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6. AMOR ROMÂNTICO E RELACIONAMENTO AMOROSO SOB A PERSPECTIVA

6.1 Amor romântico e relacionamento amoroso em desdobramento: as subcategorias analíticas

6.1.3 Dissidência …

romântico, porém não conseguir destituí-las de seu cotidiano:

Eu fico pensando assim… até quando, até quando a gente consegue, até quando eu li o livro da Valeska Zanello, eu fiquei pensando assim que ela fala… é uma eterna vigilância!

Porque, assim, a todo momento a gente tá alternando esses momentos de consciência, de tipo “olha, eu sou uma mulher consciente, adulta, quero construir uma relação saudável com o meu parceiro, com a minha parceira”, mas a todo instante a gente se vê assim pisando em ovos diante dessa ideia de amor romântico (Kênia, áudio/vídeo)

Manter uma atitude de desconstrução face ao amor romântico e relacionamento amoroso é muito desafiador: como Lauretis (1994) nos ensinou, é premente a adoção de uma atitude dialética individual/coletiva que identifique e desnaturalize os produtos diários advindos das tecnologias de gênero em nosso cotidiano.

relacionamento amoroso somente para ser chancelada enquanto namorada/esposa pela sociedade, que se incomoda com a solteirice feminina (ZANELLO, 2018).

Já Carolina identificou-se com o relato de Estela quando ela disse que precisava tornar-se mais mulher e mitigar sua energia masculina excessiva33. Para essa jovem adulta, ela diz estar

“vivendo o eu anterior da Estela”. Compreende nunca saber “qual o limite certo” para ser independente. Ela ressalta ter recebido uma educação focada na construção de sua autonomia, em que “justamente talvez a minha mãe fez isso justamente pra me fazer diferente dela e tudo mais”.

Por essa feita, hoje seus pais dizem que tamanha independência “meio que subiu para minha cabeça, digamos assim, e agora eu não sei mais qual o limite certo de quanto eu deveria ser independente”.

Ambas participantes constroem narrativas focalizando a falta de autonomia materna em relacionamentos amorosos e como receberam uma educação sentimental focada na autossuficiência e na independência, em contrapartida. Pude identificar que esses sentimentos parecem estar deslocados em suas identidades de gênero, seja no sentido de Estela querer resgatar um lócus imaginário do “tornar-se mulher”, seja no sentido de Carolina acreditar que sua independência deva ter um limite. Tal qual apresentado na subseção 6.1.1, o desconforto de ambas ao se reconhecerem com sujeitas independentes conecta-se com o ideal de feminilidade, uma construção estereotipada do vir-a-ser mulher (LAURETIS, 1994; ZANELLO, 2018).

Já durante a Oficina 2, Eva entendeu-se como uma mulher “fora da curva”: ao ouvir Iasmim e Sheila, que disseram ter uma alta identificação com livros de romances, ela se enxergou “um pouco fora desse círculo”, já que “nunca viajo quando leio romances”, em que “nunca fui muito de assimilar esses livros assim com a minha vida”. Ela se denominou como “muito impetuosa” por nunca ter querido seguir um roteiro amoroso designado, via de regra, para as mulheres: “eu morava em uma cidade do interior e eu não queria aquela vida pra mim”. Relatou que “todas as meninas casavam muito jovem, elas só terminavam o segundo grau, em seguida já tinham filhos e eu ficava observando aquilo e não me encaixava naquilo ali, eu ficava pensando ‘eu não nasci pra ser esposa’”.

Após, Kênia narrou aspectos do seu relacionamento amoroso com o ex-marido. Ela nos contou que “embora esse meu marido, muitas vezes quisesse me levar pra esse mundo do romance, sempre eu combatia nas falas dele, nem tanto por ser feminista desde sempre, por desacreditar que

33 O comentário de Estela pode ser observado na subseção 6.1.1, “Tecnologias de gênero”.

isso fosse pra mim”. Com isso, compartilhou sentimentos e reflexões sobre esse fragmento de sua história de vida:

“Aí quando a gente começou a namorar, e eu digo pra vocês que, durante o período que a gente esteve juntos, eu apaixonei, desapaixonei e mesmo assim fiquei junta. [...] Eu acho que eu vivi muito bem com ele, foi um cara que me tratou superbem, me tratava como princesa mesmo, foi um cara em que eu confiava plenamente, cujo amor eu recebia intensamente. Mas assim, nem tudo são flores, né... ao longo do relacionamento, como eu disse, eu me senti muito apaixonada durante alguns períodos, e outros períodos alternava com apreciação, mas não paixão. Aí a gente se separou há cinco anos. Não houve nenhuma traição, ele foi um cara que me chamou pra conversar: ‘olha, acho que a gente tá há muito tempo juntos, não te vejo mais como mulher. Antes de a gente fazer qualquer coisa que magoe, que machuque um ao outro, eu acho melhor a gente se separar’ e tal. Mas, nesse momento, quando ele me pediu a separação, eu estava apaixonada por ele. Então, foi assim um tombo pra mim, né. Mas eu já estava em contato com algumas leituras de feminismo e tal. E eu entendi na época que o amor deixava ir, e o amor que eu sentia permitia o outro ir e fazer aquilo que ele quisesse, viver livremente e tal (Kênia, áudio/vídeo)

A dinâmica do relacionamento de Kênia com seu ex-marido mostrou-se dissidente das características do amor romântico, que se pretende constante e initerruptamente arrebatado, intenso e acalorado desde o início do relacionamento amoroso até o fim da vida (ACTIS; CREMONA;

GARIGLIO, 2018). Ao contrário, a narrativa de Kênia conecta-se ao pressuposto do amor confluente e do relacionamento puro (GIDDENS, 1993), em que se percebeu que o relacionamento amoroso foi finito e durou à medida que fizesse sentido para os envolvidos da relação, tanto que Kênia, mesmo devastada, compreende que a atitude mais sensata é deixar seu ex-companheiro seguir a vida e não defender um relacionamento amoroso a qualquer custo: ao contrário do apego do amor romântico, “o amor verdadeiro significa que também desejamos a felicidade de outra pessoa – estando ao nosso lado ou não” (NOGUERA, 2020, p. 101). Ademais, o amor vivido por ambos é flutuante e acompanha a rotina das partes, que ora podem se sentir mais ou menos envolvidos.

Rosana expõe que “particularmente não gostava desses filmes de romance, aquela coisa melosa”, em que ela não se “imaginava naqueles filmes”. Todavia, foi “nesse meu relacionamento que foi até o casamento, foi nesse casamento que eu aprendi a ver o amor só que na forma amorosa e aí eu já gostava de assistir os filmes românticos com ele”. Para ela, foi como “se tivesse aberto os meus olhos para esse novo mundo que eu não queria”:

Eu acho que, por conta do meu histórico familiar, da minha mãe, então eu meio que tinha uma certa barreira, não gostava. Esse tipo de assunto, muito meloso, muito romântico,

assim pra mim não me atraía, mas depois eu comecei a olhar, comecei a gostar, mas que também pesa um pouco, porque a gente olha, assiste aqueles filmes, e cê fala: “nossa, é desse jeito?”. E na prática, na vida real, nem sempre é daquele jeito, aquela sequência bonitinha, que vai e tem aquela troca de olhar, que o homem faz tudo. Aí você fala: “uai, gente, não, na prática…” (Rosana, áudio/vídeo)

Outro aspecto interessante relativo a essa subcategoria é pensar sobre o fato de Kênia, Rosana e Estela, apesar de pouco ou nada se reconhecerem nas narrativas de amor romântico, cada uma por razões individuais e/ou sociológica, não só foram de alguma forma interpeladas por elas à revelia em algum momento de suas vidas, mas também sofreram com suas armadilhas desempoderadoras (no caso de Rosana, quando constatou que a performance de amor romântico é insustentável no cotidiano, tendo contribuído para o fim de seu casamento, e de Kênia, quando se sente frágil em contextos amorosos34), ou violentas, no caso de Estela, quando vivencia em um relacionamento abusivo.

Refletir sobre esse aspecto só demonstra a capilaridade e a infiltração do amor romântico com pilar substancial da configuração subjetiva das mulheres, mesmo para aquelas que conscientemente não se identificam com ele.