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6. AMOR ROMÂNTICO E RELACIONAMENTO AMOROSO SOB A PERSPECTIVA

6.2 A produção de discursos sobre si face aos conceitos de amor romântico e relacionamento

6.2 A produção de discursos sobre si face aos conceitos de amor romântico e relacionamento

Sobre a afirmação “a”, compartilho os resultados da pesquisa produzida por Amorim e Stengel (2014) a partir da realização de entrevistas com um casal lésbico e um casal heterossexual pertencentes à classe média de Belo Horizonte, em Minas Gerais. O objetivo da pesquisa foi compreender se há reprodução de valores tradicionais atribuídos à conjugalidade e ao ideário romântico ou se há espaço para reelaboração a partir de uma ideia de customização. A produção de dados revelou que a relação amorosa concebida pelo casal heterossexual, que também seguia a religião cristã, era pensada e sentida a partir do amor romântico: aquela que dura a vida inteira, desenhado para ser dividida e compartilhada na alegria e na tristeza, a partir da fundição entre o

“eu” e o “tu”, formando um “a gente” mediante fusão de afinidades e realização de concessões.

Ressalta-se que os sentimentos de ternura, amizade e companheirismo são destacados para compreender essa relação; da narrativa produzida pelas mulheres lésbicas depreende-se o quão prazeroso para elas é estarem juntas, em que o desejo é um fio condutor para construção de planos de curto e médio prazos para o futuro, esses sempre expressados de modo fluido. Este relacionamento amoroso foi narrado por ambas no presente, em que só faz sentido ser mantido enquanto for bom para ambas. Com isso, a narrativa de amor parece distanciar-se do ideário romântico, isto é, ela não se pretende eterna e estabelece-se na conveniência de benefícios mútuos para as partes. Ao mesmo tempo, as noções de companheirismo também estão presentes na experiência amorosa deste casal lésbico, em que suas subjetividades serão transformadas, porém não amalgamadas, como no caso do casal heterossexual. Sendo assim, a pesquisadora e o pesquisadores concluem que há espaço para a customização do amor, apesar do forte ideário do amor romântico presente em nossa sociedade.

Apesar de o artigo supracitado não tratar propriamente da temática da violência, percebe-se na relação sáfica relatada componentes de um relacionamento amoroso muito próximo ao que Giddens (1993) nomeou por relacionamento puro, medido pelo amor confluente. Em tese, esses modelos de amar e relacionar-se oferecem mais proteção, liberdade e igualdade, prevenindo desempoderamentos e violências direcionadas às mulheres.

No que concerne à afirmação “b”, relembro a reflexão de Cátia (Oficina 0), uma mulher cisgênero bissexual, quando ela se questionou, diante dos relatos de violência produzidos durante seu encontro, se seria possível sentir-se bem ao desenvolver relações com homens43. Compreendo

43 A reflexão de Cátia faz parte da construção de conhecimento elaborada pelas participantes relativa à subcategoria analítica “Desconstrução”, subitem 6.2.1

que Virgínia, ao elaborar sua reflexão, vai além de Cátia e escancara a responsabilização do cisheteropatriarcado sobre o adoecimento feminino de relacionamentos amorosos (ZANELLO, 2018; COSTA et al., 2016; DÍAZ et al., 2019; MORAGA et al., 2018)

No que diz respeito à categoria de raça/cor, Kênia (Oficina 2), uma mulher cisgênero preta adulta heterossexual, afirmou que não acreditava que as narrativas de amor romântico apregoadas pelas mídias pudessem se concretizar em sua vida pela sua condição de mulher negra:

Eu acho que na vida eu nunca tive assim… embora eu tenha tido uma formação sentimental modelada por novelas, por filmes, por romances, que também sou da literatura, eu acho que eu não acreditava que eu pudesse vivenciar um negócio desse por conta da minha condição de mulher negra. Eu nunca acreditei assim… na minha família, as pessoas tinham uma expectativa assim de que eu casasse, uma família cristã, evangélica, mas eu nunca acreditei nisso de fato, de que isso pudesse acontecer comigo, porque desde criança assim, eu tinha muito consciência de que eu não era igual e de que as pessoas me tratava de maneira diferente. Então, eu nunca tive esse sonhozinho de casar, eu não casei oficialmente, a gente teve um relacionamento que foi uma união estável e tal (Kênia, áudio/vídeo)

É importante ressaltar que o Capítulo 2 forneceu considerações iniciais sobre a operação do racismo estrutural em uma das instâncias mais sutis e poderosas da vida humana: os afetos. Apesar de o amor romântico apregoar um conjunto de valores desempoderadores e/ou violentos para mulheres, não se sentir nem sequer representada em narrativas comuns sobre amor e afeto é um fato social estruturado pelo racismo, em primeiro lugar, sendo ele ainda mais destrutivo em combinação com demais marcadores sociais da diferença.

Pereira (2019) retrata faltas, apagamentos, violências e também as potências imbricadas no contexto afetivo-amoroso-sexual das histórias de vida de mulheres negras participantes de sua pesquisa de doutorado. Dada a complexidade da produção de dados dessa pesquisa, trago resumidamente eixos da tese da pesquisadora que ajudam a situar o discurso sobre si produzido por Kênia.

A participante afirmou ter sentido sua subjetividade moldada por tecnologias de gênero em direção ao amor romântico desde criança, porém não se reconhecia nele. Diante de tal afirmação, há um subtexto em sua fala que nos conecta a baixíssima ou inexistente falta de representações positivas e respeitosas de mulheres negras nas mídias, sobretudo vivendo relacionamentos amorosos saudáveis, durante as décadas de 1980, 1990 e 2000, período no qual Kênia vivenciou sua infância e o início da adolescência. Pereira (2019) comenta sobre o papel da televisão e das novelas ao refletir sobre como essas tecnologias raciais e de gênero endossaram a percepção de

beleza associada à brancura e do ideal da mulher bela relativo à mulher branca, magra, jovem e loira, algo também visto com Zanello (2018). Ademais, pondera sobre a hiperssexualização da mulher negra, situada sempre no espaço da amante, da ficante, do caso, do enrosco e (quase) nunca em uma relação afetiva oficial, tanto nas telas quanto na vida. Ainda, nos casos dos relacionamentos amorosos oficiais, quando existem, processam-se por meio da exploração das tarefas de cuidado e/ou financeira das mulheres negras, bem como são marcadas por episódios de desprestígio, humilhações e violências.

Ainda com Pereira (2019), as entrevistas realizadas com as participantes negras de sua pesquisa, à luz de literatura especializada sobre o tema, ilustraram as “repetidas situações de rejeição e solidão” (ibidem, p. 119) as quais estão sujeitas essas mulheres. Kênia compreende ter sido tratada diferente na sua condição de mulher negra, deixando implícita uma condição de, no mínimo, desfavorecimento do seu “eu” em situações sociais vivenciadas desde a infância, informado por raça/gênero. Ademais, relembro que os aspectos associados ao termo “solidão da mulher negra”, abordados no Capítulo 2 dessa dissertação, são importantes para refletir sobre a fala dessa participante.

Além disso, Kênia ainda relatou ter sido rejeitada pelo rapaz que, anos depois, tornou-se seu marido, vivenciando uma experiência de rejeição/solidão, tal como comentado anteriormente:

eu o conheci nessa época e eu fui rejeitada, ele não me quis. 5 anos depois, já eu terminando a graduação na UnB, eu reencontro com ele um ano antes, cerca de um ano antes, um semestre antes de eu me formar, eu me reencontro com esse cara e a gente começa a namorar e dali veio o casamento. A gente ficou juntos por quase dez anos (Kênia, aúdio/vídeo)

Associo tal fala ao comentário de Iasmim (Oficina 1), uma mulher cisgênero branca adulta, a qual relatou não ter tido dificuldades em iniciar relacionamentos ou encontrar namorados. Apesar dos dados incipientes, com duas falas que envolvem direta e indiretamente a questão racial, reflito que, enquanto uma mulher branca relatou ter sido facilmente escolhida em namoro, Kênia não só não acreditava que o amor romântico não caberia em sua vivência, como também relatou tal experiência de rejeição. Adicionalmente, também nos contou não ter tido “nenhum envolvimento afetivo, amoroso com nenhum rapaz” até os 17 anos, de modo semelhante à Nina e Berenice, participantes da pesquisa de Pereira (2019), que “vivenciaram as suas primeiras experiências afetivo-sexuais um tanto mais tarde do que as suas colegas brancas” (ibidem, p. 160).

Remeto essa intelecção a duas reflexões teóricas: primeiro à metáfora da “prateleira do amor” (ZANELLO, 2018, n.p), explicitada no Capítulo 3 dessa dissertação, e segundo ao argumento de Pereira (2019) sobre o fato de que “laços afetivos-sexuais são constituídos por meio de dinâmicas sociais” (ibidem, p. 142), em que mulheres brancas são escolhidas para relacionamentos amorosos, em desfavor de mulheres negras, sobretudo as retintas, uma vez que o colorismo pode favorecer mulheres negras pardas, por carregarem alguns signos próximos da branquitude.

Ressalvo que, apesar de serem duas histórias individuais, marcadas pela facilidade amorosa para uma e a rejeição amorosa para outra, nas quais essas situações específicaspodem não ter acontecido nesses casos concretos por questões étnico-raciais, deixo aqui essa reflexão sobre o tema.

6.3 A produção dos dados a serviço da percepção de diversidades e diferenças emergidas