• Nenhum resultado encontrado

focalizadas no estudo incidem sobre a realização dessas aulas no que respeita ao funcionamento da escola em sua

3 A ANCORAGEM TEÓRICA DA PRÁTICA PEDAGÓGICA: EIXOS DO PENSAMENTO DE BAKHTIN E DE VIGOTSK

3.1 VIGOTSKI E O PENSAMENTO SOCIOINTERACIONISTA: O ENCONTRO ENTRE O UNIVERSO BIOLÓGICO E O

3.1.4 O processo de ensino fundado em bases sociointeracionistas

As teorizações vigotskianas sobre relação entre aprendizagem e

desenvolvimento, zona de desenvolvimento imediato (2007 [1978]) e

formação de conceitos (2001 [1934]) trouxeram inúmeras contribuições

para o processo de ensino e aprendizagem de língua materna, conforme mencionado. Se o aprendizado impulsiona o desenvolvimento, o que se consubstancia na interação entre indivíduos, então a escola assume um papel de substancial importância nesse processo. Na ZDI, a ação de outros indivíduos incide mais efetivamente: “[...] o aprendizado escolar exerce significativa influência no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, justamente na fase em que elas estão em amadurecimento.” (REGO, 2002, p. 79-80). Para Vigotski (2007 [1978]), o “bom aprendizado” é aquele que se adianta ao desenvolvimento; ou seja, não apenas considera as capacidades já completadas pela criança, mas aquelas em fase de maturação – na Zona

de Desenvolvimento Imediato –, olha o desenvolvimento mental

prospectivamente:

A aprendizagem só é boa quando está à frente do desenvolvimento. Neste caso, ela motiva e desencadeia para a vida toda uma série de funções que se encontravam em fase de amadurecimento e na zona de desenvolvimento imediato. É nisto que consiste o papel principal da aprendizagem no desenvolvimento. [...]. É isto que distingue a educação da criança, cujo objetivo é o desenvolvimento multilateral da educação especializada, das habilidades técnicas [...], que não revelam nenhuma influência substancial sobre o desenvolvimento. A disciplina formal de cada matéria é o campo em que se realiza essa influência da aprendizagem sobre o desenvolvimento. (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 334).

O ensino escolar, portanto, deve se dirigir para esses estágios ainda não incorporados pelos alunos, servindo como um motor para alcançá-los: “[...]a escola tem o papel de fazer a criança avançar em sua compreensão do mundo a partir de seu desenvolvimento já consolidado

e tendo como metas etapas posteriores, ainda não alcançadas.” (KOHL DE OLIVEIRA, 1997, p. 62). Kohl de Oliveira (1997) também aponta que o professor atua como um protagonista para incidir sobre a ZDI dos alunos, provocando o desenvolvimento que não ocorreria espontaneamente. E a própria interação entre os alunos também é essencial nesse processo: em um grupo heterogêneo, por exemplo, um aluno com o conhecimento mais avançado sobre determinado assunto pode contribuir no desenvolvimento dos outros. A ação do professor e das próprias crianças no desenvolvimento individual é peça-chave em uma proposta de ensino escolar de base vigotskiana.

Vigotski (2007 [1978]) reavalia a questão da imitação no aprendizado. Contrariando a crença de que a imitação é um processo puramente mecânico, o autor aponta em seus estudos a conclusão de que uma pessoa só consegue imitar o que está no seu nível de desenvolvimento, pois implica uma “[...] reconstrução individual daquilo que é observado nos outros. [...] criação de algo novo a partir do que observa.” (KOHL DE OLIVEIRA, 1997, p. 63). E a criança só pode imitar, portanto, o que está em processo de aprender, por isso a imitação, para Vigotski, pode contribuir para o desenvolvimento mental, uma vez que pode sinalizar em que nível de desenvolvimento intelectual a criança se encontra; em outras palavras: “[...] só se pode ensinar à criança o que ela já for capaz de aprender. A aprendizagem é possível onde é possível a imitação. Logo, a aprendizagem deve orientar-se nos ciclos já percorridos de desenvolvimento, no limiar inferior da aprendizagem” (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 332).

Outra contribuição do ensino escolar no desenvolvimento do sujeito, segundo Vigotski, é na formação de conceitos, sobretudo nos

científicos: uma colaboração sistemática entre o pedagogo e a criança, processo em que ocorreria o amadurecimento das funções psicológicas superiores da criança. Em seus testes de comparações entre conceitos

espontâneos e científicos, Vigotski (2001 [1934]) obteve os seguintes resultados que seriam úteis ao ensino e à aprendizagem de língua materna: a resolução de testes de ciências sociais antecipa a solução dos testes espontâneos quando recebe auxílio do professor; os conceitos

espontâneos precisam estar amadurecidos o suficiente para que os

conceitos científicos possam se sobrepor a eles; o domínio de um nível mais elevado no campo dos conceitos científicos não deixa de influenciar nem mesmo os conceitos espontâneos da criança anteriormente constituídos.

Aqui podemos encontrar novamente a relação que o autor estabelece entre o universo biológico e o social. Para o psicólogo, as

formas de atividade intelectual típicas do adulto estão embrionariamente presentes no pensamento infantil, mas importa o meio ambiente para que se desenvolva e conquiste estágios mais elevados de raciocínio. Eis, novamente, a importância do ambiente externo, tão valorizado por Vigotski, que desafia, exige e estimula o intelecto infantil. Mais uma vez percebemos a importância da escola na formação de conceitos do aluno, segundo a teoria vigotskiana:

A escola propicia às crianças um conhecimento sistemático sobre aspectos que não estão associados ao seu campo de visão ou vivência direta (como no caso dos conceitos espontâneos). Possibilita que o indivíduo tenha acesso ao conhecimento científico construído e acumulado pela humanidade. Por envolver operações que exigem consciência e controle deliberado, permite ainda que as crianças se conscientizem dos seus próprios processos mentais (processos metacognitivos). (REGO, 2002, p. 79).

Em relação ao desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças, foco de nosso estudo, Vigotski (2007 [1978]) levanta três conclusões de caráter prático. A primeira é que, para o autor, seria natural transferir o ensino da escrita para a pré-escola, uma vez que os experimentos de Hetzer, relatados em sua obra, mostram que as crianças mais novas são capazes de descobrir a função simbólica da escrita. Vigotski, porém, ressalta aqui a importância de o ensino da leitura e da escrita ter uma “utilidade prática” para a criança, e não como simples habilidade motora: “A leitura e a escrita devem ser algo de que a criança necessite.” (VIGOTSKI, 2007 [1978], p. 143). Essa ressalva leva à segunda conclusão do autor, de que a escrita deve ter significado para as crianças: “[...] uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas [nas crianças] e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida.” (VIGOTSKI, 2007 [1978], p. 144). Por fim, o último ponto levantado pelo autor é a necessidade de a escrita ser ensinada naturalmente, precedida pelos estágios de desenhar e brincar:

[...] uma criança passa a ver a escrita como um momento natural no seu desenvolvimento, e não como um treinamento imposto de fora para dentro. Montessori mostrou que o jardim de infância é o lugar apropriado para o ensino da

leitura e da escrita; isso significa que o melhor método é aquele em que as crianças não aprendam a ler e a escrever, mas sim descubram essas habilidades durante as situações de brinquedo. [...]. Elas devem sentir a necessidade do ler e do escrever no seu brinquedo. [...] o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita, e não apenas a escrita de letras. (VIGOTSKI, 2007 [1978], p. 144-145).

Teorizações dessa ordem, em nossa compreensão, tornam o

sociointeracionismo de Vigotski um ideário fecundo nas discussões

sobre ensino e aprendizagem de língua materna, em que pese a tendência, em se tratando de teorizações acadêmicas, de denegação de ideários que ganham grande projeção em nome de uma eventual exauribilidade. Outro eixo teórico que contribui significativamente para a educação, também presente nos documentos oficiais, são as teorias do Círculo de Bakhtin, cujos conceitos mais importantes para a nossa pesquisa serão descritos a seguir.

3.2 O TRABALHO COM LÍNGUA PORTUGUESA NA

CONTEMPORANEIDADE: A ANCORAGEM NO

PENSAMENTO BAKHTINIANO

Conforme já mencionado, desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) e da eclosão, ainda que tardia no Ocidente, do pensamento de teóricos como Mikhail Bakhtin e L. S. Vigotski e de teorizações de seus seguidores no Brasil, a concepção de língua como objeto social ganhou espaços expressivos em nível nacional, redundando na preocupação em empreender o ensino de língua materna ancorado em usos sociais da linguagem. Os ganhos dessa nova etapa, em nosso entendimento, têm sido vinculados a uma mobilização dos profissionais da área em fazer grassar processos de ensino que tenham como viés metodológico a compreensão de que os gêneros

discursivos são – tal qual Maingueneau (2008, p. 152, grifos nossos) entende ser tradição da Análise do Discurso francesa conceber – “[...]

dispositivos de comunicação sócio-historicamente condicionados que

estão em constante mudança [...]”, o que nos parece honrar pressupostos bakhtinianos – tanto quanto vigotskianos – de que as interações

humanas são viabilizadas por meio dos usos da linguagem e que tais usos têm configurações relativamente estáveis que atendem a propósitos sociais e que precisam ser entendidas à luz de sua historicidade. Ganhos, ainda a nosso ver, correspondem ao entendimento relativamente consensual hoje de que os usos da língua escrita não podem ser tomados como sinônimos de erudição – o que possivelmente privilegiaria

gêneros do discurso secundários, se pensássemos em Bakhtin (2003

[1953/54]) – e que precisam ser entendidos à luz da lógica que os justifica no âmbito microcultural em que fazem sentido (ERICKSON, 1989; STREET, 1984).

Há, no entanto, em nossa compreensão, estrangulamentos nesse movimento de consolidação, ampliação e legitimação de um novo olhar para o processo de ensino da língua materna à luz dessas vertentes, o que entendemos ser prototípico de toda movimentação teórica que ganha vulgarização científica em manuais, cursos de formação continuada, apostilas e afins. Concebemos que a expansão de uma vertente teórica tem como correlatos espraiamento conceitual e implicações hermenêuticas inerentes ao fato de que as apropriações conceituais se dão por filtros axiológicos e de filiação epistemológica que caracterizam os estudiosos, o que se justificaria, por si só, dada a condição de homens e mulheres histórica e culturalmente situados que os caracteriza.

Trata-se, em última instância, de um custo inerentemente compatível com o próprio eixo dessas vertentes teóricas: a língua é usada por homens reais, em tempos históricos e sociais definidos. Esses diferentes sujeitos enxergam essas teorias utilizando “lentes” diversas, de acordo com o seu horizonte axiológico (BAKHTIN, 2004 [1929]), o que faz com que seus discursos refratem os discursos dos outros com os quais têm contato, reacentuando-os, atribuindo-lhes novas nuances. Os sujeitos, assim, refratam as teorias com que têm contato, conferindo a sua filiação contornos desses filtros social, histórica e culturalmente construídos. O espraiamento teórico – com suas virtudes e vícios – explicar-se-ia à luz do próprio eixo sobre o qual se estruturam tais teorias: a inserção/materialidade histórica dos estudiosos da linguagem. Não há como haver abstrações teóricas assépticas, cujas inquietações tematizadas serão discutidas à frente. Por ora, vale reiterarmos a importância das teorizações do Círculo da Bakhtin que, apesar de não terem como foco central o ensino e a aprendizagem de línguas, trazem considerações importantes sobre a temática, impulsionando as discussões teóricas e os desenvolvimentos pedagógicos na área de línguas desde a década de 1980, conforme aponta Rodrigues (2005, p. 153):

[...] como em função da crítica às práticas escolarizadas da produção textual e da leitura ganhou força a concepção de que o ensino/aprendizagem dessas práticas como interação verbal social tenha os gêneros do discurso como objeto de ensino, abre-se um novo diálogo, agora tendo como foco, além das noções de interação verbal e dialogismo, a dos gêneros do discurso. Nesse contexto, destaca-se o lugar para a discussão da concepção de gênero na perspectiva dialógica da linguagem.

Nesta seção, discutiremos os conceitos seminais das teorizações bakhtinianas, como gêneros do discurso, tidos como tipos relativamente estáveis de enunciados e que são construídos pela ligação com a esfera social (situação social da interação); enunciado como a unidade real da comunicação discursiva; linguagem como interação verbal (tese sociodialógica) e ideologia como instância que perpassa todos esses conceitos. Além disso, apontaremos, no final, as contribuições dessas teorizações para o ensino escolar e como elas chegam até a sala de aula, por meio de documentos oficiais como os PCNs e correntes teóricas como o Interacionismo sociodiscursivo de Genebra.

3.2.1 O Círculo de Bakhtin: caráter dialógico da linguagem e