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2. A lógica individual e instrumental induzida pelo sistema de formação contínua

2.3. A divisão social do trabalho de formação

Estes constrangimentos decorrem da ligação à carreira e do sistema obrigatório e industrializado que essa ligação gerou e decorre também do pressuposto racional e tecnocrático da divisão do trabalho da formação - gestores, formadores, formandos. É esta divisão racional do trabalho que explica a terminologia do «dar» e «receber» formação e a existência de uma «barreira» que estabelece essa separação:

«Eu vou dar-te, também, o meu testemunho enquanto formando, do outro lado da

barreira» (Ent., F2, 1997).

Os sistemas pré-programados de formação de professores (Correia, 1989), assim criados, e a sua forma escolar (Chantâine-Demailly, 1992), acentuam esta divisão do trabalho no campo da formação, colocando a um lado os que definem prioridades, necessidades, cursos e programas de formação e, a outro lado, os «carenciados» dessa formação. Estas lógicas estão de tal modo enraizadas no campo da formação que são defendidas não apenas por quem as concebe ao nível do sistema, como também pelos próprios actores locais, incluindo os professores-

formandos:

«Uma pessoa está ali para aprender. Devem-nos tomar como iniciados nessas coisas e não como pessoas que apesar de terem um curso em certos aspectos estão deficientes» (P2, 1997).

Nestas lógicas de formação centradas na ideia da deficiência, os professores assumem um papel passivo, não tendo senão que escolher uma acção de um catálogo que lhes é apresentado. Estas concepções transformam os processos formativos em actos de transmissão de saberes estranhos ao campo profissional, desapossando os professores dos seus saberes experienciais. Assim, elas acentuam a dependência e a competição entre os professores e são factor de insegurança, de ansiedade e de stress profissional:

«Uma das características dos professores é que nós somos muito propensos para termos ansiedade, stress. E há professores que ficam doentes, porque temos uma pressão grande em cima de nós, porque somos briosos. O professor, em princípio, é uma pessoa briosa, gosta de mostrar (...) E depois anda tudo a correr. E há formadores que têm a tentação de mandar trabalhos para casa. Acho isso péssimo, horrível» (Ent., F2, 1997).

«Recordo-me do caso de uma colega em (...) que era educadora, que estava a cento e tal quilómetros de casa, tinha um filho com ela e tinha outro fora dela. Aquela senhora era extremamente receptiva, mas havia sempre algo dentro dela que a não deixava ser ela mesma como formanda, porque estava sempre a olhar para o relógio para ir embora» (Ent., F3, 1997).

Para além disso, os professores tendem a ser encarados apenas como formandos-alunos e não como adultos e profissionais autores da sua própria formação. Estas concepções não são, portanto, um campo propício à auto-formação e à aprendizagem colectiva entre pares - inter-formação - ancorada nos contextos e nas situações de trabalho:

«Eu sou dos que entendo que aprendo mais em três horas de partilha com uma dúzia de colegas a falar sobre problemas disciplinares dos alunos na sala de aula do que ficando sentado em frente de um entendido sobre as teorias da disciplina, mas que não sabe nem tem ideia do que é uma escola e uma sala de aula» (Ent., F4, 1997).

A lógica formal dominante contribui para a ocultação de outras lógicas, tornando difícil a emergência e a afirmação de outro tipo de actividades formativas que escapem ao modelo racional. O modelo racional e industrializado da formação pressiona no sentido do imediatismo, do pragmatismo, da uniformização e do trabalho em série, mecânico e irreflectido, não deixando tempo - e muito menos estimulando e dando contrapartidas aos responsáveis pela gestão dos centros, aos

formadores e aos professores, de uma maneira geral - para reflectirem e assumirem um papel mais activo e interveniente na formação, procurando alternativas mais interessantes, do ponto de vista pessoal e profissional, e mais úteis, do ponto de vista

dos seus efeitos nas práticas escolares com os alunos. Neste sistema de formação

contínua,

"há a desvantagem de por vezes termos de participar em acções que pouco nos dizem, mas são as que o nosso centro nos oferece. Devia-se avançar para acções

que apoiassem os professores em projectos que pretendessem desenvolver com os alunos. Actualmente parece haver a necessidade de atribuir tanta mais importância a um professor quanto mais conhecimentos teóricos ele tiver ou cursos fizer, desvalorizando o trabalho mais importante do professor, que é o que ele desenvolve com os seus alunos dentro e/ou fora da sala de aula» (Ent.,

Fl, 1997).

Este depoimento reflexivo e crítico não é, no entanto, frequente nos discursos dos professores. Tendendo muitas vezes a ser encarada como uma forma de resistência à mudança, a análise crítica é antes uma condição imprescindível a uma acção mais lúcida e, como tal, mais interveniente. Podemos referir um episódio (NC, Jornadas de Recepção aos Professores) ocorrido no contexto em estudo. Das escassas intervenções dos professores nestas Jornadas, uma delas chamou a atenção para a situação em que os professores vivem actualmente «de chapéu na mão, como se andassem a mendigar» e para o problema da «mobilidade docente», pois «assim é quase impossível fazer qualquer coisa». Ao afirmar que a formação contínua se realiza em moldes de «reciclagens» e «para progressão na carreira individual dos professores» foi encarado imediatamente como fonte de resistência e de bloqueio:

«Eu, sinceramente, não esperava muito aquela resposta da sub-gestora do FOCO, porque, se calhar, ela, como eu, também compreende que a formação, tal como está, não será a melhor, porque só está virada para a progressão na carreira e nada mais. Claro que ali não o poderia dizer. Ali ela teria que defender a dama dela e foi isso que fez e eu aceitei, enfim» (Ent., DLE, 1997).

Os exemplos ilustram a complexidade da problemática. Tratando-se de um estudo realizado num contexto local, ele é, contudo, influenciado por múltiplas condicionantes estruturais. Na sua actividade, o centro de formação trabalha em sentidos diversos, entre os constrangimentos e as oportunidades, podendo subordinar-se e dar cumprimento burocrático-industrial às leis da oferta e da procura da formação ou encontrar práticas alternativas à racionalidade dominante. Em grande medida, jogam-se nesta tensão os sentidos plurais da formação e das lógicas da acção dos actores locais.

CAPITULO V

LINGUAGENS E PRÁTICAS DA FORMAÇÃO: A LÓGICA TERRITORIAL