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DISCUSSÃO TEÓRICA: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E O TEXTO LITERÁRIO

No documento Ensino de literatura no ensino fundamental (páginas 87-91)

UMA EXPERIÊNCIA A PARTIR DA

2 DISCUSSÃO TEÓRICA: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E O TEXTO LITERÁRIO

Por acreditarmos que na relação afetiva entre aluno e objeto de conheci- mento possa se encontrar o cerne do processo educacional é que desta- camos a importância de se ressignificar essa relação que, para nós, passa necessariamente pela formação estética e sensível, favorecendo a percep- ção afetiva do aluno. Contudo, no exercício diário de nossa profissão,

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a percepção é a de que a escola continua a reproduzir modelos sociais historicamente legitimados.

Paradoxalmente, ao recorrermos aos principais documentos oficiais da educação, foi, com surpresa, que encontramos a estética da sensibilida- de como um dos princípios filosóficos norteadores da organização do currículo escolar. Considerando a disciplina de Língua Portuguesa, nessa perspectiva, acreditamos que a literatura possa ser um instrumento de humanização, capaz de sensibilizar e desenvolver o senso estético, além do ético e político. O que pretendemos aqui é abordar a relação entre o trabalho com o texto literário e a possibilidade de os alunos se relaciona- rem com a realidade por meio da sensibilidade. Para Shiller (1963, p. 52):

A passagem do estado passivo da sensibilidade para o ativo do pensamento e do querer dá-se, portanto, somente pelo estado intermédio de liberdade estética, e embora este estado, por si mesmo, nada decida quanto a nossos conhecimentos e atitudes morais, deixando inteiramente problemático nosso valor intelectual e moral, ele é, ainda assim, a condição necessária sem a qual não chegaremos a conhecimentos e compromissos morais. Em poucas palavras: não existe manei- ra de fazer racional o homem sensível sem torná-lo, antes, estético.

Vivenciamos e sentimos primeiro, depois aprendemos intelectualmente. Por meio da sensibilidade, percebemos a realidade que nos cerca, com os sons, sabores, texturas e odores, entre outros. Segundo Jauss (1979), nesse contexto, a “aisthesis” restitui ao conhecimento intuitivo os seus direitos contra o privilégio tradicionalmente concedido ao conhecimen- to conceitual. Deve-se entender estética, aqui, em seu sentido mais simples: sentir, experimentar.

Nesse sentido, julgamos imprescindível refletir sobre o ensino da lite- ratura, que a nosso ver, coaduna-se com a tese defendida por Todorov (2012). Para ele, a Literatura está em perigo não pela escassez de bons autores, mas devido ao modo como o estudante entra em contato com ela: não por meio da leitura do texto propriamente dito, e sim, por meio das teorias ou da história literária – forma disciplinar e institucional recorrente. Assim, segundo o autor, a literatura deixa de ser um agente de conhecimento sobre o mundo, os homens, as paixões, enfim, sobre a vida íntima e pública para tornar-se apenas uma matéria escolar que ensina periodização. Ou ainda, um estudo renegado ao segundo plano, especialmente no caso dos anos finais do Ensino Fundamental.

Como afirma Candido, a literatura não faz o homem melhor e nem pior; mas o humaniza em sentido profundo, porque o faz viver com todas as contradições e vicissitudes que a vida oferece. Portanto, “negar a fruição da literatura é mutilar nossa humanidade” (CANDIDO, 1995, p. 235).

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Desse modo, o estético, o sensorial e o emocional devem estar na essên- cia da proposta de trabalho, nas mediações e no emprego de estratégias diversificadas do professor de Língua Portuguesa. E qual poderia ser um caminho nessa direção? A esse respeito, Soares (2001) aponta o fato de que há uma tendência a se pensar que o problema que a leitura literária enfrenta, no atual contexto educativo brasileiro, tem relação direta com o fato de ser escolarizada, percebendo-se nisso uma avaliação depre- ciativa. Todavia, a autora afirma que “[...] é contraditória e até absurda a afirmação de que ‘é preciso desescolarizar a literatura na escola’ (como tornar não escolar algo que ocorre na escola, que se desenvolve na esco- la?)” (SOARES, 2001 p. 25).

Enfim, o que a autora sugere e que por sinal corrobora nosso entendi- mento é que se faça a adequada escolarização da leitura literária, ou seja, que ela seja desenvolvida dentro da estrutura escolar, mas que, por outro lado, seja direcionada por princípios metodológicos que não excluam nem desvirtuem a essência literária, pautando-se em análises que ressaltem os procedimentos estéticos que norteiam cada obra e que levam ao desenvolvimento da sensibilidade.

O fato é que se apregoa a crise da literatura, considerada restrita a uma minoria. No entanto, a tradição escolar de se impor a leitura de cânones permanece, levando até mesmo os professores de Português a cobrarem a leitura de uma obra que eles mesmos não leram ou que conheceram apenas superficialmente e não como um produto estético. Essa situação acarreta o desinteresse dos alunos e, muitas vezes, causa até sua aver- são em relação ao texto literário, haja vista que quando acatam a imposi- ção de ler, o fazem para uma avaliação posterior.

Nesse sentido, apontando um caminho para a superação da situação descrita anteriormente, é preciso considerar que a comunicação literá- ria se dá por meio do esquema autor-livro-leitor, inserido em um contexto histórico, social e econômico. Passa pela intencionalidade do escritor, as condições de difusão da obra, a aceitabilidade por parte do leitor, cabendo ao professor a função de mediador desse processo. Antunes (2015) afirma que o fato de se colocar a leitura no centro do processo de estudo traz várias vantagens, pois coloca a interpretação do texto como objetivo e, portanto, o leitor como protagonista do processo, favorecendo uma expe- riência de leitura significativa. Compartilhamos com o autor a visão apre- sentada sobre a função do professor no processo de ensino da literatura que seria o de esclarecer a construção textual, contribuindo discretamen- te com as atribuições de sentido provenientes dos alunos. O autor deno- mina esse processo como uma “experiência literária” plena.

Tendo em vista todas as constatações evidenciadas, acreditamos que redimensionar as práticas de leitura literária, talvez, deva implicar a promoção do letramento literário – uma discussão recente e que precisa

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ser efetivada na escola. Chamou-nos atenção por ser um tipo diferen- te dos outros letramentos porque a literatura como prática social ocupa um lugar diferenciado em relação à linguagem, ou seja, cabe à literatura “[...] tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas” (COSSON, 2006, p. 17).

Por considerar tais características, o letramento literário pode ser defi- nido como “[...] o processo de apropriação da literatura enquanto cons- trução literária de sentidos” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67). Trata-se de uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras que falam de palavras, transcendendo os limites de tempo e espaço.

Diante do exposto até aqui, apesar das diferentes abordagens, é possível notar que, em comum, os diferentes autores consideram a “experiência” um elemento fundamental no processo de ensino e aprendizagem da literatura. Ao indagarmos como poderia se dar a sintaxe de construção da estética da sensibilidade por meio do ensino da literatura, a “expe- riência” mostra-se indispensável.

Desse modo, vem ao encontro de nossos anseios a proposta de Larrosa (2002), por conceber a educação a partir do par experiência-sentido, contrapondo-se ao modo de pensar a educação como relação entre ciên- cia e técnica ou entre teoria e prática. Logo, esse autor (2002, p. 21) defi- ne a palavra experiência como:

Aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça.

O autor defende que em nenhuma outra época “se passaram tantas coisas”, no sentido de “aconteceram”, mas que a experiência é cada vez mais rara. Em primeiro lugar, pelo excesso de informação, que cancela nossas possibilidades de experiência e, em segundo lugar, pela falta de tempo, pois tudo acontece cada vez mais depressa e, com isso, se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. Segundo Larrosa (2002), por não podermos parar, nada nos acontece:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspen- der o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acon- tece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p. 24).

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Experiência é “o que nos passa”, e, portanto, o sujeito da experiência seria como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestí- gios, alguns efeitos. Portanto, é incapaz de experiência aquele a quem “nada lhe passa”, ou seja, nada lhe toca ou lhe afeta.

Tais reflexões nos levam à crença de que é possível estabelecer uma rela- ção entre o “conceito geral de experiência” proposto por Larrosa (2002) e a “experiência literária” defendida por Cosson (2006), Jauss (1979), Duarte Júnior (2012), Bosi (1994) e Antunes (2015).

Portanto, com o objetivo de promover o êxito escolar e a formação plena do aluno (especialmente à formação leitora), acreditamos ser necessá- rio nos afastar de velhos modelos metodológicos e procurar alternativas diferenciadas para o trabalho com o texto literário, que sejam norteadas, conforme aqui sugerimos, pelo princípio da estética da sensibilidade e pela “experiência” como meio para sua efetivação.

No documento Ensino de literatura no ensino fundamental (páginas 87-91)