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Nesta seção veremos com mais atenção a modalidade deôntica e como podemos relacioná-la com os verbos causativos.

Diferentemente da modalidade epistêmica, a modalidade deôntica se relaciona com as ações dos outros e com as do próprio falante, ou seja, ao uso da língua para a ação. É comumente tratada por root modality, termo que engloba dois subtipos de modalidade não-epistêmica: a deôntica, propriamente dita, que lida com noções de obrigação e permissão, e a dinâmica, que lida com intenção/volição e habilidade. Aqui, esta distinção não será amplamente explorada e entenderemos modalidade deôntica como um termo mais amplo que engloba a modalidade deôntica, propriamente dita, e também a modalidade dinâmica.

Enquanto a modalidade epistêmica lida com os sentidos de crença, conhecimento e verdade da proposição comumente por meio de sentenças declarativas, são as sentenças imperativas as mais claramente relacionadas à modalidade deôntica. As propriedades de

subjetividade e de não-factividade (ou factualidade) são compartilhadas entre as duas modalidades.

Exemplos de modalidade deôntica são encontrados em várias línguas, como por exemplo, em afar (Bliese, 1981, p. 139 apud Palmer, 1986), que apresenta um sistema bastante peculiar:

(18) Imperativo: ab ‘do’

Jussivo: nakay ‘let me drink’

Subjuntivo: rabu ‘may I die’

Consultativo: a’bo ‘shall I die?’

Nota-se que, dentro do mesmo sistema formal, existem não apenas as sentenças imperativas, mas sentenças jussivas, que codificam um tipo especial de imperativo, as sentenças subjuntivas e as consultativas. Dessas, o imperativo é o tipo encontrado na maioria das línguas e “sem dúvida está intimamente ligado ao ou incluído no sistema deôntico”32

(PALMER, 1986, p. 96), e as outras são menos atestadas.

O complemento pode fazer referência a uma ação (codificada pelo verbo vir) que, juntamente com o verbo matriz, pode se referir a um desejo, esperança ou mesmo à causa da ação descrita. Algumas formas lexicais são utilizadas para referência a ações, como por exemplo, em (19), com verbos volitivos, e em (20), com verbos causativos.

(19) a. Eu espero que Maria venha. b. Eu desejo que Maria venha. (20) a. Eu fiz Maria sair.

b. Eu deixei Maria sair.

De acordo com Palmer (1986), a modalidade deôntica pode ser dividida em quatro tipos: (i) diretivos, ligados à execução de uma tarefa por outras pessoas; (ii) comissivos, mais ligados ao comprometimento do falante em realizar uma ação; (iii) volitivos, que

32 Tradução minha do original: “(...) undoubtedly, is closely related to, or included within, the deontic

envolvem a não-factividade e estão mais relacionados a uma ação possível do que com a verdade de uma proposição; e (iv) avaliativos, que parecem estar mais relacionados a proposições factuais (fatos) e possivelmente não sejam modais. Os tipos (i) e (ii) são performativos, pois eles iniciam ou causam a ação de outros e dos falantes, e existe muito pouco a ser dito sobre (ii). O contraste dos quatro tipos é ilustrado abaixo:

(21) Diretivos: Ele deve lavar a louça. (porque eu estou mandando)

Comissivos: Ele deve lavar a louça. (porque eu vou me assegurar de que isso vai acontecer)

Volitivos: Gostaria que ele lavasse a louca. Avaliativos: Que pena que ele lavou a louça!

Observemos que o sentido denotado pelas duas primeiras é muito semelhante por esse motivo; ainda que se reconheça a diferença entre eles, os autores exploram muito mais os diretivos do que os comissivos (cf. Searle, 1979 apud Palmer, 1986; Searle, 1983; Palmer, 1986). O sentido de ambos está mais relacionado a tentar fazer o ouvinte fazer algo, ou dar início a algo. Notemos ainda que o sentido dos dois primeiros é mais ativo que o dos outros dois, que não envolvem necessariamente uma ação, são mais passivos ou indiretos e parecem indicar os sentimentos e atitudes dos falantes (cf. Searle, 1983). Dessa forma, eles não são estritamente deônticos, e tampouco epistêmicos, por não expressarem o grau de comprometimento do falante com aquilo que ele está dizendo (cf. Palmer, 1986). O termo é incluído, por conveniência, na modalidade deôntica.33

As sentenças imperativas são a maneira não marcada (em oposição à marcação com modais) para indicar a modalidade deôntica e contrastam diretamente com as sentenças declarativas, formas não marcadas que indicam modalidade epistêmica. Tais sentenças “apresentam” uma proposição – frequentemente a partir de uma forma verbal simples como em (22) a seguir – e cabe ao ouvinte julgar a força de sua obrigação para agir

33 Palmer (1986) defende a existência de uma terceira modalidade, a dinâmica, que seria a responsável por

essas e outras idiossincrasias. Aqui, conforme dissemos no início da seção, a modalidade dinâmica está incluída na modalidade deôntica aqui assumida e o trecho serve apenas para ilustrar que são vários os aspectuais modalizadores que pertencem à modalidade deôntica (não-epistêmica).

dadas as circunstâncias.34 Outras peculiaridades sobre o imperativo podem ser destacadas: não é utilizado em sentenças encaixadas e não é marcado para as categorias associadas aos verbos (tempo, pessoa e número), fato que se justifica em função da ação requerida ser sempre no futuro. Lyons (1977) afirma que só são possíveis formas de 2ª, mas nunca de 3ª pessoa.

(22) a. Entre!

b. Vai tomar banho!

Como a proposição para a ação é sempre apresentada ao ouvinte, é fácil perceber por que se assume que o imperativo tenha apenas formas de 2ª pessoa. Palmer (1986, p. 109), entretanto, revela a existência de imperativos de 3ª pessoa em línguas clássicas como o grego (23) e o latim (24).

(23) all’ ei dokéi, pl´eoːmen, hormásthoː táchus but if it seems sail+1pl+PRES+SUBJ set forth+3sg+PRES+IMP swift

‘If thou wilt, let us sail and let him set forth with speed’(Sófocles, Filoctetes, p. 526) (24) Naviget! Haec summa est, hic nostril nuntius esto

sail+3sg+PRES+SUBJ this point is this of us message be+3sg+PRES+IMP ‘Let him sail! This is the point, let this be our message’(Virgílio, Eneida, p. 4237) Notemos que no exemplo em grego (23), a forma para a 1ª pessoa é o subjuntivo, mas para a 3ª é o imperativo. O autor afirma que não existe forma imperativa para a 1ª pessoa. No latim, o subjuntivo (naviget) e o imperativo (esto) são usados.35 O estatuto do imperativo de 3ª pessoa é inconclusivo no latim, mas certamente imperativos de 1ª pessoa não são admitidos. Entretanto, línguas como o afar (Bliese, 1981 apud Palmer, 1986) possuem

34 Para uma análise mais aprofundada dos imperativos e da propriedade de livre-escolha (free choice), sugiro

a leitura de Portner (2012).

35 No PB, língua em que as formas de imperativos vêm do latim, a questão é mais complicada. As formas

imperativas são formadas a partir do presente do subjuntivo, exceto para as de 2ª pessoa do singular ou do plural, provenientes do modo indicativo. A forma latina naviget em (24), inclusive, é traduzível com o modo subjuntivo (= Que eles naveguem!).

formas de 1ª e 3ª pessoas, usadas para exortação. As formas let e let’s são usadas em inglês para denotarem tal sentido e serão discutidas no capítulo 6.

A existência de imperativo para outras pessoas gramaticais gera um problema para as suas próprias condições de existência. O imperativo é definido como a apresentação de uma proposição para a ação do falante, e claramente só pode se referir à 2ª pessoa. A pergunta levantada por Palmer (1986) é, portanto, se é possível definir uma sentença imperativa como aquela que apresenta uma proposição para a ação de outra pessoa que não o ouvinte. Por não conseguir encontrar uma resposta, o autor prefere restringir o termo imperativo à 2ª pessoa e o termo jussivo às demais pessoas discursivas. Dessa maneira, as formas let us e let me, do inglês, são sentenças jussivas.

As sentenças no modo subjuntivo também estão mais relacionadas à modalidade deôntica, pois o falante não apresenta os fatos, mas os avalia. Palmer (1986) afirma que tais sentenças são factuais, característica que as diferencia das sentenças declarativas.36