• Nenhum resultado encontrado

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No documento Ensino de literatura no ensino fundamental (páginas 48-52)

O PEQUENO PRÍNCIPE

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Iniciamos o levantamento bibliográfico abordando o conceito de gêneros literários e a expansão para o conceito de gêneros discursivos. Segundo Aragão (1985), a concepção de gêneros literários procede da ideia de que “toda obra literária se origina de uma determinada época e de uma deter- minada cultura, isto é, é gerada num certo tempo e num certo espaço, filiando-se a uma determinada classe” (ARAGÃO, 1985, p. 64). Segundo a tripartição clássica, os gêneros literários seriam o lírico, o épico e o dramático. Essa teoria dizia respeito à definição das formas poéticas e seu domínio não teria sido abalado se não surgisse a prosa comunicati- va, que exigiu “outros parâmetros de análise das formas interativas que se realizam pelo discurso” (MACHADO, 2005, p. 152).

No campo dessa emergência da prosa, inserem-se os estudos que Mikhail Bakhtin (1895-1975) fez acerca dos gêneros discursivos, nos quais consi- derava não a classificação das espécies, mas o dialogismo do processo comunicativo. Irene Machado (2007, p. 153-154) salienta que os estudos bakhtinianos permitiram que houvesse uma mudança de rota na teoria sobre os gêneros, embora as formulações sobre o dialogismo não se apre- sentem com essa finalidade. Assim, na esfera prosaica da linguagem, surge o conceito de gêneros do discurso como “elos reais da cadeia da comuni- cação discursiva em determinado campo da atividade humana ou na vida” (BAKHTIN, 2003, p. 288) que transitam por todas as atividades humanas e devem ser pensados a partir de formas de composição, estilo e temática. Conforme Bakhtin (2003, p. 261-262):

Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo e a construção compo- sicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo de comunicação.

Tomando como base essa perspectiva sociointeracionista, analisamos as obras que selecionamos atentando para o “conteúdo temático”, a “estru- tura composicional” e o “estilo”.

Um dos enunciados analisados, O Pequeno Príncipe em Cordel (2015), como o próprio título indica, é uma versão cordelizada do clássico de Antoine de Saint-Exupéry, publicado em 1943. Gênero híbrido, narrativa em versos, o cordel tem sua origem em um tempo anterior à prosifica- ção da cultura – ligada, sobretudo, à tradição oral da Idade Média – “em que a atividade de contar histórias numa comunidade estava presen- te” (EVARISTO, 2011, p. 119). Com o advento da imprensa e a ascensão do romance, a narrativa oral passa a ser “literatura” impressa. Assim, o cordel se constitui como um gênero intermediário, espécie de passagem de uma cultura popular para outra: a da oral para a literária, mantendo, além das marcas da oralidade, algumas de suas características originais. Segundo Marinho e Pinheiro (2012, p. 18, grifos dos autores), “a expressão literatura de cordel foi empregada inicialmente por estudiosos de  nossa

50

cultura para designar os folhetos vendidos nas feiras [...], em uma apro- ximação com o que acontecia em terras portuguesas”.

Os cordelistas, além de explorarem a linguagem não verbal, através de xilogravuras nas capas dos folhetos, procuram utilizar também a orali- dade na venda de seu poema. Ao cantar sua história, o poeta acompanha a reação do público que, como ele, conhece os princípios de composi- ção poética: a métrica, a rima e a oração. Na métrica, são mais populares as sextilhas – estrofes com seis versos – setessilábicas – versos com sete sílabas poéticas, conhecidos como redondilha maior. Quanto à rima, nas sextilhas obedece-se ao esquema ABCBDB. No caso da septilha, o esquema obedecido é ABCBDDB – haverá uma rima no segundo, quarto e sétimo versos e outra no quinto e no sexto versos. Na estrutura compo- sicional de O Pequeno Príncipe em Cordel (2015), há a predominância de sextilhas que seguem o esquema de rimas convencional para esse tipo de estrofe – os versos pares rimam entre si.

As palavras que rimam também devem manter uma relação de sentido para atender a outro princípio que deve ser observado, o da oração, que diz respeito à coerência e coesão, à articulação dos fatos de maneira lógica. Percebemos nessa premissa, como o conto de Saint-Exupéry (1943/2009) apresenta características que favoreceram a sua cordelização. O enredo pode ser considerado desembaraçado, porque cada capítulo apresenta uma unidade que Limeira (2015) pôde transformar em um episódio. Não existem muitas descrições de espaços e personagens porque as ilustra- ções se encarregam dessas caracterizações. Esses elementos composi- cionais de O Pequeno Príncipe (1943/2009) contribuíram para a transpo- sição desse enunciado para o cordel.

Embora não tenhamos encontrado estudos que se ocupem da classifica- ção do gênero discursivo a que pertence essa obra de Antoine de Saint- Exupéry, nossas leituras nos levaram a considerá-lo um “conto filosófi- co”. Segundo Maria Lúcia Aragão (1985, p. 84) “o conto é definido como sendo uma forma narrativa em prosa, de pequena extensão”. Entretanto, não é apenas pelo número de páginas que se pode reconhecer um conto que possui um caráter plástico, podendo assumir várias formas, o que “já desnorteou mais de um teórico da literatura ansioso por encaixar a forma-conto no interior de um quadro fixo de gêneros” segundo Alfredo Bosi (1989, p. 7). A narrativa de curta extensão “condensa e potencializa no seu espaço todas as formas de ficção” (BOSI, 1989, p. 7) e constitui, hoje, um “poliedro capaz de refletir as situações mais diversas da nossa vida real ou imaginária” (BOSI, 1989, p. 21).

Aragão (1985) afirma que Voltaire foi um dos criadores do conto filosó- fico que abordava assuntos, até então, não contemplados pelo gêne- ro. Embora não tenhamos encontrado um conceito preciso, podemos inferir que esses assuntos a que se refere a estudiosa, como a própria designação indica, sejam de cunho filosófico, tratando de questões da existência humana. Em O Pequeno Príncipe (1943/2009), os conteúdos

51

temáticos – que abordam questões de relacionamento amoroso, amizade, imperfeições e equívocos da vida adulta e a necessidade de resgate de valores da infância – podem ser considerados existenciais. Além do conteúdo temático, observamos que, em se tratando da estru- tura composicional, há similaridades entre a obra de Saint-Exupéry e o conto Zadig, um dos contos filosóficos mais conhecidos de Voltaire (1747), como, por exemplo, a sua organização em curtos episódios. Assim, embasamos a classificação do gênero discursivo a que perten- ce O Pequeno Príncipe na relação que observamos entre obras dos escritores franceses, ou seja, adentramos o campo da intertextuali- dade. E este é um elemento fundamental na análise da transposição do enunciado da obra publicada em 1943 para o cordel.

Samoyault (1989) afirma que o passo decisivo para repensar as concepções de intertextualidade foi dado por Gerárd Genette (1989), que, com a publi- cação de Palimpsestos, em 1982, promoveu a migração para a percepção restrita ou restritiva do tema. Uma mudança que nasce de uma necessida- de percebida pelo teórico: a de definir intertextualidade como “a presença efetiva de um texto em outro” (SAMOYAULT, 2008, p. 29). Já no início da obra, Genette (1989) distingue as relações transtextuais. “Ele chama de trans- textualidade o objeto da poética, isto é, o conjunto das categorias gerais de que cada texto procede” (SAMOYAULT, 2008, p. 29) e repertoria cinco tipos: Intertextualidade (co-presença; plágio; citação...); Paratextualidade (título; notas; prefácios; capa; epígrafes...); Metatextualidade (comentário; relação crítica;...); Hipertextualidade (tradução; transposição; adaptação); Arquitextualidade (estatuto genérico do texto). Observamos em O Pequeno

Príncipe em Cordel a presença da intertextualidade, quando o cordelista cita a “Canção da América”, de Milton Nascimento (LIMEIRA, 2015, p. 38) e consideramos importantes para nossa análise observarmos os aspectos paratextuais, como as epígrafes das obras. Entretanto, o tipo a ser estu- dado para se compreender a relação entre o hipotexto O Pequeno Príncipe (1943) e seu hipertexto O Pequeno Príncipe em Cordel (2015) é a hipertex- tualidade, dada a relação de derivação existente entre esses enunciados. O autor de Palimpsestos (1989) distingue duas formas de hipertex- to – a transformação e a imitação – em três níveis distintos – o lúdi- co, o satírico, e o sério. Entre essas práticas hipertextuais, podemos considerar O Pequeno Príncipe em Cordel (2015) uma transformação produzida em um nível sério, ou seja, trata-se de uma transposição da obra de Saint-Exupéry (1943/2009) para o cordel. Para esse tipo de hipertexto – as transposições – Genette (1989) estabelece algumas subcategorias. Entre elas, a que melhor traduz o processo utilizado por Limeira (2015) é o da “versificação”, transformação de texto em prosa em composições versificadas (GENETTE, 1989, p. 271). A afirma- ção de Limeira corrobora com essa conclusão:

[...] pesquisei sobre O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, e desco- bri que existiam em mais de 250 idiomas, daí resolvi colocar a nossa linguagem

52

nordestina nessa estante literária. Uma homenagem do Nordeste para Exupéry,

trazendo ele para nosso quintal de rimas e versos cordelizados. Mas manti- ve a essência do clássico (Informação verbal)3.

Além das relações existentes entre os enunciados verbais das obras anali- sadas, é necessário que se verifique como os projetos gráficos das obras se relacionam, pois as ilustrações exercem papel importante nos dois livros. Recorremos novamente ao autor de Palimpsestos (1989), segundo o qual nenhuma arte escapa dos dois modos de derivação – a transfor- mação e a imitação – que, “en literatura, definen la hipertextualidad y que, de modo más general, definen todas las prácticas de arte en segun- do grado, o hiperestéticas”4. Ao considerarmos essas práticas hiperesté- ticas, podemos inferir que Vladimir Barros (informação verbal)5 promove uma transformação das aquarelas de Saint-Exupéry para xilogravuras, que costumam ilustrar os folhetos e romances de cordel, com traços e cores da arte armorial6. Nessa transposição, Barros procurou fazer refe- rências à cultura regional nordestina. O Principezinho, por exemplo, é representado com roupa de couro e chapéu de vaqueiro, traje típico e bastante representativo da cultura do Nordeste. Percebemos, assim, que as ilustrações de O Pequeno Príncipe em Cordel também conferiram à obra características particulares.

Toda a teoria que expusemos até aqui foi abordada ao analisarmos as obras de Saint-Exupéry e Limeira, ao longo das chamadas etapas de leitura. Cosson (2014) descreve três etapas que tratam do percurso de abordagem do texto pelo leitor: a antecipação, que “consiste nas várias operações que o leitor realiza antes de penetrar no texto propriamente dito” (COSSON, 2014, p. 40); a decifração, que acontece quando “entramos no texto através das letras e das palavras” (2014, p. 40); e a interpretação, que é “o momento em que, através de inferências, o leitor negocia o sentido do texto, em um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade.” (2014, p. 40). Já segundo Micheletti (2000), as etapas da leitura compreendem a decifração, quando se domina o código e a informação mais rápida; a análise, que se dá no momento em que o leitor vai deslindando o texto, observando as várias partes do discurso, retomando a seleção de palavras empregadas pelo autor; e a interpretação, que consiste em uma remontagem do texto e atribuição de um novo senti- do. (MICHELETTI, 2000, p. 17). Em nossa análise, seguimos a junção dessas

3 SARGA, Bruna. Com outros traços e cores. Entrevista com Josué Limeira, 18 dez. 2015. Disponível em: <http://www.ensaiodeasas.com/2015/12/com-outros-tracos-e-cores.html>. Acesso em: 23 jan. 2016. 4 na literatura, definem a hipertextualidade e que, de modo mais geral, definem todas as práticas artísticas em segundo grau, ou hiperestéticas. (GENETTE, 1989, p.478, tradução nossa)

5 Entrevista concedida a Pedrina Carvalho de Oliveira, em Curitiba, na data de 15 de novembro de 2016. 6 Movimento idealizado pelo dramaturgo e romancista pernambucano Ariano Suassuna, em 1970, cujo enfoque integral estava na busca das origens da cultura nacional, a fim de se criar uma arte sólida e verdadeiramente brasileira, com ênfase no Nordeste. Tomando por base a arte tradicional e de traços tortos da xilogravura e dos ferros marcadores de gado do Nordeste, pode-se dessa forma, dar cores e formas ao universo mítico do Sertão que Ariano Suassuna idealizara (CRUX, 2013).

53

etapas sugerida por Corsi (2015), que julga “como indispensáveis para o processo de leitura do texto literário a antecipação, a decodificação, a análi- se e a interpretação” (CORSI, 2015, p. 34, grifos da autora). Durante a leitura, o enunciado literário pode ser compreendido de modo aleatório. Relacionado aos conhecimentos de mundo do leitor, esta divisão em quatro etapas de leitura funciona como artifício didático-pedagógico para ordenar a descri- ção da análise. O que fica evidente na abordagem de O Pequeno Príncipe e O Pequeno Príncipe em Cordel que demonstraremos a seguir.

No documento Ensino de literatura no ensino fundamental (páginas 48-52)