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Consideremos a sentença a seguir.

(38) Ana viu que esse rapaz atirou na adolescente.

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A sentença em (38) se refere a uma percepção indireta ou se refere à aquisição de um conhecimento. Isto pode ser comprovado por meio dos testes que vimos na subseção anterior, seja o teste de Rodrigues (2010) ou no teste que propusemos com base na abordagem de Noonan (1985). Vejamos:

(39) a. Ana viu pelo seu jeito que esse rapaz atirou na adolescente. b. Ana constatou que esse rapaz atirou na adolescente.

A sentenças em (39) são bem formadas e são felizes em um contexto em que o sujeito (Ana) tenha, por exemplo, visto o rapaz em questão bastante nervoso. Outras evidências também são possíveis: pode ser o caso que Ana viu o rapaz com uma arma na mão, ou viu o rapaz sujo de sangue ou, ainda, viu o rapaz com pertences da adolescente na cena do crime. Pode ser inclusive o caso de que Ana tenha ouvido um barulho do disparo fora de seu apartamento e em seguida, ao olhar pela janela, viu o rapaz correndo. Em todas essas situações hipotéticas, possíveis a partir de (39a) e (39b), Ana tem evidências – mais fortes ou menos fortes – de que o rapaz atirou na adolescente. Imaginemos, entretanto, que Ana tenha visto que o rapaz atirou na adolescente porque da janela de seu quarto ela viu o rapaz disparar a arma, conforme a sentença (40).

(40) Ana viu que esse rapaz atirou na adolescente porque viu ele atirar.

A sentença em (40) parece apresentar, inicialmente, um paradoxo por conter uma percepção direta e uma percepção direta. Esse “paradoxo” parece estar presente em várias sentenças indiretas e nesta seção avançaremos uma análise para explicá-lo.

Se esse for o caso, (39a) não é mais uma sentença boa para descrever essa situação, como mostra (41a). Se Ana viu que o rapaz atirou porque viu o rapaz atirar, a percepção parece ser do tipo direta.

(41) a. *Ana viu pelo seu jeito que esse rapaz atirou na adolescente, porque viu ele atirar. b. Ana constatou que esse rapaz atirou na adolescente, porque viu ele atirar.

A sentença em (39b), entretanto, é boa em todas as situações. Isso pode revelar que a sentença em (41b) denota também a aquisição de conhecimento e não apenas a percepção imediata. O que esse exemplo revela é que existe um contraste ainda não explicado pela literatura. Tentaremos aqui explicar este enigma.

Para a sentença (41a), ou seja, para as abordagens que diferenciam percepção direta de indireta, pode ser o caso que a percepção indireta se dê a partir da percepção direta do ocorrido. Em termos menos contraditórios, isso quer dizer que é a partir da percepção direta de evidências e indícios que se pode concluir que determinado fato aconteceu. Sendo uma das estratégias linguísticas o uso de um verbo perceptivo seguido de um complemento finito para expressar essa conclusão a que se chega, a explicação é perfeitamente plausível. Tem-se na própria percepção direta do ocorrido a evidência necessária para se concluir o que é asseverado, ou seja, a própria percepção indireta. A percepção direta de uma situação é, por si só, a maior evidência que se pode ter de que determinada situação ocorreu.

No caso das abordagens que centram no verbo as diferenças de significado, (41b) é possível em todos os casos e a explicação para tal é semelhante à explicação anterior: a percepção imediata de uma determinada situação pode ser também uma das fonte possíveis para que se dê o conhecimento da situação em questão. Afinal, perceber é uma maneira de se adquirir conhecimento. É, na verdade, a fonte mais segura e confiável sobre a verdade da situação percebida e denotada.

Portanto, as abordagens se aproximam neste enigma: para uma delas, a percepção direta é uma das evidências para a inferência que é feita; para a outra, a percepção imediata é a fonte de aquisição do conhecimento, pois trata-se de um predicado de aquisição do conhecimento. Mas notemos que esse cenário só funciona em sentenças-complemento finitas para verbos perceptivos que tenham uma contraparte infinitiva, caso pensemos em percepção direta e indireta. Uma percepção indireta só pode “conter” a percepção direta se houver uma forma sintática finita e infinitiva para a mesma sentença encaixada no predicado perceptivo. Em outras palavras, só pode haver essa “ambiguidade” entre percepção direta e indireta quando ambas as estruturas estiverem disponíveis. No caso dos termos predicado de percepção imediata e predicado de aquisição do conhecimento, estes

não são ambíguos, mas para este tipo de sentença certamente podem ser tomados um pelo outro e a distinção se desfaz, pois perceber visualmente também é adquirir conhecimento.

Antes de passarmos para a próxima seção, é possível concluir, a partir dos testes aqui discutidos, que a percepção indireta denotada com o verbo ver é inferida a partir das evidências percebidas. Já com o verbo ouvir, a percepção indireta é o resultado de inferências, ou de uma percepção mediada, ou ainda, do relato de tal percepção. Para ambos os verbos, chega-se a uma conclusão, isto é, adquire-se um determinado conhecimento.

4 O estatuto sintático-semântico dos complementos sentenciais

Na discussão feita no capítulo 2, indicamos que os complementos infinitivos e finitos são diferentes, sendo esses últimos os mais complexos do ponto de vista cognitivo e gramatical (seguindo Givón, 1979, 2001; Vesterinen, 2007, 2008). Destacamos também que um complemento finito introduz uma proposição e um complemento infinitivo é eventivo, sendo as suas informações temporais as mesmas do predicado matriz (cf. Parsons, 1990; Castillo, 2001; Butler, 2004; Rodrigues, 2006; Hornstein, Martins & Nunes 2006, 2008; Freire, 2007).

Todas essas considerações foram feitas sem um contexto mais amplo e aplicavam- se a ambos os tipos verbais deste estudo (e possivelmente a outros tipos verbais). Neste capítulo, algumas considerações já foram retomadas, enfocando exclusivamente os verbos perceptivos e as noções cognitivas a eles ligadas. Nesta seção, ampliaremos a discussão de algumas propriedades, a saber: a natureza da entidade percebida e da fonte da informação, as condições de verdade, a estrutura sintática e as propriedades temporais dos complementos sentenciais.