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6. AMOR ROMÂNTICO E RELACIONAMENTO AMOROSO SOB A PERSPECTIVA

6.1 Amor romântico e relacionamento amoroso em desdobramento: as subcategorias analíticas

6.1.8 Superação de dificuldades em casal …

A superação de dificuldades em casal enquanto subcategoria emergiu na Oficina 1 a partir da interação entre duas participantes (Lucrécia e Iasmim) e pontualmente na Oficina 2, mediante intervenção de Iasmim, ao narrar sobre seu objeto (algema).

Lucrécia nos contou que está em um “relacionamento estável” há 24 anos, “dos quais 10 eu namorei e eu sou casada há 14 anos”. Ressalta que “quando eu penso no início do meu casamento, quanto tivemos algumas situações, talvez se eu tivesse a mentalidade que eu tenho hoje, eu não teria levado em conta tantas coisas pra fazer o casamento dar certo”. Reforçou que a “incumbência enquanto mulher, e a forma como a gente foi criada” foi um fator importante para que ela ficasse nessa relação apesar das dificuldades.

Tais “modelos que nos são impostos em fazer valer” o casamento a fez refletir sobre a opinião da sociedade sobre terminar um casamento em conflito logo após a realização da cerimônia.

Assim, Lucrécia nos disse: “nossa, você já acabou de casar e você vai se separar? E você não vai tentar? E você não vai lutar sobre isso?”. Com isso, novamente reforça: “talvez se eu tivesse a cabeça que eu tenho hoje eu não teria feito tanto esforço pra fazer esse relacionamento ter ido em frente”. Depreendo do discurso de Lucrécia o quão desafiador foi para ela lidar com as adversidades do casamento à medida que hoje identifica o peso do papel social colocado sobre as mulheres como maiores responsáveis por consertar relacionamentos e/ou parceiros.

Todavia, Lucrécia afirma: “já que estamos falando de amor romântico, vamos colocar uma pitada nisso tudo aí”. A seguir, coloca: “foi uma oportunidade de crescimento muito grande dos dois lados e essa minha mudança de postura também fez com que de alguma forma meu parceiro se transformasse nos posicionamentos dele, na conduta dele”. Ao justapor “amor romântico”,

“oportunidade de crescimento” e “mudança de postura”, parece-me que Lucrécia ao mesmo tempo identifica a dimensão sacrificial do amor romântico e produz sentido para a sua escolha em ter ficado nesse relacionamento quando denota o aspecto de superação de dificuldades no casamento, realçando as mudanças comportamentais de seu marido à medida que também adotou uma visão mais desconstruída sobre amor romântico e relacionamento amoroso.

A superação de dificuldades em casal vivenciadas por Lucrécia e seu companheiro dialogam com Noguera (2020) quando o filósofo ressalta que o amor experimentado em um relacionamento afetivo-íntimo frutifica onde não existe estagnação e ilusão, ao passo que se relaciona com a paciência e à estratégia, já que “é preciso planejamento para conseguir aquilo que se quer” (ibidem, p. 121). Ou seja, as pessoas mudam ao longo da vida, assim como seus pensamentos e sentimentos. Portanto, é essencial compreender que o amor “só prolifera na abertura às mudanças” (ibidem, p. 99).

Já Iasmim, inspirada na fala de Lucrécia, denota que tem “9 anos de relacionamento, em que foram 5 anos namorando e 4 de casada”. Ela nos conta que o “marido é muito tranquilo, mas eu vejo muito machismo, então é uma construção diária”. Ressaltou que essa situação “dá muito trabalho”. Rememorou que, no início do relacionamento amoroso, seu então namorado dizia que era “feio mulher beber, é feio mulher xingar, então é uma desconstrução”. Assume que “tem hora que a gente fica tão de saco cheio dessa desconstrução, né, que a gente fala ‘meu Deus!’”.

Iasmim denota que a reprodução de comportamentos machistas por parte de seu marido está inserida no “contexto da sociedade machista”, em que homens “foram criados assim, as próprias mulheres criam homens assim”. Portanto, “é difícil assim lidar com essa sociedade patriarcal justamente por isso, porque é uma sociedade inteira”. Ressalta que o “machismo tóxico é ruim até pra eles também”.

Ao ter em vista essa conjuntura, Iasmim conclui que vê “isso no meu relacionamento mesmo todos os dias, é um diálogo, é como se fosse uma criança, só que ele é muito tranquilo, então ele escuta”. Para exemplificar o processo de desconstrução movimentada entre ela e o marido, narra um episódio onde houve uma traição entre um casal de amigos de seu marido, em que a esposa traiu o esposo. O marido traído virou chacota no grupo de amigos. Ao identificar esse comportamento de escárnio frente ao homem traído, Iasmim relata ter assumido uma postura pedagógica:

Então, até assim comentários que ele faz, assim de, ah, casal de amigos dele separou porque a mulher traiu, aí eu falo “bem feito!”, porque os meninos tão rindo, mas o cara não valorizava a mulher, o cara batia na mulher, então eu tento falar pra ele “amor, vamos analisar o contexto?”, então é como se tivesse educando uma criança, porque é um processo muito longo de desconstrução. E aí eu vejo assim no caso dele que é tranquilo, então imagina o homem que não é tranquilo? E aí começa briga, começa confusão, não aceita, porque se eu virar pra ele e falar “vou sair”, “tô saindo com as minhas amigas” e ele falar “não vai” e eu falar “vou sim”, e ele vai ficar de boa (Iasmim, áudio/vídeo)

Ao final, Iasmim fala que vivencia “um relacionamento de desconstrução”: da sua parte, ela tenta “quebrar essa questão religiosa”41; da parte de seu esposo, é necessário “quebrar essa questão machista”, em que “até que a gente consegue fazer isso bem”.

Percebe-se que a situação de desconstrução acionada na relação íntima de Iasmim ativa o chamado dispositivo materno da participante (ZANELLO, 2018), conceito a ser esmiuçado na seção seguinte. Nesse sentido, Iasmim carrega mais um fardo em tomar para si a responsabilidade pedagógica em promover letramento antissexista em seu relacionamento amoroso, tanto que há um cansaço envolvido na ação, ao dizer que fica de “saco cheio” com tal situação. Concomitantemente, seu cônjuge lucra em dobro: (a) é chancelado por fazer comentários sexistas, já que a culpa de suas atitudes advém do cisheteropatriarcado (e até das próprias mulheres que criam homens dessa forma!) e (b) é escusado por sua esposa, que assume a tarefa de educá-lo. Ou seja, não se depreende

41 A narrativa de Iasmim sobre como a religião cristã afetou sua vivência e a moldou no sentido do amor romântico está inscrita na seção “6.1.6. Religião cristã”.

do discurso de Iasmim que haja (auto)responsabilização pelos atos machistas promovidos por seu marido.

Assim sendo, aparenta que o esforço de desconstrução acontece externamente (via Iasmim) e não internamente (seu marido), o que impossibilita, em última instância, de que este homem torne-se nosso aliado na luta em combate às desigualdades de gênero: em primeiro, conscientizando-se; em segundo, apontando comportamentos e atos machistas entre outros homens (ZANELO, 2020). Ademais, é necessário colocar que o cisheteropatriarcado também ordena violências contra os homens. No entanto, isso é diferente de autorizá-los a realizar ações sexistas, à espera de alguém que possa letrá-los no combate a essa e às demais opressões sociais.

Durante a Oficina 2, quando apresentou a foto com o seu marido, Iasmim compreendeu o seu relacionamento amoroso rumando “a toda essa desconstrução, porque foi desconstruído junto com ele também, eu vejo mais como uma liberdade, uma parceria, uma cumplicidade, então eu vejo totalmente diferente”. Nesse sentido, a própria Iasmim diferencia o que ela vive hoje face aos ideais de amor romântico quando diz: “então eu creio que foi mais ou menos esse caminho que eu trilhei, então desse amor romântico, porque vem da criação, percebendo que esse amor era uma algema e desconstruindo isso”.

Diante do subtexto depreendido do discurso de Iasmim durante a Oficina 1, percebo que a desconstrução emitida durante a Oficina 2 tornou-se um horizonte de esperança onde os valores de liberdade, parceria e cumplicidade possam se realizar plenamente, na esteira de que tal movimento

“pedagogizante” complete seu ciclo e o machismo de seu marido seja finalmente mitigado. Em última análise, a desconstrução é aqui um novo nome para o antigo discurso de que é responsabilidade das mulheres esculpirem homens rumo à sua redenção (ZANELLO, 2018).