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Algumas teorias que se desenvolveram, periíericamente, desde os anos 60, como a sociologia fenomenológica, a etnometodologia e a sociologia existencial, que alguns autores agruparam sob a designação de «sociologias criativas» (Morris, 1977) ou «sociologias da vida quotidiana» (Weigert, 1981), têm contribuído bastante para superar as tradicionais dicotomias que se instalaram na ciência moderna, designadamente, a dicotomia entre factos e opiniões, que tende a considerar os factos do domínio da ciência e as opiniões do domínio do profano. Em comum estas teorias revelam o interesse pelo significado, pela produção da situação social e pela vida quotidiana.

Há, no entanto, algumas diferenças entre elas que importa analisar. Por exemplo, enquanto a fenomenologia se centra essencialmente no que pensam as pessoas, a etnometodologia ocupa-se sobretudo do que as pessoas fazem, isto é, das práticas mediante as quais as pessoas vivem a sua vida quotidiana. Tais diferenças acentuam-se no que diz respeito à metodologia. Enquanto que a sociologia fenomenológica tem sido em grande parte conceptual e teórica, a etnometodologia tem dado prioridade aos estudos empíricos, utilizando uma série de métodos, desde o trabalho de campo extensivo e intensivo, de observação directa e de observação participante, à análise documental.

Ao trabalhar com as práticas discursivas, a etnometodologia coloca-se no espaço híbrido entre factos e opiniões. Os discursos não são considerados instrumentos cognitivos para a compreensão da realidade; a cognição da realidade é a própria realidade. Analiticamente, isso exige uma «atitude epistemológica de escuta» (Correia, 1997a), pois esta subentende a troca de olhares e de opiniões, a interacção, enquanto que o olhar tende a ser dirigido e unidirecional. A investigação começa com o silêncio (Psathas, 1973), numa tentativa de captação daquilo que se escuta e, nesse sentido, a observação participante pode constituir-se como um acto de escuta. Como acto de escuta ele constitui uma possibilidade de o investigador se abrir à multiplicidade de opiniões e justificações, não se limitando à observação de realidades e factos supostamente objectivos.

A etnometodologia, ao definir como objecto de estudo as práticas, os «etnométodos», está a abrir, assim, o campo de análise quer às grandes estruturas

institucionais quer às estruturas mais íntimas e pequenas. O interesse pelo mundo intersubjectivo da vida quotidiana permite o estudo dos contextos e das práticas da vida quotidiana, seja à escala do indivíduo, seja à escala das burocracias, do capitalismo, da divisão do trabalho ou do sistema social. Estas estruturas podem constituir-se como objecto de estudo, não como fenómenos em si mesmos, mas enquanto contextos de vida quotidiana empiricamente referenciáveis. Assim, o seu estudo toma-se pertinente pela possibilidade de se constituírem como questões de pesquisa e não como fenómenos abstractos. Eis, portanto, a razão pela qual a etnometodologia tem vindo a ganhar adeptos nos últimos anos, deixando a periferia e a marginalidade - o interesse pela investigação empírica e pelas práticas da vida quotidiana.

Nesta perspectiva, o discurso é também uma prática social e uma questão central da pesquisa. Esta centralidade do discurso como prática tem implicações metodológicas e pressupostos éticos inalienáveis. As práticas investigativas fazem apelo a um contacto directo com o terreno; à participação do investigador no mundo de vida dos actores, numa atitude de observação/escuta participante; e ao reconhecimento de que os seus discursos não são mais nem menos válidos e verdadeiros do que os discursos dos demais actores sociais envolvidos no processo de investigação. Este processo é essencialmente uma acção comunicacional e, como tal, o investigador não é o fiel observador e descritor de uma realidade pretensamente objectiva. Ele produz, também, um discurso que pode ser cruzado analiticamente com os discursos dos outros actores sociais. As notas de campo, por exemplo, são discursos do investigador sujeitos, também, ao escrutínio da análise, não podendo, por isso, ser encaradas como factos e provas objectivas inquestionáveis.

O objecto da investigação é, pois, a organização da vida quotidiana no que esta tem de rotineiro e surpreendente; de inconsciente e deliberado; de conflito e cooperação (Blase, 1991), de materialidade e simbolismo. Como sustenta Maffesoli (s/d) a vida de todos os dias é feita de pequenos nadas, mas é com esses pequenos nadas que se faz a trama social. Tal como os fios entretecem os nós para confeccionar tecidos, os pequenos nadas da via quotidiana formam o essencial da trama societal. As revoluções políticas são anunciadas, preparadas e feitas por acontecimentos na aparência anódinos, difíceis, no entanto, de apreender analiticamente.

Os factos sociais da realidade objectiva não são concebidos como externos e coercitivos, mas como o resultado do esforço concertado das pessoas na sua vida quotidiana. É este esforço concertado, ou a «coordenação da acção», no sentido de Thévenot (1993), que constitui o objecto da investigação. São, portanto, os processos cognitivos e as práticas discursivas - enquanto procedimentos, métodos e práticas que as pessoas utilizam na acção e na justificação da acção quotidiana e, como tal, instâncias de autorização e legitimação - que constituem, o objecto de pesquisa, não estando em causa, portanto, o interesse primeiro pelo estudo dos jogos de poder e da racionalidade estratégica dos actores, mas pelo estudo do «raciocínio prático» que as pessoas usam permanentemente na sua vida quotidiana.

Com efeito, grande parte das nossas acções decorre mais de rotinas interiorizadas do que de decisões racionais, planificadas, estratégicas. Aliás, a vida social só é mesmo possível graças à aceitação do que os etnometodólogos designam pelo «princípio etcetera». De acordo com este princípio, todas as situações implicam aspectos incompletos que os participantes ignoram para que a situação prossiga. Vivemos a nossa vida quotidiana apesar de depararmos constantemente com todo o tipo de vazios e ambiguidades e, para ultrapassar estes obstáculos, admitimos situações confusas e informação obscura sem as questionar, esperando que mais tarde essas situações se clarificarão.

Por vezes, um discurso muito racional não é mais do que um exercício de racionalização à posteriori, como tentativa de explicação do acaso, de justificação da rotina e do improviso. Esta racionalidade retrospectiva faz parte da vida social quotidiana, pois esta seria impossível se esperássemos uma clareza total a todo o momento. A acção humana não se rege apenas pela obediência deliberada ou pela resistência estratégica às normas sociais; ela é em grande medida inconsciente e baseada em rotinas. Não são, portanto, as regras, mas o uso prático que os actores fazem das regras que constitui o objecto da análise sociológica.

O estudo da vida quotidiana faz apelo, portanto, a uma «sociologia do quotidiano» (Balandier, 1985) e a um «conhecimento do quotidiano» (Maffesoli, s/d), que é na sua essência uma sociologia da cognição, dado que é a cognição que as pessoas têm da realidade que- interessa à investigação, no pressuposto de que a realidade social não existe sem a cognição que as pessoas têm dela. Nesta perspectiva, o actor é essencialmente um autor social. Primeiro, porque ele não age

apenas; ele autoriza-se, ou procura autorizar-se, pela argumentação; segundo, porque ele é também autor da sua própria vida e da realidade que o envolve, na medida em que participa da sua construção pela prática discursiva. São, portanto, as lógicas argumentativas, através das quais o actor se constrói como autor, autorizando-se discursivamente na prática social, que interessam à investigação sociológica.

Em síntese, trata-se de uma perspectiva sociológica que se interessa mais pela experiência social e pelas ordens justificativas, pois o que está em causa é o enredo das práticas discursivas: É a intriga da acção. É o texto, a narrativa. Como tal, pode entender-se como uma «sociologia cognitiva» (Cicourel, 1979), uma «sociologia da tradução» (Callon, 1986), ou uma «sociologia da experiência» (Dubet, 1994).

Como já foi dito, o investigador também é autor e, como tal, também se autoriza através das suas práticas discursivas. No conjunto polifónico e polissémico das práticas discursivas, o investigador não é necessariamente o maestro. Ele é essencialmente o mediador ou o tradutor das experiências, das linguagens e das justificações múltiplas dos actores sociais envolvidos no processo de pesquisa.

CAPITULO II

A ACENDA DA INVESTIGAÇÃO E O DISPOSITIVO METODOLÓGICO