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3. Um estudo de caso de orientação etnográfica

3.1. A escolha do caso e a transversalidade da investigação

3.2.0 dispositivo metodológico

Como diz Boaventura de Sousa Santos, «cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada» (1988: 48). Torna-se, assim,

necessário que o investigador domine as duas línguas - a língua da produção e a língua da interpretação da narrativa -, tornando-se um intérprete e um tradutor das justificações múltiplas dos actores sociais. Realizando um trabalho de mediação entre a produção e a interpretação do discurso, o investigador tem em vista analisar e compreender as linguagens dos actores e da acção social, os espaços e os tempos de mediação e intermediação, as racionalidades dos actores e os choques de racionalidades, os aspectos estratégicos e inconscientes da acção, as dimensões materiais e simbólicas dos dispositivos organizacionais e formativos. E, ao mesmo tempo, tornar compreensível a linguagem do investigador e da sua própria acção. Pretende-se, assim, questionar a pretensa objectividade de alguma investigação que se socorre de todo um artifício retórico de racionalização para sustentar a pretensa validade universal dos seus resultados, quando, na realidade, é, em grande medida, o acaso, a intuição, a subjectividade do investigador que orientam a actividade investigativa.

O dispositivo de recolha, análise e interpretação dos dados não se situa no registo da tecnicidade ou da factualidade, mas no registo do sentido e da tradutibilidade. Trata-se, também, de uma arte, de um trabalho de recriação, de bricolage ou de "artesanato interpretativo" (Bogdan e Biklen, 1994: 260). A análise do conteúdo dos discursos não visa a sua restituição objectiva, mas a sua tradução. Portanto, as categorias ou os temas encontrados para a análise foram sugeridos pelo

contexto e pelo texto (Habermas, 1995) e não a pretexto de objectivos e temas pré-

definidos e de hipóteses para confirmar ou infirmar. O analista é, assim, «comparável a uma esponja durante a sua fase de campo» (Friedberg, 1993: 299) e «os dados são simultaneamente as provas e as pistas» (Bogdan e Biklen, 1994: 149) da pesquisa.

O trabalho de pesquisa realizou-se durante um longo período de tempo. Como já dissemos, temos acompanhado a actividade do Centro, desde 1993. No início, esse acompanhamento não era sistemático nem decorria de objectivos relacionados com esta investigação. Tal só ocorreu posteriormente no âmbito da realização do Curso de Mestrado. No período que decorreu entre 1993 e 1996 a ligação a esse Centro caracterizou-se pela participação em acções de formação contínua de professores e noutras actividades do Centro e por um interesse em acompanhar um processo participativo designado pelos actores locais por «reestruturação da rede escolar do concelho», que mais adiante analisaremos. Esta

dinâmica local de «reestruturação da rede escolar» constituía o objecto das Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica que entretanto iniciara mas que foram interrompidas com o ingresso no Curso de Mestrado.

Este curso contribuiu par a reformulação e clarificação do objecto e da problemática da investigação. Na fase inicial dessa investigação não estava claramente definido o que eram os problemas sociais concretos do contexto em estudo e os problemas de pesquisa do investigador, ou seja, entre o objecto social e o objecto científico. Nessa fase, as dinâmicas sociais locais geradas a partir do centro de formação e da actividade do seu director já constituíam elementos importantes de análise, mas o interesse da pesquisa restringia-se ao problema da rede escolar e às soluções que os actores locais encontravam para o problema. Essa perspectiva canalizou diversas leituras para as questões relacionadas com as escolas isoladas, com as escolas básicas integradas, com a dimensão comunitária da escolas, que constituíam o campo de preocupações dos próprios actores locais. À medida que o Curso de Mestrado e a investigação se foram desenvolvendo, os objectivos do trabalho e as questões de pesquisa foram sendo reformulados, orientando-se mais para o campo da formação e do CFAE. Como tal, a dinâmica de «reestruturação da rede escolar» passou a constituir apenas uma dimensão de análise, no conjunto de outras dimensões relacionadas com as dinâmicas sociais locais.

A pesquisa baseou-se, essencialmente, em notas de campo detalhadas, com componentes descritivas e reflexivas, de modo a permitir a «descrição densa» (Geertz, 1973) e a interpretação das dinâmicas sociais em estudo. As notas de campo da observação participante incluíram informações e explicações dos actores, ora fornecidas espontaneamente, ora a pedido do investigador, e foram obtidas em situações informais e em situações planeadas, designadamente em reuniões da Comissão Pedagógica e no decurso de actividades diversas envolvendo o Centro e o director. Quando se tratava de reuniões e de outras actividades, os registos eram escritos em tópicos, na própria presença dos actores, pensando-se que nessas situações, atendendo à familiaridade que entretanto fora criada, que o acto breve de apontamento escrito não constituiria um constrangimento para os actores presentes. Nas situações mais informais o registo era feito na ausência dos actores, procurando- se reproduzir o mais fielmente possível o sentido e o próprio conteúdo do discurso produzido. Para além da componente descritivar^as notas incluíram, sempre que se

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julgou oportuno e pertinente, comentários diversos do investigador, quer relacionados com reflexões e pistas teóricas, quer com hipóteses de interpretação sugeridas pelo contexto e pelas situações observadas. A inclusão destas duas componentes nas notas de campo criou condições favoráveis quer para o trabalho posterior de tratamento, análise e interpretação dos dados, quer para a interpelação permanente que provocou entre a teoria e a empiria.

Os material documental recolhido para análise corresponde ao material relativo à actividade do centro, designadamente, os planos de formação, avaliações, relatórios, actas das reuniões da Comissão Pedagógica; relativo, também, à actividade de um grupo de animação pedagógica ao qual o Centro está ligado através do director; relativo ainda à Delegação Escolar e à Autarquia, no que concerne às actividades que os ligam ao Centro; e ainda outros relacionados com actividades nas quais o director do centro está envolvido. Para além destes, recolheram-se outros documentos relativos à formação contínua de professores, produzidos pelas próprias estruturas de financiamento e acreditação e pelos próprios centros de formação de associação de escolas, designadamente boletins de informação e divulgação. Os documentos que referimos não foram produzidos intencionalmente para esta investigação. Há um tipo de documento, no entanto, que foi elaborado especificamente para este estudo a pedido do investigador. Trata-se de um diário do director do Centro realizado durante cerca de seis meses, mas que não teve continuidade por dificuldades de tempo do director.

Embora na investigação qualitativa do tipo etnográfico o investigador possa utilizar formas diversas de recolha de dados - por observação directa, pela análise documental, pela entrevista aberta ou de estrutura flexível, etc. - todos os dados recolhidos durante o estudo são considerados notas de campo, sejam as próprias notas recolhidas por observação, sejam as transcrições das entrevistas, os documentos, as estatísticas oficiais ou outro material empírico, constituindo, globalmente, um diário de campo.

A par da observação e da escuta informal no campo da pesquisa e da análise documental, a entrevista não directiva, ou semi-estruturada, constituiu o dispositivo metodológico privilegiado de recolha de dados. No entanto, ela não é um mero instrumento de recolha de dados, funcionando, também, como «como modo de comunicação e de intervenção» (Rifai, 1996: 279). Tratando-se de entrevistas

compreensivas (Kaufmann, 1996) e de explicitação (Vermersch, 1994), as entrevistas são estruturantes das práticas e da biografia dos actores e dos investigadores. A interacção favorecida por este tipo de entrevistas é uma acção comunicacional, constituindo-se como instâncias de reflexão, de partilha e de autorização discursiva dos próprios actores e do investigador. Esta interacção é explicitada pelo director do Centro:

«Quando faço uma reflexão sobre alguma coisa espero ter, também, a contra-

argumentação ou, pelo menos, a partilha da informação. Ora bem, eu entendo

isso nesse sentido. Portanto, isto é uma oportunidade de eu, também, se calhar, em muitas situações... Ainda há bocado, de manhã, me aconteceu estar a reflectir

pela primeira vez sobre uma questão que me tinhas posto» (Ent., MANUEL,

1997).

Este dispositivo de colheita e análise de dados não é, portanto, meramente instrumental. Não se pretendeu apenas obter informações dos entrevistados, mas sobretudo a reflexão e justificação das suas acções, isto é, as «justificações múltiplas» (Derouet, 1992), ou as «acções justificáveis» (Boltanski e Thévenot, 1991) dos actores; isto é, as suas práticas discursivas de autorização. No processo de pesquisa colaborativa, as entrevistas são essencialmente dispositivos de implicação, de escuta e de reflexividade, funcionando como instâncias através das quais os actores constróem discursivamente a realidade social e a sua própria biografia e experiência.

Como tal, o interesse maior do estudo reside na actividade comunicacional suscitada por ele próprio no contexto estudado, favorecendo a discussão com os actores locais sobre os processos e os produtos da investigação e procurando criar condições para a sua emancipação e para a transformação crítica e reflexiva das próprias práticas. Na totalidade realizaram-se 31 entrevistas, audio-gravadas e posteriormente transcritas: 12 em 1995, no âmbito do Projecto de Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, e 18 em 1997, no âmbito específico desta investigação. No primeiro caso, entrevistaram-se todos os membros de uma Comissão composta por diversos actores locais, designadamente o presidente da Câmara Municipal, presidentes de junta de freguesia, dirigentes de associações de pais, director de uma escola profissional, delegado escolar e director do centro de formação. No segundo caso, entrevistaram-se, entre os meses de Março e Julho de 1997, 5 professores-formandos, 5 formadores, todos os membros da Comissão Pedagógica. Com o director do centro realizaram-se 3 entrevistas em diferentes dias, para além de muitas outras entrevistas informais que não foram audio-gravadas.

Para além destas, realizou-se, ainda, neste mesmo período, mais uma entrevista com o delegado escolar por se ter considerado necessário, dada a sua ligação ao referido grupo de animação pedagógica e alguns acontecimentos entretanto surgidos que pareciam merecer uma análise mais aprofundada. Embora as entrevistas realizadas em 1995 se considerem ricas do ponto de vista empírico elas não foram todas utilizadas no presente trabalho de análise. Não obstante, elas contribuíram para a elucidação do contexto e das dinâmicas locais.

As entrevistas foram realizadas individualmente e tiveram durações variáveis. Em média, as entrevistas com os professores-formandos tiveram a duração de 30 minutos; com os membros da Comissão Pedagógica igual tempo, com excepção do presidente do conselho directivo da escola-sede, que durou cerca de uma hora; com os formadores e com o director do centro duraram cerca de uma hora cada entrevista. Todas elas foram audiogravadas, com autorização do entrevistado e com garantia de anonimato, e foram em seguida transcritas e depois submetidas aos entrevistados para correcção, sendo fixado o seu protocolo. O texto das entrevistas foi submetido a uma análise de conteúdo que procura restituir o(s) sentido(s) do discurso dos actores.

Com este dispositivo metodológico procurou-se garantir, também, o efeito de triangulação: triangulação dos métodos de colheita de dados, combinando a observação participante, as entrevistas e a análise documental; triangulação dos elementos empíricos contrastando dados provenientes de diferentes fontes; triangulação das interpretações, pela discussão dos temas e categorias interpretativas com o orientador da tese, com os actores envolvidos directamente no estudo e com outros actores ligados à formação e aos centros de formação de associação de escolas, com o coordenador e colegas do Mestrado em sessões de seminário de discussão de projectos de tese.

O relatório que aqui se dá a ver procura dar conta, portanto, do resultado da investigação realizada à luz deste dispositivo metodológico. Na apresentação dos resultados optámos por dar viva voz aos próprios actores utilizando o discurso directo. Para isso, incluímos no relatório um vasto número de vinhetas com excertos das entrevistas e de outro material empírico. Estas vinhetas são acompanhadas de um código que procura elucidar a autoria do discurso sem identificar o entrevistado. «Ent.» corresponde às entrevistas; NC às notas de campo, AD à análise documental.

No que diz respeito aos entrevistados, CP aos membros da Comisssão Pedagógica; F aos formadores; P aos professores-formandos, enquanto que os algarismos apensos são arbitrários, tendo sido atribuído um algarismo diferente a cada uma das entrevistas dentro de cada categoria de entrevistados. No caso do director do Centro, atendendo à centralidade que ele ocupa neste trabalho, utilizaremos um nome de investigação por ele escolhido - Manuel.

Pretende-se com a utilização de vasto número de vinhetas não apenas ilustrar o sentido do nosso discurso, mas também provocar um diálogo interpelante e permanente entre a teoria e a empiria; entre as nossas interpretações e as interpretações dos actores no terreno; entre estas interpretações e as interpretações dos próprios leitores deste trabalho - os actores no terreno directamente envolvidos e outros actores interessados nesta problemática. Para terminar é de referir que a relação colaborativa, de mútua disponibilidade, que se foi construindo e consolidando no decurso da investigação se mantém para além dela.