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focalizadas no estudo incidem sobre a realização dessas aulas no que respeita ao funcionamento da escola em sua

4 O ENSINO E A APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA PRODUÇÃO TEXTUAL ESCRITA: EIXOS DE AULAS QUE

4.1 DISCUSSÕES ACERCA DAS DIMENSÕES SOCIAL E VERBAL DO GÊNERO CRÔNICA

Segundo Brandão e Martins (2003), a crônica é um exemplo de gênero discursivo recorrente nas escolas, principalmente nos livros didáticos, atentos às orientações dos PCNs, aos pressupostos que norteiam as ações do Ministério da Educação e dos avaliadores dessas obras em nível nacional. Trata-se de um gênero cujo texto-enunciado tende a ser breve e despretensioso, instituindo relações interpessoais nas esferas do jornalismo e da literatura. Cabia-nos – por contingência de escolhas levadas a termo institucionalmente pela escola – empreender uma ação didático-pedagógica cujo objetivo era implementar as práticas de uso da língua dos alunos, tendo o gênero crônica como megainstrumento (SCHNEUWLY, 2004) para tal. Com base em teorizações de Vigotski (2007 [1978]) acerca do papel da linguagem na

mediação semiótica e, por implicação, a apropriação intrassubjetiva de

conteúdos culturais por meio das relações intersubjetivas, tentamos desenvolver um trabalho didático na qual assumíssemos o papel de

interlocutores mais experientes no processo de apropriação, por parte dos alunos, do gênero crônica, em uma abordagem que contemplasse a formação do aluno leitor e produtor de textos-enunciado nesse gênero. Para tanto, ainda na perspectiva vigotskiana segundo a qual incidir sobre o desenvolvimento de habilidades em outrem implica ter desenvolvido preliminarmente essas habilidades em si mesmo – a experiência que nos qualifica como interlocutores no processo de ensino e de aprendizagem –, foi preciso adquirir um conhecimento de referência sobre o gênero a

ser trabalhado, por isso “estudamos” a crônica antes de trabalhá-la com os alunos – as características levantadas serão descritas à frente.

Amparados também em teorizações bakhtinianas (2004 [1929]), abordamos as duas dimensões inextricáveis do gênero – a dimensão

social e a dimensão verbal –, com as quais tentamos trabalhar com os

alunos em todas as atividades didáticas propostas no período de intervenção. Comprometidos com uma ação teoricamente ancorada, relutamos contra a proposta didatizante objetificadora que, a nosso ver, sustentou as Olimpíadas de Língua Portuguesa no ano em se deu o estudo. Em nome dessa relutância, buscamos empreender um processo de elaboração didática (HALTÉ, 2008 [1998]) a partir do manual proposto pelas Olimpíadas de Português, que se apresentava diante de nós como a proposta de implicações institucionais a ser aplicada.

De todo modo, não estávamos isentos de conhecer a crônica no que respeita aos saberes de referência. Considerada por muitos teóricos50 como um gênero híbrido que “mistura” linguagem jornalística com linguagem literária, na polêmica em defini-la ora como gênero

jornalístico ora como gênero literário, entendemos possível conceber que a crônica tende a nascer na esfera jornalística – por isso achamos essencial conhecer essa esfera ao tratarmos da dimensão social da

crônica. É comum, no entanto, que, tendo instituído relações

interpessoais nesse esfera, muitas dessas crônicas também o façam, observado o processo de reenunciação, na esfera literária. Se, como aponta Rodrigues (2005), os gêneros para Bakhtin correspondem a situações de interação verbal, com finalidade discursiva e concepção de autor/destinatário, que só fazem sentido dentro da esfera social, então é fundamental levantar algumas definições e características básicas da esfera na qual nasce a crônica.

Mesmo defendendo a importância de se conhecer a esfera jornalística, temos consciência de que a esfera real de produção dos textos desses alunos participantes da pesquisa é a escolar. Se, como vimos no capítulo anterior, o que define os gêneros discursivos são as funções discursivo-ideológicas e a esfera social (RODRIGUES, 2005), a

crônica escolar define-se distintamente da crônica que circula na esfera

jornalística ou na esfera literária – ou seja, o cronotopos, a situação social são outros. E os sentidos também mudam, uma vez que os gêneros correspondem a situações de interação verbal que só fazem sentido dentro da esfera da atividade humana em que instituem relações

50 Lopez (1992), Flora (1992) e Sá (1987) são alguns exemplos de teóricos que apontam o

interpessoais. Logo, é preciso tratar a crônica de outro modo. Essa questão nos remete à advertência de Rojo (2008) ao afirmar que o processo de didatização dos gêneros discursivos, tal qual propõe os PCNs de 1998, implica tanto a desarticulação/rearticulação do próprio conceito quanto um novo uso do conceito. Apesar dessa artificialização constitutiva (HALTÉ, 2008 [1998]) do trabalho com o gênero em sala de aula, reiteramos a importância de conhecer a esfera na qual foram selecionadas as crônicas trabalhadas no decorrer da pesquisa: a esfera

jornalística.

Rodrigues (2001), que analisa o gênero artigo, aponta para a importância de estudar as especificidades da esfera, focalizando a constituição e o funcionamento dos gêneros do discurso: “[...] as condições sócio-históricas da sua origem e do seu desenvolvimento, a sua função sócio-discursiva no conjunto da vida social, entre outros aspectos.” (RODRIGUES, 2001, p. 74). A autora, porém, também afirma que essa análise, seguindo a teoria bakhtiniana, deve considerar a relação dinâmica do jornalismo consigo mesmo e com as outras esferas; ou seja, a perspectiva de consolidação sempre “em construção”. Uma evidência desse caráter dinâmico de funcionamento é a dificuldade de conceituação e a diversidade terminológica, conforme aponta Melo (1994). Segundo Rodrigues (2001), por exemplo, o termo jornalismo, além de referir-se à esfera em questão, ainda faz alusão a um suporte particular, o jornal, o que seria um equívoco. A autora alerta que há diferenças entre os dois termos e ainda traz uma definição de jornalismo:

Jornalismo: Atividade profissional que tem por objetivo a apuração, o processamento e a transmissão periódica de informações da atualidade, para o grande público ou para determinados segmentos desse público, através de veículos de difusão coletiva (jornal, revista, rádio, televisão, cinema, etc.). Imprensa periódica. A informação jornalística difere da informação publicitária e de relações públicas, por seu conteúdo, pela finalidade de sua transmissão e pela exigência de periodicidade. Conforme o veículo utilizado na difusão de notícias, o jornalismo manifesta-se de diferentes formas. Mas todas essas formas (jornalismo impresso, telejornalismo, radiojornalismo, cinejornalismo) possuem características semelhantes de tratamento

da informação. (RABAÇA apud RODRIGUES, 2001, p. 76, grifos da autora).

Se, na perspectiva bakhtiniana, a constituição e o funcionamento de uma dada esfera estão ligados às condições históricas e socioeconômicas, é preciso apresentar um breve panorama histórico da constituição da esfera jornalística e do vínculo entre jornalismo e imprensa. Esses dois termos marcam “[...] a relação histórica estreita dessa esfera com as suas condições sociais, econômicas e tecnológicas de produção”. (RODRIGUES, 2001, p. 77). Além das motivações tecnológicas, Rodrigues (2001) também ressalta as condições socioideológicas que marcaram a consolidação do jornalismo, como a revolução burguesa, a queda da censura prévia e o processo de alfabetização em larga escala, que viabilizou a leitura dos jornais. Nesse contexto social, como conta a autora, a informação tornou-se uma necessidade social, um “indicador econômico e financeiro” e um “instrumento político”; ou seja, sua circulação adquiriu valor social (entrou no horizonte social da época). É nessas condições que se configura e se consolida uma nova forma de interação social, a esfera

jornalística, que teria como características constitutivas as apontadas por Groth (apud RODRIGUES, 2001, p. 81): periodicidade (capacidade de a instituição captar e fazer circular a informação), universalidade (expectativas e reações da coletividade), atualidade (necessidade social de conhecimento dos acontecimentos) e difusão (meios tecnológicos de transmissão das informações). Ramonet (apud RODRIGUES, 2001, p. 81) segue a mesma linha de Groth e apresenta quatro conceitos básicos de jornalismo impresso (diário): a informação, a atualidade, o tempo da informação e a veracidade da informação.

Essas características levantadas acerca da esfera jornalística, incluindo seu nascimento e sua consolidação, vão ao encontro da teoria bakhtiniana, pois mostram que condições socioeconômicas determinadas criaram as condições e a necessidade de uma nova forma de comunicação socioideológica e a constituição de uma nova esfera, com funções e objetos próprios na vida social. Rodrigues (2001, p. 81) apresenta uma síntese dessa esfera:

[...] o objeto da esfera jornalística se constitui no horizonte de acontecimentos, fatos, conhecimentos e opiniões da atualidade, de interesse público. Nesse contexto, sua função sócio-ideológica se caracteriza por fazer circular

(interpretar, “traduzir”) periódica e amplamente as informações, conhecimentos e pontos de vista da atualidade e de interesse público, “atualizando” o nível da informação da sociedade (ou de grupos sociais particulares).

Tendo ressaltado algumas características da esfera jornalística, iremos agora destacar o gênero que serviu de foco para o desenvolvimento da proposta didático-metodológica desta pesquisa, a

crônica. Vale apontar primeiramente a escassez de material teórico existente sobre esse gênero. Dentre as obras com as quais tivemos contato (CANDIDO, 1992; SÁ, 1987), os autores parecem chegar a conclusões bastante convergentes: a crônica é um gênero híbrido, efêmero, despretensioso, que utiliza normalmente a ironia e o humor, com linguagem simplificada para registrar acontecimentos do cotidiano etc. Como mencionado, a crônica é considerada como gênero híbrido, com um discurso que mescla a objetividade do jornalismo e a subjetividade da criação literária, ou, como aponta Neves (1992), estabelece uma relação entre ficção e História. Apesar da confluência de esferas, a crônica parece ter nascido no jornalismo, no espaço denominado folhetim (SÁ, 1987).

Sá (1987) aponta que o folhetim era apenas uma seção quase que informativa, uma espécie de rodapé onde eram publicados pequenos contos, artigos, ensaios, poemas em prosa, enfim, tudo que informasse o leitor sobre os acontecimentos do dia ou da semana, sem muita pretensão jornalística. Percebe-se, assim, o caráter híbrido da crônica desde sua fase embrionária, quando ainda não tinha nome próprio e pertencia a essa seção do jornal: o folhetim pertencia ao jornalismo por ser informativo e muitas vezes crítico, mas também utilizava frequentemente recursos literários. A linguagem literária insinuava-se na informação, convivendo com ela em perfeita harmonia, conforme afirma Faria (1992): uma variedade imensa de conteúdo, com estilo leve que resvalava por vezes para a literatura. Uma vez que os gêneros discursivos crescem e se diferenciam à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo – conforme mencionado no capítulo anterior – o folhetim foi se transformando gradativamente em

crônica, na medida em que foi se “[...] alargando cada vez mais a intenção de informar e comentar [...], para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro.” (CANDIDO, 1992, p. 15).

A crônica, assim, nasceu no jornal e cresceu nele. Muitas características adquiridas na formação do gênero são decorrentes, portanto, da esfera jornalística, como, por exemplo, o caráter efêmero. Uma vez que o jornal possui essa característica, ou seja, é feito para as pessoas lerem e dele se esquecerem, a responsabilidade do cronista é conquistar a permanência de seu nome como escritor, mais do que do texto (LOPEZ, 1992). É na efemeridade do jornal que a crônica também adquire a aparência de simplicidade, conforme aponta Sá (1987). Segundo o autor, se o jornal nasce, envelhece e morre a cada 24 horas, a

crônica também assume essa transitoriedade, dirigindo-se a leitores apressados. A própria elaboração do texto também é urgente, pois o cronista dispõe de pouco tempo para escrever seu texto.

Além da pressa de escrever, há a pressa de viver. Sá (1987) afirma que os acontecimentos registrados são extremamente rápidos, por isso o cronista os relata com um ritmo ágil, com sintaxe solta que lembra a conversa entre dois amigos. Lopez (1992), inclusive, aponta como possível causa do sucesso atual do gênero crônica, o fato de o leitor gostar e até precisar de quem converse com ele, registrando os sentimentos experimentados no dia a dia, frente aos fatos que todos conhecem de algum modo ou da vida pessoal do próprio cronista. Essa seria a função do cronista, segundo o autor: escorar-se na verdade para escrever “coisas leves”, conversar com o leitor sobre algo que aconteceu e de que todos já tomaram conhecimento. A interação entre autor e leitor fica, assim, evidente e equilibra o estilo coloquial e o literário, por exigir uma linguagem “simples”: segundo Sá (1987), há uma proximidade entre as normas da escrita e da oralidade para recriar o real e elaborar um diálogo entre o cronista e o leitor. Candido (1992) também aponta para essa busca da crônica pela oralidade da escrita, em um processo de “humanização”. O cronista capta, assim, um “pequeno acontecimento do dia a dia”, que poderia ser considerado insignificante, não digno de se tornar uma “notícia”, e lhe confere um toque de lirismo reflexivo, transformando uma simples situação em uma reflexão sobre a condição humana. Sá (1987) aponta como princípio básico da crônica “registrar o circunstancial da vida”, mas em um sentido crítico.

Por tratar de temas que não são notícias, a crônica tem seu espaço reduzido no jornal, por isso também a característica da brevidade: “A

crônica é, pois, uma narrativa curta por excelência, uma ‘conversa fiada’, como dizia Vinícius de Moraes, mas que recebe um tratamento literário, mesmo que não seja considerado ficcional.” (SÁ, 1987, p. 28). Essa impressão de “conversa fiada”, com ar despreocupado, marca outra característica significante da crônica: o caráter de despretensiosa.

Segundo Sá (1987), existe uma liberdade do cronista – herança do folhetim como espaço “vale-tudo” –, que pode transmitir a aparência de “superficialidade” para desenvolver o tema, como se acontecesse “por acaso”. Mas esse “acaso”, ressalta o autor, é proposital e exige do escritor explorar as potencialidades da língua. Segundo Bussarello (2004), a suposta despretensão faz parte do estilo do gênero, tendo como objetivo, muitas vezes, estabelecer uma crítica ferrenha em tom de ironia que, por ser voltada a uma cultura escolarizada, pode tomar uma dimensão muito mais sarcástica e mordaz se fosse dita “com todas as palavras”. Segundo Sá (1987), a atmosfera política reafirma o valor sociológico da crônica na construção do painel de uma época. A

crônica, assim, trabalha essencialmente com a contrapalavra do

interlocutor, um comportamento que faz parte, além do estilo, do jogo político-ideológico do cronista.

É nessa atmosfera político-ideológica que Bussarello (2004) aponta também para o tom irônico e/ou humorístico, frequentemente presente na crônica. Segundo o autor, o riso sutil e escrachado é pano de fundo desse gênero, dá-lhe um ar de leveza e o caráter de despretensão. É pelo riso, causado pela ironia e pelo humor, que o cronista consegue dizer verdades sem que haja uma tensão entre os interlocutores: “A busca do pitoresco permite ao cronista captar o lado engraçado das coisas, fazendo do riso um jeito ameno de examinar determinadas contradições da sociedade.” (SÁ, 1987, p. 23). E a assinatura do cronista, segundo Bussarello (2004), é de extrema importância, pois ele assume a responsabilidade total das palavras publicadas – apesar de, considerando teorizações bakhtinianas sobre autoria, o jornal, nesse caso, tornar-se corresponsável por autorizar a publicação.

Essas características apontadas até aqui parecem, segundo os estudiosos do gênero, acompanhar a crônica desde sua origem. Segundo Bussarello (2004), o motivo é que as condições de produção da crônica não mudaram muito do passado para hoje, apesar de todas as revoluções tecnológicas. As condições sociais, obviamente, são outras, mas a tecnologia, segundo o autor, apesar de trazer avanço e rapidez para o homem moderno, não conseguiu diminuir o ritmo acelerado da vida diária; arriscamos pensar que, ao contrário, contribuiu para recrudescê- lo.

Objetivamos, aqui, apontar algumas características das duas dimensões inextricáveis do gênero crônica – a social e a verbal. Por serem processos ou instâncias interligados pelo próprio funcionamento do gênero nas interações verbais, não os separamos em subtítulos, optamos por interpenetrá-los: definições sobre o gênero, histórico da

crônica no Brasil e características da esfera jornalística. Os títulos e as regularidades enunciativas/discursivas encontradas nas crônicas trabalhadas – que tipificam a interação mediada por esse gênero na mídia – serão apontados na próxima seção, que descreverá o trabalho feito em sala de aula com o gênero no que se refere a atividades de leitura e produção textual.

4.2 A (NÃO) FORMAÇÃO DE LEITORES DE CRÔNICAS NA