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DOMÍNIOS NOS USOS SOCIAIS DA ESCRITA: O DESAFIO PROPULSOR DO PERCURSO DE PESQUISA

2 NO MEIO DO CAMINHO TINHA MAIS QUE UMA PEDRA

2.1 DOMÍNIOS NOS USOS SOCIAIS DA ESCRITA: O DESAFIO PROPULSOR DO PERCURSO DE PESQUISA

Como linguistas aplicados, acreditamos que nosso papel seja construir inteligibilidades para “problemas linguísticos socialmente relevantes” (MOITA LOPES, 2006). Voltando-nos para a escola, parece que os problemas na formação de leitores e de produtores de textos- enunciado na modalidade escrita, em diferentes gêneros discursivos, problemas que parecem recorrentes, são socialmente relevantes a ponto de merecerem ser foco de um estudo ou de uma pesquisa no campo da Linguística. Indicadores oficiais como o Inaf – Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional – e o Pisa – Programa de Avaliação Internacional de Estudantes – apontam para esses problemas. Apesar de serem indicadores de abordagem massiva – ou seja, não abarcam particularidades locais –, sinalizam para um questionamento válido: Escolas brasileiras situadas em entornos microculturais caracterizados por baixos níveis de escolarização – e, em coocorrência, caracterizados

também pela condição de desprivilegiamento socioeconômico – estão formando alunos leitores e produtores de textos-enunciado em gêneros discursivos diversos, requeridos para sua mobilidade social e para as interações que caracterizam sua inserção nos diferentes entornos socioculturais da contemporaneidade?

Mantido pelo Instituto Paulo Montenegro, em parceria com a ONG Ação Educativa, o Inaf, desde 2001, analisa habilidades de leitura, escrita e matemática da população brasileira, por meio de aplicação de instrumentos de geração de dados e amostras nacionais de duas mil pessoas. Participam da pesquisa cidadãos com idade entre quinze e 64 anos, estudantes ou não. O Inaf descreve quantitativamente os participantes de acordo com habilidades em leitura e escrita, dividindo- os em quatro níveis de alfabetismo. O primeiro nível, denominado analfabetismo, inclui os cidadãos que não conseguem realizar tarefas simples que envolvem a leitura de palavras e frases. No segundo nível, alfabetismo de nível rudimentar, encontram-se os cidadãos com capacidade de localizar informações explícitas em textos curtos e familiares (como anúncios) e de ler e escrever números usuais e operações simples. Já o terceiro nível, alfabetismo básico, categoriza cidadãos que leem e compreendem textos de média extensão, localizam informações e fazem pequenas inferências. Por fim, o último nível, alfabetismo pleno, inclui os cidadãos sem restrições para compreender e interpretar textos longos, analisando e relacionando suas partes. Os resultados do último Inaf, de 2009, apontam para um percentual preocupante: apenas um quarto da população brasileira entre quinze e 64 anos está plenamente alfabetizada (25%). A maioria dos cidadãos encontra-se no nível básico de alfabetismo – 47%. O restante divide-se em analfabetos – 7% – e nível rudimentar de alfabetismo – 21%7.

Também de natureza massiva, mas ancorado em bases epistemológicas e em propósitos distintivos do Inaf, o Pisa é um exame realizado a cada três anos, que resulta de uma parceria firmada entre as nações que compõem a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD) e objetiva avaliar se jovens estão capacitados para fazer frente aos desafios que a sociedade lhes apresenta (BRASIL, 2001; OECD, 2002). No Brasil, o processo é coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão vinculado ao Ministério da Educação. O indicador visa analisar se alunos em fase final de escolarização obrigatória (na faixa dos quinze anos) desenvolveram satisfatoriamente – à luz de padrões dados

aprioristicamente8 – habilidades tidas como fundamentais para uma “efetiva inserção social” nas áreas de leitura, matemática e ciências. Cada edição corresponde a uma dessas três áreas de conhecimento. No caso da leitura, proficiência corresponde à capacidade de usar, compreender e refletir sobre uma diversidade de textos, em diferentes gêneros do discurso. Os testes focalizam habilidades de recuperação de informações, interpretação de textos e reflexão e avaliação, com cinco níveis crescentes de proficiência para cada uma. A recuperação de informação refere-se à capacidade do aluno de localizar uma ou mais partes de informação num texto; a interpretação de textos diz respeito às capacidades de construir significado e de elaborar inferências de uma ou mais partes de um texto; por fim, reflexão e avaliação testa a capacidade do aluno de relacionar a leitura de determinado texto com sua própria experiência, conhecimento e ideias (PISA, 2009).

O Brasil participou de três edições com foco em leitura, nos anos de 2000, 2006 e 2009, e todos os resultados foram pouco promissores. Em 2000, o Brasil foi representado por 4.893 alunos e obteve o pior desempenho entre os 43 países participantes (396 pontos). No Pisa de 2006, no qual participaram 57 países, o Brasil ficou em 49º lugar no ranqueamento final: representado por 9.295 alunos, o país obteve 393 pontos no exame de leitura. No último exame, de 2009, entre 65 países, o Brasil alcançou a posição 53º, com 412 pontos e representado por 20.000 estudantes. Com um dos piores escores de desempenho, os alunos brasileiros apresentaram uma leitura superficial que privilegia a recuperação de informação explícita (BRASIL, 2001; OECD, 2002), nível que tende a prevalecer no trabalho em sala de aula segundo Kleiman (2001 [1989]).

Ainda que questionemos metodologias – pesquisas de caráter massivo, reiteramos, não abarcam características locais – e propósitos – a que objetivos de natureza socioeconômica e política se prestam, de fato, essas testagens (salvaguardadas reconhecidas distinções entre Inaf

8 O Pisa trabalha com categorias correspondentes a habilidades intrassubjetivas de leitura, tal

qual referenciamos nesta página – localização de informações, interpretação e reflexão e

avaliação –, independentemente de quem sejam os leitores à luz de sua inserção social, histórica e cultural, o que permite ao indicador comparar leitores brasileiros de quinze anos com leitores finlandeses de quinze anos, por exemplo. (http://www.inep.gov.br/internacional/ pisa: acesso em 19 de novembro de 2008). O foco é psicologista, na acepção do termo a que se contrapunha Bakhtin (2004 [1929]), o que permite ao indicador o estabelecimento abstrato e apriorístico de habilidades de leitura. Nosso interesse nos dados do Pisa limita-se à sinalização para problemas linguísticos socialmente relevantes no que diz respeito aos usos da escrita, foco de interesse do linguista aplicado ocupado em estudar o ensino e a aprendizagem de língua materna na escola.

e Pisa) – de indicadores desse tipo, os resultados parecem sinalizar que muitas de nossas escolas não vêm formando alunos leitores e produtores de textos-enunciado em gêneros discursivos diversos, sinalização que encontra eco em nossa experiência empírica. Acreditamos, assim, que, a exemplo de outras áreas do conhecimento, o ensino da Língua Portuguesa convive com embates de natureza teórico-metodológica em muitos contextos em nível nacional. Após mudanças substantivas na sua história como disciplina escolar, conforme apontam Britto (1997) e Soares (2002), principalmente no que diz respeito ao objeto de ensino e a concepções de língua – do foco na gramática conceitual9 para o foco no texto como unidade de ensino (BRASIL, PCNs LP, 1998) –, essas discussões ainda persistem, sem chegar, em muitos contextos de

escolarização, a práticas efetivamente

textuais/enunciativas/discursivas10.

Nos nossos primeiros contatos com a escola em que se deu a pesquisa-ação que constitui esta dissertação, por exemplo, a professora participante do estudo nos perguntou o que estávamos discutindo atualmente na universidade: se estávamos defendendo ou não o ensino da gramática, quais eram as teorias em voga, qual “tipo de ensino” estava em pauta. Os saberes a que a professora faz menção quando interroga o que a universidade diz sobre gramática, em nosso entendimento, remetem à concepção de língua do Objetivismo Abstrato, corrente teórica que será apresentada no terceiro capítulo e que parece ainda ser o foco de muitos professores: o ensino do sistema pelo sistema, em razão da herança histórica construída nesse eixo, sobretudo na morfologia – classes de palavras – em que, no Brasil, tivemos Mattoso como grande expoente e influenciador em nível nacional. Além, disso, esses questionamentos sugerem o quanto profissionais em muitas escolas ainda esperam “respostas” da universidade e o quanto, a despeito de mais de década de discussão, se considerada a cronologia dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998) – PCNs –, ainda não construímos caminhos relativamente consensuais sobre o ensino de Língua Portuguesa.

9 Por gramática conceitual, para as finalidades deste estudo, entendemos abordagens da

morfologia, da fonologia, da sintaxe e da semântica da língua portuguesa, com finalidades categoriais de definição, identificação e flexão.

10 Estamos conscientes das implicações teórico-epistemológicas subjacentes a esses usos; por

ora, estamos concebendo os termos como correlatos para significar perspectivas de abordagem que, ao conceber língua como objeto social, fogem à concepção de língua tomada na imanência sistêmica, posicionamento típico da gramática conceitual.

Além dos indicadores, parece que problemas na formação de leitores e de produtores de textos-enunciado em escolas brasileiras já foram diagnosticados há, pelo menos, duas décadas. Já se discutiram os problemas da aula de Português, já se apontaram possíveis causas e caminhos para tal – tomemos como exemplos discussões de Geraldi (1997 [1991]), Kleiman (2001 [1989]), Britto (1997), Antunes (2003) e Batista (1997) –, mas os embates continuam. Tentar entender o porquê de esses problemas persistirem seguramente demandaria uma vida de estudos, do que possivelmente decorram várias respostas: poderíamos buscar causas nas políticas públicas, na natureza das ações de pesquisa empreendidas pelas universidades, na fundamentação epistemológica de teorias vigentes, na operacionalização das formações continuadas de professores, no dia a dia das escolas, no fazer dos próprios professores, tanto quanto na natureza dos usos que os diferentes entornos sociais fazem da modalidade escrita da língua. Esse, porém, não é o objetivo desta dissertação, que, por sua própria natureza, constrói-se sobre um foco necessariamente delimitado. Tão somente experienciamos, durante o estágio final do curso de licenciatura, os desafios de que tratamos aqui, o que despertou o interesse por constituir tais desafios objeto de estudo.

A enorme dificuldade que, ao longo desta pesquisa, observamos nos alunos em ler, interpretar e produzir textos-enunciado de gêneros discursivos secundários11 (a exemplo de crônica, conto, reportagem, artigo assinado), o visível desinteresse da maior parte dos estudantes pelas aulas, o desânimo da professora participante de pesquisa nas atividades diárias empreendidas – a maioria das quais não alcançava resultados satisfatórios – chamou-nos a atenção para a dimensão da problemática que estávamos tomando como objeto de estudo ao menos nesses espaços em que vivenciamos. Foi assim que surgiu esta dissertação, fruto de uma romântica vontade de “fazer alguma coisa” diante dessa realidade. Se essa mesma realidade for concebida como um problema linguístico socialmente relevante, tal busca talvez convirja para o papel de um linguista aplicado na contemporaneidade. Decidimo-

11 O conceito de gêneros discursivos secundários vem da teoria sobre gêneros do discurso de

Bakhtin, que será aprofundada no capítulo 2. Importa, porém, registrar desde aqui que os chamados gêneros discursivossecundários ou complexos seriam aqueles que advêm de um convívio cultural mais complexo, são institucionalizados, como romance, editorial, tese,

palestra, pesquisa científica, e muitos outros. Bakhtin os contrapõe aos chamados gêneros

primários ou simples, que seriam formados na “comunicação discursiva imediata”, do cotidiano, não formalizados e institucionalizados. Exemplos: conversa de salão, conversa

sobre temas cotidianos, carta, diário íntimo, bilhete, entre outros (BAKHTIN, 2003 [1953/54]).

nos, então, por uma metodologia que implica coconstrução dessas inteligibilidades com os envolvidos e intervenção direta do pesquisador – a pesquisa-ação. Antes, porém, de descrevermos os procedimentos metodológicos desse tipo de pesquisa, vale apontarmos as principais mudanças ocorridas ao longo deste estudo, que serão descritas a seguir.

2.2 DAS PRÁTICAS DE LEITURA À AULA DER PORTUGUÊS: A