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CAPÍTULO 3. CONCEPÇÃO DE ENSINO POR CICLOS

3.3 A discussão nos anos 2000

A organização do ensino em ciclos é complexa e rompe com alguns pressupostos do ensino seriado: a fragmentação do conteúdo por ano; a adequação do período letivo ao ano civil; a avaliação como mecanismo de reprovação/aprovação; o trabalho individualizado dos professores por série; o ritmo da aprendizagem estabelecido previamente de forma inflexível.

A concepção de ensino que acompanha os ciclos abandona a lógica, segundo a qual a aceitação das desigualdades é decorrente das diferenças individuais. Como medidas de não- repetência, eles rompem com a fragmentação decorrente da seriação e remetem a mudanças na concepção do tempo, do espaço e da própria cultura escolar, visando garantir que um grande contingente de alunos excluídos possa permanecer na escola e adquirir conhecimentos socialmente relevantes (BARRETTO, 2000).

Para Freitas (2003) os ciclos “procuram contrariar a lógica da escola seriada e sua avaliação. Só por isso, já devem ser apoiados”. A literatura nos mostra que a grande maioria dos autores defende os ciclos como superação da lógica da exclusão e submissão, embora exista a crítica às diversas formas de implementação e da exclusão no interior dos ciclos, quando se muda a organização do sistema, permanecendo a lógica e estrutura do ensino seriado.

Dentre os autores consultados, apenas Demo (1998) se declara abertamente contrário à progressão continuada com argumentos de cautela, face aos riscos de escamotear a falta de aprendizagem, levando a escola pública a ser considerada “coisa pobre para os pobres”.

Podemos estabelecer como referência para a concepção de ciclos, as propostas citadas acima: “escola plural” e “escola cidadã”, implantadas respectivamente em Belo Horizonte e Porto Alegre. A Escola Plural, em Belo Horizonte opõe-se frontalmente às demandas de “qualificação para o mercado”, levantando algumas questões cruciais, das quais destacamos as seguintes:

Como romper com essa mentalidade para que o processo ensino/aprendizagem seja motivado por objetivos que ultrapassem os limites das pressões economicistas? Como fazer frente à lógica neoliberal e assumir valores da cidadania relativos à solidariedade, cooperação e compromisso ético com o público? (BELO HORIZONTE, 1994, p. 35).

O Programa Escola Plural foi instituído como uma das possíveis respostas a essas questões. De acordo com a proposta da Secretaria de Educação de Belo Horizonte (1994), o programa amplia os espaços educativos para além dos muros da instituição escolar, reformula a noção de currículo, de processo ensino-aprendizagem e de avaliação e re-propõe, com argumentos consistentes, a continuidade da trajetória escolar do aluno sem as restrições da medida de tempo, característica da seriação.

A proposta dos ciclos de formação defende a não-retenção por uma tomada de posição ética quanto ao direito à educação e quanto às características do processo ensino- aprendizagem do sujeito aprendiz. A Secretaria de Educação de Belo Horizonte (1994, p. 17), coloca “que não é profícuo, muito menos justo, reter o aluno na mesma série, significando concretamente fazê-lo retroceder, quando o processo de aprendizagem vivido por ele é um processo progressivo, de construções sucessivas com chances de superação das defasagens anteriores”. Um enfoque semelhante é a proposta da Escola Cidadã estruturada por Ciclos de Formação em Porto Alegre a partir de 1995.

No âmbito de nossa discussão, essas duas propostas são suficientes para demarcar a lógica que o regime de ciclos traz para a escola e o rompimento com a seriação. Entretanto, lembramos que a lógica da seriação está além da vontade política dos agentes educacionais, é preciso combater a organização sócio-política que, historicamente, construiu a “forma escola” com uma função social excludente e de dominação (FREITAS, 2003). O grande desafio dos ciclos é a superação dessas lógicas já instituídas. Não basta que o ciclo contraponha-se à seriação alterando tempos e espaços, faz-se necessário o investimento na formação dos professores e a garantia de formar os estudantes para a autonomia favorecendo a auto- organização dos estudantes.

Neste contexto, a opção por ciclos escolares, para maior compreensão da proposta deve considerar a necessidade de articulação de várias concepções, a exemplo de:

outras proposições relativas a aspectos de organização dos sistemas escolares com os quais se apresenta fortemente articulada: concepção de educação escolar obrigatória, desenho curricular, concepção de conhecimento e teoria da aprendizagem que fundamentam o ciclo, processo de avaliação, reforço e recuperação, composição de turmas, enfim, novas formas de ordenação dos tempos e espaços escolares que envolvem os diferentes atores sociais afetados pelos ciclos (BARRETTO, 2001, p.

103).

Os ciclos ainda carecem de ajustamentos, estamos longe do proposto pelos gestores da educação em diferentes Redes de ensino de diferentes colorações partidárias, com o que é efetivado no cotidiano das escolas e da transposição dos princípios para a sala de aula com os nossos estudantes. O fantasma e o castigo das “notas” ainda assolam e assombram muitos estudantes. As desigualdades e os processos de exclusão do ensino seriado ainda são reproduzidos em algumas Redes em que o ensino é organizado por ciclos.

Vários estudos mostram as contradições entre a retórica da escola em ciclos e a prática real concreta, sobretudo no que concerne a prática docente, pois os investimentos na formação continuada dos professores têm sido insuficientes nos processos de sua implementação (LEITE, 1999; MAINARDES, 2004, 2006).

Outro agravante é a forma de implementação da política. Os estudos de MAINARDES (1995a, 2004, 2006, 2007) e Leite (1999) mostram que a implementação dos ciclos tem ocorrido ‘cima para baixo’, sem a participação dos professores, de forma que modelos de implementação mais participativos têm sido indicados como alternativa.

Enfim, os ciclos não podem constituir-se em uma mera “solução pedagógica” visando superar a seriação. Devemos vê-los tal como defende Freitas (2003, p.68), “como instância política de resistência à escola convencional e que, junto aos movimentos sociais avançados, irá ajudar a conformar uma nova sociedade, na qual homens não sejam exploradores de homens”.

Portanto, acreditamos na perspectiva de realização afirmativa a partir da proposta de uma escola organizada em ciclos de aprendizagem, que terá no bojo do projeto político- pedagógico o respeito às diferenças e a não fragmentação do currículo, em que o tempo escolar de cada estudante será respeitado, privilegiando a ação escolar como espaço de conhecimento e construção coletiva. Para tanto, faz-se necessário um olhar aprofundado sobre seus processos de implementação e funcionamento para o compreendermos melhor, de forma a contribuir com o seu fortalecimento e, consequentemente, para a melhoria do trabalho pedagógico escolar.