugar ocupado pelo discurso do tradutor nas N.T. Concebendo, como Foucault, que o discurso científico (aquele da medicina, do sistema judiciário, por exemplo) é legitimado, levaremos em conta também a importância do discurso do intelectual e como ele produz saber a partir do local que ocupa na sociedade, ou seja, exercendo o seu poder. Nesse caso, qual a dimensão que ganha o discurso de Paulo Rónai, como acadêmico e professor respeitado, ao discorrer, em seus livros publicados no Brasil, sobre o ofício do tradutor e a obra de Balzac? Sobretudo, qual a sua importância como intelectual? Que efeitos essa sua posição produz a partir de seu discurso?

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(...) ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades. (...) É então que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribuem ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (...).

Dessa forma, retomando as N.T., analisá-las passa a ser muito mais do que pensar o lugar em que o tradutor se revela, se mostra, aparece. Trata-se, sobretudo, de pensar o lugar do discurso do tradutor, e, assim, o lugar de produção de conhecimento, de produção de saber e, consequentemente, de exercício de poder, em virtude da posição que ele ocupa na sociedade (posição-sujeito, segundo Pêcheux), posição essa que dá a seu discurso um caráter de “verdade”, pois ele passa a ser legitimado.

Para entender o discurso do tradutor sob essa perspectiva, é preciso ressaltar que, sob a presente perspectiva de análise, não existe a dicotomia linguagem/realidade, pois a realidade não pode ser considerada como uma “entidade”, ou seja, algo que possui uma essência em si, aprioristicamente falando. Assim, se o discurso não é algo que se diz sobre uma realidade preexistente, que pode retratá-la, a realidade é construída pelo e no discurso, na prática, o que questiona a crença em uma verdade “transcendental” que deveria ser buscada, mas que nunca poderia ser alcançada, porque é inacessível. Essa verdade, na visão foucaultiana, não existe. Ela também é produzida pelo e no discurso, sendo corroborada por determinadas práticas discursivas. Ou seja, a verdade é construída.

Segundo o próprio autor:

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discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (1979, p. 12).

Deve-se atentar que, se cada sociedade produz a “sua” verdade, legitimada pelo e no discurso, essa verdade [discursiva] vai variar de acordo com a época e quem a produz. Isso será importante ao compararmos, no capítulo 3, os discursos produzidos em duas N.T. referentes a um mesmo trecho da tradução, no corpus analisado, em duas traduções diferentes da mesma obra. Veremos que esses discursos se alteram com a época e, consequentemente, também os efeitos produzidos por eles serão de outra ordem. Nas palavras de Foucault:

Há efeitos de verdade que uma sociedade como a sociedade ocidental, e hoje se pode dizer a sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se verdade. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam. São essas relações verdade/poder, saber/poder que me preocupam (Foucault, [1977] 2006, p. 229).

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resume a simplesmente uma reprodução tal e qual do texto original, é a definição corrente, que a AD, como visto no capítulo 1, ao ser usada para analisar o processo tradutório, questiona.

Se o discurso é prática e se a noção de “verdade” é produzida nele, não cabe ao tradutor “buscar” uma verdade previamente dada, em um plano metafísico qualquer (no caso, sendo esse plano o texto original do autor), mas sua tarefa será sempre a de produzir um discurso próprio, que será uma interpretação (entre tantas possíveis) e trará em seu bojo outros discursos, outras interpretações e todo um contexto social que se refletirá, em maior ou menor grau, no seu texto. Os discursos não possuem uma “verdade”, um núcleo ao qual se pode chegar, onde está a ideia que deve ser resgatada. Isso significa que é impossível ao tradutor chegar ao que o autor “quis dizer”, pois ambos os discursos, do tradutor e do autor, são únicos em si mesmos. Não existe uma “verdade transcendental” a ser revelada e transmitida. Existem discursos a serem formulados, que estão sujeitos a certas condições de produção, condições econômicas, sociais, do próprio “assujeitamento” do sujeito, ou seja, condições que envolvem o discurso e que o determinam, pois estes “são séries de acontecimentos que a ordem do saber produz e controla” (Araújo, 2004, p. 236).

Retomando as N.T., se elas se configuram o lugar de evidência do discurso do tradutor, onde este se revela em sua singularidade, elas passam a refletir, em maior ou menor grau, o comprometimento do tradutor com a produção de saberes e, assim, com o exercício de seu “micropoder”.

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no tecido social e nas relações, e macropoderes, estes tendo como representantes principais o Estado e as instituições.

Nas suas palavras ([1977] 2006, p. 233):

As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele

que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de

relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos,

microlutas, de algum modo. Se é verdade que essas pequenas relações de poder são com

frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço militar, se não houvesse, em torno de cada indivíduo, todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor – àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal ou tal ideia? (grifos nossos)

Esses macropoderes e micropoderes imbricam-se, entremeiam-se, e o que vemos é uma rede de exercício de poderes, uma trama, na qual todos exercem uma parcela de poder. Como o poder é exercido por todos e produz saber, ele “possui uma eficácia produtiva, uma riqueza, uma estratégia, uma positividade” (Machado, 1995, p. XVI); ele “não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o fabrica” (idem, p. XX), produz o indivíduo porque o singulariza. E sendo fabricado, esse indivíduo passa a também exercer poder, bem como a expressar saber. Daí a formulação poder-saber como algo que não se exerce separadamente, constituindo-se reciprocamente.

Ainda com relação à caracterização do poder como algo que está pulverizado na sociedade e nas relações sociais e discursivas, Foucault tem o cuidado de separá-lo do significado que comumente lhe damos de algo que somente é exercido como repressão, tendo um caráter meramente cerceador:

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