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focalizadas no estudo incidem sobre a realização dessas aulas no que respeita ao funcionamento da escola em sua

3 A ANCORAGEM TEÓRICA DA PRÁTICA PEDAGÓGICA: EIXOS DO PENSAMENTO DE BAKHTIN E DE VIGOTSK

3.1 VIGOTSKI E O PENSAMENTO SOCIOINTERACIONISTA: O ENCONTRO ENTRE O UNIVERSO BIOLÓGICO E O

3.1.3 A formação de conceitos: um mesmo processo sob duas vias contrárias

Segundo Rego (2002, p. 76), conceitos são entendidos pela perspectiva vigotskiana como um “[...] sistema de relações e generalizações contido nas palavras e determinado por um processo histórico cultural: são construções culturais, internalizadas pelos indivíduos ao longo de seu processo de desenvolvimento.”. Para Vigotski (2001 [1934]), os conceitos seriam definidos por atributos estabelecidos por características de elementos encontrados no mundo real, selecionados como relevantes pelos diversos grupos culturais. Não se trata de um conjunto de conexões associativas que se assimila com a ajuda da memória, nem um hábito mental automático, mas de um “[...] ato real e complexo de pensamento que não pode ser aprendido por meio de simples memorização, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já houver atingido o seu nível mais elevado.” (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 246).

Em suas obras, Vigotski aponta para dois tipos de conceitos:

espontâneos ou cotidianos e científicos. Os conceitos espontâneos são construídos a partir da manipulação eda vivência direta da criança. Nas

interações cotidianas, a mediação do adulto acontece espontaneamente no processo de utilização da linguagem, no contexto das situações imediatas – ou seja, suas palavras referem-se a elementos presentes nas situações. Já os conceitos científicos relacionam-se àqueles eventos não diretamente acessíveis à observação ou ação imediata da criança: são os conceitos sistematizados, adquiridos nas interações escolarizadas. Conceitos incluem-se em um sistema de abstrações graduais, com diferentes níveis de generalizações. Para Newman e Holzman (2002), é possível caracterizá-los da seguinte maneira: os científicos seriam, basicamente, os aprendidos em ambiente escolar, enquanto os

espontâneos seriam aprendidos no curso da vida diária.

Os estudos de Vigotski (2001 [1934]) apontam diversas características de ambos os tipos, em crítica aos estudos de Piaget. Uma primeira tese defendida pelo psicólogo é a de que o desenvolvimento dos conceitos não-espontâneos revelaria todas as peculiaridades qualitativas básicas próprias do pensamento infantil em uma determinada fase da evolução etária. Essa hipótese parte da afirmação de que “[...] os conceitos científicos não são assimilados nem decorados pela criança, não são memorizados, mas surgem e se constituem por meio de uma imensa tensão de toda a atividade do seu próprio pensamento.” (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 260). Além disso, para o autor, “[...] os conceitos científicos da criança, como o seu tipo mais puro de conceitos não-espontâneos, revelam não só traços opostos àqueles que conhecemos da investigação dos conceitos espontâneos, mas também traços afins a eles.” (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 260). Isso porque, para o psicólogo, apesar de diferentes, os dois tipos de conceitos são intimamente relacionados e se influenciam mutuamente, pois compõem um único processo: o desenvolvimento da formação de conceitos. Eles não configuram, assim, formas de intelecção antagônicas e excludentes, mas se articulam dialeticamente e se transformam reciprocamente.

O autor (2001 [1934]) descreve o desenvolvimento dos conceitos em três fases, sendo as duas primeiras partes do período pré-escolar. A primeira fase é da agregação desorganizada: amontoados vagos de objetos desiguais, fatores perceptuais irrelevantes, predomínio do sincretismo. Vigotski (2001 [1934]) chama a atenção para o fato de que uma criança de três anos e um adulto podem se entender porque partilham de um mesmo contexto e utilizam um grande número de palavras com mesmo significado, mas baseadas em operações psicológicas diferentes (características concretas / significações abstratas); isso significa que o conceito no sentido real não está

desenvolvido. O psicólogo conclui que o conceito em si e para os outros existe antes de existir para a própria criança, ou seja, a criança pode aplicar palavras corretamente antes de tomar consciência do conceito real. Essa afirmação, mais uma vez, explicita a concepção de Vigotski de que todo conhecimento é primeiramente interpsicológico para depois se tornar intrapsicológico.

A segunda fase do desenvolvimento é a do pensamento por

complexos: os objetos associam-se não apenas devido às impressões

subjetivas da criança, mas também devido às relações concretas e factuais que de fato existem entre esses objetos, podendo, entretanto, mudar uma ou mais vezes durante o processo de ordenação. Essas características selecionadas podem parecer irrelevantes para os adultos. Num estágio avançado dessa fase, Vigotski (2001 [1934]) identifica a combinação de objetos em grupos com base em alguma característica que os torna diferentes, e, ao mesmo tempo, complementares entre si, que se assemelham a coleções. Na passagem para os conceitos propriamente ditos, há um último tipo de complexos, o pseudoconceito, estágio no qual a criança generaliza fenotipicamente, mas psicologicamente seu conceito é muito diferente do conceito propriamente dito ao adulto.

Na terceira fase de formação de conceitos, o grau de abstração deve possibilitar a simultaneidade da generalização (unir) e da diferenciação (separar). Essa fase exige uma tomada de consciência da própria atividade mental porque implica uma relação especial com o objeto, internalizando o que é essencial do conceito e na compreensão de que ele faz parte de um sistema. Inicialmente formam-se os conceitos potenciais, baseados no isolamento de certos atributos comuns, e, em seguida, os verdadeiros conceitos. Por seus experimentos, Vigotski (2001 [1934]) conclui que a capacidade do adolescente de formar conceitos antecede em muito sua capacidade de defini-los.

Esse caminho de desenvolvimento, porém, não é exatamente igual para os dois tipos de conceitos, eles não repetem as mesmas vias de desenvolvimento, mas são processos interligados, com influência mútua, conforme já mencionado. Uma primeira distinção entre os processos refere-se à tomada de consciência, que se baseia na generalização dos próprios processos psíquicos e na consequente apreensão. Enquanto nos conceitos científicos, a generalização e a apreensão parecem surgir antes, já no início, nos espontâneos elas aparecem depois: “É da própria natureza dos conceitos espontâneos não serem conscientizados. As crianças sabem operar espontaneamente com eles, mas não tomam consciência deles.” (VIGOTSKI, 2001 [1934], p.

290). Os conceitos espontâneos seriam, assim, sinônimos de não- conscientizados, enquanto os científicos pressuporiam tomada de consciência. Os conceitos espontâneos ainda se distinguiriam dos

científicos por serem dados “fora do sistema”, ou seja, possuem uma relação direta com o objeto, são “extra-sistêmicos, ao contrário do

científico que “[...] pressupõe seu lugar definido no sistema de conceitos, lugar esse que determina a sua relação com outros conceitos.” (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 293). Todas essas características, assim, estão interligadas, conforme aponta o autor:

[...] inconsciência significa ausência de generalização, ou melhor, atraso no desenvolvimento do sistema de relações de generalidade. Deste modo, espontaneidade e não- consciência do conceito, espontaneidade e ausência de sistema são sinônimos. Ao contrário, os conceitos não-espontâneos, pela própria natureza e por serem tornados não-espontâneos, desde o início devem ser conscientizados, devem ter um sistema. (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 384).

A ausência ou a existência do sistema, para o autor, seria o ponto central que determina inteiramente a diferença de natureza psicológica entre ambos os conceitos. A relação com o objeto modifica-se dependendo se o conceito encontra-se dentro ou fora do sistema. Como explica o psicólogo, a relação da palavra “flor” com o objeto, na criança que ainda desconhece as palavras “rosa”, “violeta”, “lírio” (conceito fora do sistema) e na criança que as conhece (conceito dentro do sistema), acaba sendo inteiramente diversa:

Fora do sistema, nos conceitos só são possíveis vínculos que se estabelecem entre os próprios objetos, isto é, vínculos empíricos. Daí o domínio da lógica da ação e dos vínculos sincréticos causados pela impressão em tenra idade. A par com o sistema surgem as relações dos conceitos entre si, a relação imediata dos conceitos com os objetos através de suas relações com outros conceitos, surge outra relação dos conceitos com o objeto: nos conceitos tornam-se possíveis vínculos supra-empíricos. (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 379).

Com essas distinções, o autor aponta para aspectos fortes e fracos dos dois tipos de conceitos, que seriam encontrados simultaneamente no mesmo estágio de desenvolvimento de uma criança. Nos conceitos

espontâneos, a fraqueza se manifesta na incapacidade para a abstração,

mas sua força está na saturação de experiência. Já os conceitos

científicos têm na capacidade de generalização seu aspecto forte, e na ausência de experiência, seu aspecto fraco. O autor aponta ainda que a primeira gestão do conceito espontâneo vincula-se geralmente com o choque imediato da criança ao entrar em contato com o objeto vivo real; ou seja, ela conhece o objeto primeiro para depois desenvolver um conceito para ele. Com o conceito científico, o caminho é inverso: sua gestação inicia na relação mediada com os objetos. Em outras palavras:

[...] o conceito espontâneo da criança se desenvolve de baixo para cima, das propriedades mais elementares e inferiores às superiores, ao passo que os conceitos científicos se desenvolvem de cima para baixo, das propriedades mais complexas e superiores para as mais elementares e inferiores. Essa diferença está vinculada à referida relação distinta dos conceitos científico e espontâneo com o objeto. (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 348).

Desde as origens, assim, os conceitos já estabelecem sua relação com o sistema: “Ao surgirem de cima, das entranhas de outros conceitos, eles [conceitos científicos] nascem com a ajuda de generalidade entre os conceitos estabelecidos no processo de ensino.” (VIGOTSKI, 2001 [1934], p. 383). O autor, assim, define como antagonismos as relações entre a aprendizagem e o desenvolvimento no processo de formação dos conceitos infantis, ao afirmar que a forma de pensamento infantil se contrapõe, desde os primórdios, às formas de pensamento maduro, excluindo-se mutuamente, e não surgindo umas das outras. A partir de todos esses pressupostos, Vigotski (2001 [1934]) aponta para a importância do processo educacional no desenvolvimento do conceito científico, que será discutido a seguir.

3.1.4 O processo de ensino fundado em bases