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AS N.T.: A “VERDADE” DO TRADUTOR

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 56-60)

2 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PODER-SABER

2.4 AS N.T.: A “VERDADE” DO TRADUTOR

Um dos pontos mais importantes deste capítulo, tendo por base a teoria de Michel Foucault, é o caráter de “não verdade” dos discursos. Ou seja, como foi explicado, para Foucault a verdade é construída – pelo discurso, pelas práticas discursivas, discurso esse inserido em uma dada formação social, o que vai refletir as “verdades” produzidas por essa dada sociedade, que, por sua vez, serão diferentes de outras “verdades” produzidas por uma outra sociedade. Podemos então dizer que é a “vontade de verdade” que irá produzir determinados discursos, principalmente aqueles legitimados, isto é, os científicos, os acadêmicos, que estão ancorados em uma determinada expressão de poder-saber. As N.T. se configuram como esse lugar, como veremos.

Como vimos no item anterior, o poder-saber do tradutor vai se expressar pela sua posição-sujeito, na expressão da Análise de Discurso, ou seja, pela posição que ele ocupa no tecido social. No caso de Rónai, essa posição é legitimada pelo fato de ele ser especialista em língua francesa e na obra balzaquiana, o que o autorizou a coordenar, como autoridade, a tradução, durante 15 anos, dos 17 volumes da Comédia humana. Assim, ao tradutor é permitido tomar a palavra, pois o que ele diz é corroborado por sua posição de “sujeito qualificado”, na expressão de Araújo (2004, p. 234).

Observamos também, principalmente no capítulo 1, que Rónai apresenta, como forma de trabalho, uma concepção tradicional da tradução, que afirma como tarefa principal do tradutor o resgate da mensagem do texto original e sua transmissão, com o máximo de isenção, ao leitor da obra traduzida. Relembrando suas palavras em A tradução vivida, a tradução seria “a reformulação de uma mensagem num idioma diferente daquele em que foi concebida” (1981, p. 16).

No entanto, como dito também no final do item anterior, ao redigir tantas notas em um texto de tradução, como foi o caso da Comédia, Rónai entra em contradição, pois sua possível não isenção com relação ao texto original é revelada, tendo em vista que o lugar das notas é um daqueles onde o tradutor aparece. Ou seja, as notas vêm mascaradas sob a forma de esclarecimento ao leitor, mas escondem a intenção do tradutor de se fazer presente, de se mostrar como “dono” do texto da tradução, de intervenção.

Cabe também verificar que, no caso da Comédia, não é somente nas N.T. que a presença do tradutor se revela de forma tão enfática. Como Rónai diz em seu livro, ficou a seu cargo também a redação das notas introdutórias que acompanham cada um dos 89 romances da obra. Segundo suas próprias palavras:

Cabe-me dizer algo a respeito das notas introdutórias que escrevi para cada uma das oitenta e nove unidades da Comédia. Sem qualquer veleidade de eruditismo tentei dar nelas algumas informações indispensáveis a respeito da gênese e da fortuna da obra visada, dos modelos vivos das personagens, da base real (quando havia) do enredo, das reações da crítica etc. (...) Evitei antecipar nessas notas a ação e o desfecho das obras para não minorar o efeito de surpresa e o prazer estético (1981, p. 188-189).

Interessante notar o caráter de “falsa modéstia” do discurso de Rónai. “Sem qualquer veleidade de eruditismo” denota certamente um recurso retórico, pois não há como questionar o fato de que Paulo Rónai se revela, sim, como o “grande tradutor” da Comédia, apesar de não tê-la traduzido, e que seu trabalho nessa obra foi o que marcou sua carreira como acadêmico no nosso País. A tradução dessa obra é perpassada por sua presença, e mesmo nas atuais traduções dos romances ele é mencionado, como se verifica na Apresentação a O pai Goriot escrita por Ivan Pinheiro Machado, romance traduzido pela L&PM, cujas notas serão usadas no capítulo 3 como contraponto às da tradução coordenada por Rónai. Nas palavras de Ivan Machado: “O grande intelectual Paulo Rónai (1907-1992), escritor, tradutor, crítico e coordenador da publicação de A comédia humana no Brasil, nas décadas de 1940 e 1950,

escreveu em seu ensaio biográfico ‘A vida de Balzac’: (...)” (2006, p. 10). Ou seja, Rónai é o grande “intelectual” e certamente “erudito” que revelou a Comédia humana ao leitor brasileiro.

Retomando as N.T. e respondendo à primeira questão apresentada – Que papel as N.T. desempenham em uma tradução? –, o papel desempenhado por elas é, legitimamente, o de esclarecer o leitor sobre determinados pontos obscuros da tradução, pontos esses que o tradutor não resolveu na trama do texto traduzido. Nesse sentido, elas podem ser o lugar da “reticência” do tradutor, ou seja, os points de suspension em que o tradutor para, pensa e toma outro rumo. Constituem uma mudança de direção, no sentido de que o tradutor deixa de lado o discurso produzido em cima do discurso do texto original e toma as rédeas de um discurso explicitamente seu, que ganhará uma marca denotando sua presença. São também o local de mostra de saber, em que o tradutor esclarece pontos do texto, acrescenta conhecimento, corrige eventuais “enganos” do texto original. Nesse espaço, ele revela sua “proximidade” com o texto original, com a “verdade” do autor, revelando, por sua vez, a própria “verdade” discursiva.

Nesse caso, respondendo à segunda pergunta – Que efeitos de poder as notas do tradutor suscitam? –, se a “vontade de verdade” irá produzir determinados discursos, principalmente os legitimados, como já dito, ou seja, irá produzir saber, as notas, como local dessa expressão de “verdade”, irão revelar o poder legitimado, o científico, o acadêmico, determinado no binômio poder-saber.

Elas, então, deixam de ser apenas um local de evidência do tradutor para ser o lugar de exercício de poder, engendrado por um saber, expresso no discurso do tradutor, pois este emerge na sua própria voz. Retomando o nosso objeto empírico, Paulo Rónai, ao mesmo tempo em que aconselha uma tradução mais próxima ao original (ver A tradução vivida,

1981), que preconiza essa isenção do tradutor e não ousa tanto no texto da tradução, marca sua presença com as N.T., revela sua “verdade discursiva” nesse espaço, expressa seu poder- saber, o saber de especialista em Balzac, de acadêmico, ligado a instituições que denotam esse poder, que lhe dão um título e o legitimam para exercer a função de intelectual. Pois não é intelectual quem quer. Este é reconhecido por determinados meio, função, discurso. E tudo isso será corroborado pelas epistemes epocais, que se alterarão conforme a época, como a própria expressão denota.

E é levando em conta essas epistemes epocais que adentraremos o capítulo 3. Apresentando o corpus de notas de O pai Goriot da tradução de Paulo Rónai, este capítulo terá como objetivo verificar o discurso do tradutor in loco, tendo como suporte teórico tudo o que foi discutido até o presente momento nos dois primeiros capítulos. E como contraponto serão analisadas, juntamente com as notas produzidas por Rónai, as que estão presentes na tradução da L&PM. O intuito é verificar se há diferença de discurso em um decurso de tempo de 20 anos, e, se houver, em que isso é relevante e quais “verdades” esses novos discursos irão produzir.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 56-60)