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2.2 Os verbos SEE e VER

2.2.1 O primeiro teste com o verbo see

2.2.1.4 Discussão

Como esperado, a compreensão dos complementos infinitivos é estabelecida desde cedo, seja com a ocorrência de um evento (condição 1) ou com a não-ocorrência do evento (condição 2). As taxas de acerto estão acima de 85% para todas as idades, em ambas as condições, conforme Tabela 4. Freire (2007) inclusive apresenta resultados que apontam que por volta dos 3 anos de idade a aquisição dos complementos finitos para o verbo perceptivo ver já está completa.20 De fato, a taxa de acerto no grupo de 4 anos nas condições 1 e 2 – 94% e 100%, conforme Tabela 5, respectivamente – revela que a criança

20 Conforme discutimos no início deste capítulo, os resultados de Freire (2007) apontam uma taxa de acerto

de 70% na combinação ver + complemento infinitivo para as crianças de 2 anos de idade; e de 100% de acerto para as crianças de 3 e 4 anos. Para o autor, resultados acima de 85% já permitem afirmar, com segurança, que a aquisição esteja completa. Os resultados encontrados também são justificados em função de tais complementos serem mais simples, pois fazem referência à percepção sensorial e imediata e são eventivos, ou seja, são entidades concretas.

lida bem com os infinitivos encaixados em verbos perceptivos e respalda o que já havia sido apontado por Freire (2007), de que sua aquisição deve ocorrer anteriormente aos 4 anos.

Em relação às condições com uma sentença-complemento finita introduzida pelo complementizador que, os resultados são mais próximos dos esperados quando não existe um evento a ser percebido (condição 4): no geral, 94% das respostas é de acordo com o esperado (cf. Tabelas 7 e 8) e, isoladamente, nenhuma das porcentagens em cada idade é menor do que 88% para o esperado (cf. Tabela 5). Vejamos mais atentamente o que está em jogo neste tipo de situação com uma das histórias utilizada nos experimentos, apresentada no Quadro 4 a seguir.

Quadro 4 – Condição 4: Percepção indireta sem a ocorrência do evento

Cena 1 Cena 2 Cena 3

Look this is Linus! He is hungry and would like to have something to eat.

Look, there is a banana. Maybe Linus can have it!

Let’s see what happens.

Oh look! The banana was eaten!21 Someone ate it! Pergunta testada: Did you see that Linus ate the banana?

A história foi construída de modo a fornecer suficientes pistas, por assim dizer, para que se pudesse concluir o ocorrido: a criança conhecia o personagem; era informada sobre seu estado faminto; visualmente percebia um alimento e era informada que esse alimento poderia servir para (ao menos diminuir) a fome do personagem; e finalmente, a criança via a última figura e era informada que o alimento havia sido comido. Na última figura, apesar de mostrar apenas uma evidência ou um resultado possível (a casca da

21 Essa construção passiva é apontada na literatura como difícil para as crianças mais novas. Aqui, entretanto,

não houve dificuldade para que as crianças a compreendessem, até mesmo porque o que estava sendo dito podia ser verificado visualmente na Figura 3. Notemos também que essa passiva não é do tipo reversível (*the

banana) para a ação da qual se falava anteriormente na história (comer), era dito à criança

que a banana havia sido comida e que alguém comeu a banana. Esperava-se, dessa forma, bloquear todas as outras possibilidades (por exemplo, que algum animal roubou a banana e deixou a casca) e assegurar que a única percepção possível era a determinada pelo contexto. Buscou-se, portanto, enriquecer a pragmática e o contexto fornecendo (ou limitando) evidências de modo a ver se haveria alguma preferência por algum fator em detrimento dos aspectos linguísticos, ou seja, saber se o complemento finito seria utilizado ou ignorado na resposta.

Os resultados para a condição 4 apontaram que, mesmo num contexto enriquecido com evidências, a resposta preferida na maioria dos casos dos casos era negativa – em pelo menos 88% deles para as crianças de 4 e 5 anos. A partir dos 6 anos, as crianças respondem negativamente em 100% dos casos na condição 4 (cf. Tabela 5). Portanto, por mais que o contexto fosse rico em evidências, e por mais que a pragmática levasse a crer que foi Linus quem comeu a banana, há uma restrição linguística mais forte imposta pelo complemento finito presente na pergunta e a única resposta possível era não.22 O que ainda fica obscuro, entretanto, é que justamente por ser a resposta esperada um não, isso pode se dar tanto em função de uma imposição linguística feita pelo tipo de complemento utilizado (o complemento finito se relaciona a uma percepção indireta, inferida) ou em função da falta de evidências para que se responda de maneira afirmativa – uma vez que não havia a certeza de que Linus houvesse comido a banana, não se podia, consequentemente, chegar a uma conclusão sobre o ocorrido. Sugere-se que a restrição seja mais linguística do que pragmática, mas esse não parece ser o caso em função da condição 3, que passo a explorar agora.

A condição 3, que também fazia referência à percepção indireta (como a condição 4) e cuja resposta esperada era sim, parece revelar que a pragmática é mais saliente que a estrutura linguística para a aquisição de conhecimento. Mais especificamente, isso significa

22 Parece existir um papel importante do conhecimento prévio de mundo que se tem. O mesmo tipo de história

foi testado utilizando Elmo e um biscoito no lugar de Linus e uma banana. As crianças, por conhecerem o personagem Elmo e sua turma, sabem que ele tem um amigo chamado Cookie Monster, que é louco por biscoitos. Quando perguntadas se haviam visto o Elmo comer o biscoito, muitas crianças diziam que não e reportavam a crença de que Cookie Monster havia comido (ainda que este personagem não estivesse na história).

que, para os complementos sentenciais finitos de verbos perceptivos, é necessário compreender antes a pragmática e o contexto. Também por se tratar de uma percepção feita indiretamente, em que se chega à conclusão de um fato a partir de evidências, é necessário que um número suficiente de evidências esteja disponível para que a inferência seja feita. Como essa condição apresenta a menor taxa de respostas esperadas – em um universo de 84 perguntas feitas para as 42 crianças, apenas 5 respostas foram afirmativas, representando 5,9% do total –, talvez seja mais interessante explicar o porquê de haver 94,1% de respostas não esperadas. No Quadro 5a seguir, um exemplo de história utilizada.

Quadro 5 – Condição 3: Percepção indireta com a ocorrência do evento

Cena 1 Cena 2 Cena 3

Look this is Telly! He is thirsty and would like to have something to drink!

Oh, look, there is some cranberry juice, Maybe

Telly can have it!

Oh no! Look at the glass now! Someone drank the

juice! Pergunta testada: Did you see that someone drank the juice?

Novamente, o objetivo era que a história pudesse fornecer evidências suficientes para afirmar que sim, que alguém bebeu o suco. Dessa forma, apresentava-se o personagem e, juntamente com a primeira figura, introduzia-se a informação de que ele estava com sede. Em seguida, a criança observava a segunda imagem, de um elemento que saciaria a sede do personagem (suco), e era informada que o personagem poderia beber o suco. Por fim, a imagem do copo vazia era mostrada na terceira figura, seguida do relato de que alguém havia bebido o suco e chamando a atenção para o fato de que o copo estava vazio. Assim sendo, esperava-se garantir que a única inferência possível fosse a de que alguém bebeu o suco, garantindo que tal fato realmente aconteceu.

Tanto a pista verbal quanto a pista visual são essenciais para que a inferência esperada seja garantida. Apenas a evidência relatada, sem respaldo da evidência visual,

poderia gerar inferências inesperadas. Afirmar que alguém bebeu o suco sem que a mudança do estado do copo de suco cheio para um estado vazio pudesse ser vista não garantiria que o suco foi bebido. Do mesmo modo, a evidência visual, sem respaldo da afirmação de que alguém bebeu o suco, poderia gerar conclusões como o suco derramou, o vento derrubou o copo de suco, é um copo diferente do da figura anterior etc. Ambas as pistas (verbal e visual) deveriam, portanto, ser levadas em consideração pela criança.23

Esperava-se, portanto, que com ambas as pistas, a verbal e a visual, fosse possível atestar corretamente o que havia ocorrido, de modo a responder sim para a pergunta feita. A pergunta, por sua vez, foi formulada de modo a não (necessariamente) incluir o personagem da história como o agente do evento denotado e possibilitar a percepção indireta. Todavia, os resultados foram bastante inesperados e sugerimos algumas possibilidades para explicar a baixa taxa de respostas esperadas obtidas:

1. A inserção de um quantificador (someone) e a sua consequente computação. Observemos o exemplo (15) abaixo:

(15) Você viu que alguém bebeu o suco?

a. Sim, eu sei que o suco foi bebido e sei que alguém bebeu o suco. b. Não, eu não sei se o suco foi bebido e não vi ninguém beber o suco.

Ao verificarmos as figuras apresentadas e os estímulos linguísticos com mais rigor, fica evidente que ambas as respostas em (15a) e (15b) são pragmaticamente possíveis para a pergunta feita. A criança era apenas informada verbalmente que alguém bebeu o suco, mas não tinha acesso visual direto a este evento ou a seu(s) autor(es) e, para responder afirmativamente, ela deveria confiar na informação dada e aceitar o que foi dito como a maior evidência para a ocorrência do fato. Caso não houvesse evidências tanto para a ação

23 Dois pontos são interessantes e merecem destaque aqui:

(i) É preciso verificar na literatura qual tipo de “pista” é mais saliente para a criança na aquisição (visual ou linguística). Sugere-se aqui que as evidências visualmente percebidas são mais relevantes no início da aquisição do que as encontradas na estrutura linguística. De todo modo, optamos por fornecer ambas as pistas nas condições experimentais;

(ii) Sobre essas duas pistas, notemos que uma delas requer a compreensão linguística e a outra envolve cognição extralinguística. A interação das duas é essencial para que se adquira os complementos finitos de verbos perceptivos.

quanto para o seu autor, não apenas a inferência gerada poderia ser inesperada como também a consequente resposta;

2. A aquisição do significado epistêmico do verbo ver. Quando a resposta é afirmativa, o que foi realmente visto? O sentido do verbo ver é semelhante ao do verbo saber, como mostrado nas respostas em (15a) e (15b). Não há, na realidade, nenhuma percepção visual; o que existe é uma aquisição de um determinado conhecimento, conforme Noonan (1985), que é feita partir de evidências (estas sim podem ser visuais). Portanto, talvez seja o caso que criança não saiba que o verbo ver possui este outro sentido. Neste caso, para responder

sim, ela teria que ver Telly bebendo o suco;

3. A falta de evidências. Caso a criança saiba do sentido epistêmico do verbo ver, talvez seja o caso que ela não encontre na história (tanto vista quanto contada) evidências suficientes que permitam uma resposta afirmativa para a pergunta em (15). Como as evidências podem ser tanto visuais quanto de outra natureza (relatadas, por exemplo), optamos por relatar a informação de que alguém havia bebido o suco e não mostrá-la nas imagens. Talvez fosse o caso de haver evidências visuais também para o autor do evento de beber (um personagem com um “bigode” de suco acima dos lábios, por exemplo);

4. A fonte e a qualidade das evidências fornecidas. Assumindo que as pistas visuais são sempre computadas, talvez as pistas linguísticas, ou seja, a informação relatada, não seja relevante para o processamento de uma inferência denotada a partir do complemento finito do verbo ver. Daí, a dificuldade das crianças talvez não resida nos aspectos sintáticos de um complemento finito (morfologia verbal do predicado da sentença encaixada e a presença da complementizador que), mas sim na pragmática da situação percebida. Se as crianças ignoram a sentença dita na última figura (Someone drank the juice!) ou não a consideram relevante para computarem o que é denotado como objeto do verbo ver, essa hipótese revelaria uma outra possibilidade: a de que a dificuldade não está relacionada ao número de evidências, como na hipótese anterior, mas sim à qualidade dessas evidências. Talvez as pistas visuais sejam realmente mais relevantes para as inferências, como apontam os

estudos sobre evidencialidade (Palmer, 1986; Aikhenvald, 2006; Papafragou et al., 2007; Aksu-Koç, Ögen-Balaban & Alp, 2009; Matsui & Fitneva, 2009).