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George Ritzer (1993) considera que a teoria sociológica dos anos 90 se está a desenvolver em quatro importantes movimentos que prometem ser sumamente relevantes durante os próximos anos: a integração micro-macro, a integração acção- estrutura, as sínteses teóricas e a metateorização em sociologia. Destacaremos os dois primeiros movimentos - integração micro-macro e integração acção-estrutura - por parecerem extremamente sugestivos, do ponto de vista teórico e analítico, para a construção da problemática e do objecto científico deste trabalho.

O movimento interessado na integração micro-macro tem tido os seus principais desenvolvimentos nos Estados Unidos, enquanto que o interesse pela integração acção-estrutura se tem desenvolvido sobretudo na Europa. Embora partilhem preocupações semelhantes, eles não são, no entanto, inteiramente coincidentes. A integração micro-macro surgiu como uma problemática central na década de 80 e continua a assumir grande relevância na década actual. Entre outros, Ritzer (1993) destaca quatro exemplos recentes dos esforços orientados para a vinculação de níveis de análise e/ou de teorias micro e macro: o seu próprio «paradigma sociológico integrado», procurando estabelecer relações dialécticas em todos os níveis de análise social; a «sociologia multidimensional» de Alexander (1982- 83); e outros trabalhos de Wiley (1988) e de Coleman (1986).

Do lado das preocupações com a integração acção-estrutura e com as suas relações dialécticas, Archer (1988) afirma que este tópico corresponde ao interesse básico da teoria social europeia contemporânea. Dentro destas preocupações podem destacar-se igualmente quatro autores - Anthony Giddens (1984), com a teoria da estruturação, cujo núcleo central são as práticas sociais inseridas na dualidade acção- estrutura; Margareth Archer (1988), que procura ampliar o tópico da acção-estrutura para a análise da relação entre cultura e acção; Pierre Bourdieu (1988), que se interessa pela relação entre habitus e campo de acção e pelo conceito de prática

como produto da relação dialéctica entre a acção e a estrutura; e Jurgen Habermas (1987a, 1987b), que se preocupa com os fenómenos do mundo moderno de «colonização do mundo de vida», em que o mundo de vida corresponde a um micromundo de interacção e comunicação entre as pessoas e a colonização ao controlo que no mundo moderno o sistema exerce sobre o mundo de vida, distorcendo essas formas comunicativas.

O que está mais patente neste conjunto de perspectivas teóricas é a tentativa de encontrar uma síntese que ajude a compreender e a desocultar os processos sociais que se encontram nesses cruzamentos entre a liberdade e o constrangimento; entre as sobredeterminações do sistema global e as oportunidades do local; entre as diversas formas de dominação, controlo e racionalização instrumental e as lógicas de acção comunicacional e emancipatória dos actores sociais.

Entre nós, alguns autores têm escrito sobre esta problemática. Rui Canário (1995a) chama a atenção para a necessidade de realização de articulações fecundas entre diferentes níveis de análise e para o interesse da articulação dos conceitos de actor e de sistema, de modo a permitir a análise dos efeitos de constrangimento e de imprevisibilidade dos actores e dos contextos da acção:

«A articulação entre os conceitos de actor e de sistema permite analisar a combinação dos efeitos de constrangimento (que tem a ver com o funcionamento colectivo e global do sistema) e dos efeitos de imprevisibilidade, que decorrem, quer da autonomia (ainda que relativa) dos actores, quer da maneira sempre específica como, em cada contexto singular, estes vários factores se combinam de forma original» (: 104).

Convocando, também, o conceito de autonomia relativa, Licínio Lima (1995) aconselha alguma moderação às perspectivas teóricas mais voluntaristas, que tendem a produzir um discurso da epopeia e a dar do actor uma imagem heróica e omnipotente:

«Conferindo uma "autonomia relativa" à organização escolar contempla-se a importância do Estado e das estruturas macro-sociais, mas contraria-se o monopólio da sua intervenção e as explicações de tipo meramente reprodutivo. Contempla-se, também, por isso, a importância dos contextos locais e organizacionais, e sobretudo dos actores, refreando-se embora perspectivas demasiado voluntaristas que sistematicamente fazem apelo às suas capacidades estratégicas ilimitadas e omnipotentes» (: 23).

O autor defende, por isso, as vantagens de uma abordagem meso da organização escolar que se situe nesses cruzamentos, integrando elementos intermédios, e também intermediários ou mediadores numa espécie de «meio campo»

das visões micro e macro. Na perspectiva de Rui Canário (id.; ib.), os diferentes níveis empíricos não podem ser considerados numa lógica de exclusão. Eles podem constituir-se como distintos «pontos de entrada» para analisar, de ângulos diversos, um mesmo fenómeno.

Aparentemente, estamos perante uma área de consenso teórico. Os autores que referimos convergem, de certo modo, na aceitação do conceito de autonomia relativa, isto é, no pressuposto de que os actores sociais dispõem de margens de liberdade ou de oportunidades de acção e agem num quadro de constrangimentos gerais e de uma racionalidade limitada. Não obstante, a problemática da integração micro-macro e acção-estrutura é atravessada por divergências, sobretudo no que concerne à ênfase que tende a ser colocada num ou noutro nível ou dimensão de análise.

Rui Gomes (1995) põe em destaque algumas destas divergências realizando uma análise «em contracorrente» das crenças que se têm instalado no campo dos estudos da Adminstração e Organização Escolares. Entre outros dilemas e perplexidades, o autor põe em causa a importância que tem sido atribuída aos actores e ao local, em detrimento das estruturas macro-sociais e do Estado, precisamente num tempo de crise dos sistemas educativos em que os grandes problemas são de natureza económica, política e ideológica. Na opinião do autor,

«A teoria e a análise sociológica das organizações e da administração educacional na última década têm vindo a desvalorizar o estrutural em favor do cultural e do simbólico; o macro em favor do meso e do micro; o político-sistémico em favor do não-político-actor; os modos de produção de escolarização do Estado em favor dos modos de vida quotidiana das escolas» (: 315).

Esta análise coloca-se criticamente face a alguns discursos teóricos mais voluntaristas que apelam para a necessidade de intensificar as práticas sociais locais, convocando o indivíduo (actor) para a cena das organizações e ignorando algumas tendências da actualidade de reforço dos mecanismos de controlo junto das escolas e dos professores, porventura de forma menos normativa e compulsiva, mas mais persuasiva. O tom crítico do autor é bem expressivo, portanto, das ambiguidades e divergências escondidas no aparente consenso sobre a integração micro-macro e acção-estrutura. Enquanto que em alguns casos a defesa dessa integração tende a apoiar-se predominantemente em argumentos que realçam as possibilidades e capacidades de autonomia e acção dos actores locais, noutros casos essa defesa

tende a acentuar sobretudo os aspectos estruturais de controlo e sobredeterminação das práticas sociais.

Na perspectiva deste nosso trabalho, o estudo da vida quotidiana não significa uma opção pelo nível ou dimensões micro de análise, tal como, muitas vezes, é entendido. Não significa, igualmente, a valorização das dimensões locais e simbólicas da acção em detrimento das dimensões ideológicas e estruturais. O que está em causa é a prioridade que é dada à descoberta do terreno e às práticas sociais da vida quotidiana (Coulon, 1993), onde estão presentes todas as sínteses e contradições independentemente das escalas, níveis ou dimensões de análise.

Por exemplo, nesta perspectiva «o sistema político e o seu braço secular, o Estado, são (...) devolvidos ao peso e ao lugar dos sistemas empíricos que contêm e que lhes dão vida (Friedberg, 1993:180). Do mesmo modo como acontece noutros sistemas concretos de acção, nestes sistemas não existe uma hiper-racionalidade. As suas fronteiras são também flutuantes; a articulação entre os diferentes organismos, departamentos e serviços é débil; as decisões, os regulamentos, os decretos decorrem da racionalidade limitada dos actores políticos e sociais que as tomam. Nesta perspectiva, a análise do Estado e das políticas públicas exigiria também a confrontação em directo do investigador com esses actores e com os seus contextos empíricos de acção.

Optamos, portanto, por uma perspectiva epistemológica que se define pela descoincidência articulada entre objectos teóricos e objectos empíricos (Correia, 1997a) e que pode tornar possível o estudo do «infinitamente grande» e do «infinitamente pequeno» (Gomes, 1995:317). Trata-se, como diz Correia (1997a) de uma epistemologia sistémica, do acontecimento e da escuta. Sistémica, porque construída na articulação complexa de conceitos tradicionalmente considerados dicotómicos (micro e macro, equilíbrio e instabilidade, ordem e desordem, tradição e mudança, consenso e conflito, etc.) do acontecimento, porque construída no registo das contingências das práticas do quotidiano e não no registo da lei e das estruturas; da escuta, porque construída no registo da justificação compósita (Boltanski e Thévenot, 1991) e, como tal, baseada nas intersubjectividades e não na pretensa

objectividade do olhar do investigador.

É neste sentido que as questões da articulação micro-macro e acção-estrutura se podem tornar intrínsecas ao próprio processo de investigação empírica das práticas

quotidianas. Isto implica que se tomem as práticas e os sistemas locais concretos como objecto de estudo, mas que não se ignorem as dimensões da globalização e das relações dialécticas entre o local e o global. O local está dentro do global, mas o global está, também, dentro do local e é nas suas manifestações concretas quotidianas, nos acontecimentos do terreno da acção, que mora o interesse da análise.