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Distanciamentos e aproximações de estudos sobre os letramentos dos modelos seminais

Módulo III Atividades práticas

3 RELAÇÕES ENTRE LETRAMENTOS, ENSINO DE ESCRITA E TECNOLOGIAS

58 Adiante, cito os gêneros do discurso legais Para melhor entendimento, Diretrizes Nacionais para a Educação

3.3 O problema da tipificação dos letramentos

3.3.3 Distanciamentos e aproximações de estudos sobre os letramentos dos modelos seminais

Embora a distinção entre os modelos de letramento e ideológico tenha sido proposta por Street (1984), o autor retoma a distinção para esclarecer, uma vez mais, que não se trata de uma “dicotomia de campo” e que “todos os modelos de letramento podem ser entendidos como um arcabouço ideológico e que só na superfície os modelos chamados ‘autônomos’ parecem ser neutros e imparciais”. (STREET, 2014, p. 161) Apesar de concordar com Street, mantenho os dois termos apenas para situar que estudos se aproximam mais fortemente de um ou de outro modelo, entendendo que essa discussão pode contribuir para a defesa de que é relativa e pouco produtiva a tipificação dos letramentos.

70 Comentário constante na revisão do Capítulo teórico, pós-exame de qualificação, numa reunião de orientação

Para mostrar a aproximação ou o distanciamento dos (1) estudos sobre práticas de

letramentos conforme o contexto, selecionei o trabalho de Lea e Street (2010).

Adentrando numa reflexão dos letramentos em contextos escolares, Lea e Street (2010) apresentam três modelos de letramentos. Condizente com o discurso oficial para o letramento, a visão de escrita como produto dialoga com (1) o modelo das habilidades cognitivas, que busca, como o próprio nome diz, desenvolver habilidades cognitivas para o exercício de práticas de leitura e de escrita (ibidem). A promoção do contato com diferentes gêneros do discurso ao longo dos anos de escolaridade como forma de aprender uma prática letrada/escrita também dialoga com (2) o modelo da socialização acadêmica. Assim, o aprendente, ao tomar contato com diferentes gêneros do discurso de determinada esfera discursiva, tornar-se-ia capaz de produzir novos gêneros do discurso que essa esfera dele exige. Esse processo de apropriação/produção de novos gêneros, nessa nova esfera, seria possível dado o contato do escrevente com outros gêneros em outros eventos de letramentos (idem).

Os modelos 1 e 2 são representativos do letramento autônomo. Em ambos, encontram- se: a) a noção de escrita como produto e b) a proposição de práticas de leitura e escrita que, a rigor, ocorrem apenas no interior da escola. O modelo 2, apesar de se pautar na socialização – que poderia remeter ao ideológico –, pressupõe que uma etapa anterior foi concluída e que aprender a produzir um novo gênero que circula na nova esfera discursiva é possível desde que o aluno tenha contato com ele.

Nos estudos dos Novos Letramentos, Lea e Street (idem), a partir da análise desses dois modelos, propõem (3) o modelo dos letramentos acadêmicos, que seria uma espécie de conjunção e sobreposição dos dois anteriores. Essa sobreposição, no dizer dos autores, pode contribuir para que o professor, no ensino de produção de textos, considere não apenas aspectos linguísticos da superfície do texto, mas também uma análise da trajetória de aproximação do escrevente com novos gêneros em novos e situados contextos.

Considerando a universidade e a escola da Educação Básica como agências de letramento,71 esses autores defendem o modelo de letramentos acadêmicos como uma proposta

de reflexão sobre o letramento acadêmico, extensivo à educação básica. Por um lado, é relevante o posicionamento dos autores quanto à necessidade de discutir com os estudantes universitários o processo de escrita e de o professor oferecer o feedback. De outro, porém,

71 Conforme Kleiman (1995, p. 20), diferentes agências de letramento contribuem para os letramentos do indivíduo

na sociedade. Opto pela noção de esfera discursiva e não pela de agência de letramento por entender que o conceito permite discutir as relações entre os sujeitos que dela participam. As esferas escola e família promovem o contato do sujeito com práticas orais/faladas e letradas/escritas de variadas esferas.

entendo que a proposta, ao retornar para o interior da própria instituição de ensino, filia-se ao modelo autônomo de letramento e, em consequência, aos letramentos dominantes. Note-se que esse modelo procura situar a produção de texto a partir da análise de textos produzidos pelos escreventes no contexto universitário, mas buscando torná-los escreventes competentes dentro de parâmetros indicados, explícita ou implicitamente, pela (e para a) instituição de ensino em que estão estudando ou em que pretendem estudar. Mesmo explicitando os parâmetros, a opacidade da linguagem e a enunciação, processo nunca repetível, conforme Bakhtin (2011), fazem com que uma prática de letramento seja sempre outra, não sendo possível repetir, com as mesmas nuanças, o processo de produção da escrita de um gênero. A produção de um (novo) gênero ocorreria em um novo momento, em que outras condições estariam presentes, incluindo, outro sujeito e outro(s) destinatário(s).

Lea e Street (2010) defendem a novidade do terceiro modelo por inserir questões de poder e de identidade e a agência de letramento, a instituição escolar no caso, como fatores que influenciam práticas de escrita do escrevente, conscientizando-o de variáveis e conflitos que possam advir de tais práticas. Ainda que o terceiro modelo seja um avanço em relação aos dois primeiros modelos, ele se aproxima da concepção de letramento ideológico, não se constituindo, necessariamente, em um novo conceito/modelo. A questão a ser discutida, a meu ver, não seria o grau de novidade do modelo como propõem os autores, mas se a proposta não estaria mais relacionada a um possível imbricamento dos dois modelos seminais.

A proposição desse terceiro modelo parece delinear o reconhecimento desses autores quanto ao processo por que passa o aprendiz na escola, ou seja, o código escrito precisa ser aprendido, e o indivíduo precisa ter contato com diferentes práticas de letramentos. Satisfeitas essas duas condições, caberia à escola organizar seu trabalho com base no terceiro modelo. Dessa forma, o modelo de letramento acadêmico, proposto por Lea e Street (idem), contaria com uma visão pragmática pontual envolvendo os participantes das práticas escolares. Para tanto, o professor deveria explicitar tudo quanto fosse exigido numa determinada prática de escrita de que o aluno fosse participar. Contudo, um problema se delineia: ao propor uma técnica, um procedimento, não estaria este novo modelo tentando tratar de forma transparente um processo opaco por sua natureza? E mais: em se tratando de ensino de práticas de leitura e de escrita, que papéis estão sendo atribuídos ao professor e ao aluno e que posições enunciativas esses sujeitos assumem nesse processo?

Para a análise dos (2) Estudos sobre os letramentos de grupos sociais em relação ao distanciamento ou aproximação dos modelos seminais, optei pela pesquisa de Souza (2009) que trata dos letramentos na e da cultura hip-hop.

Bakhtin, Estudos Culturais e os Novos Estudos de Letramentos fundamentam a investigação de Souza que busca compreender quais (e como) práticas de leitura e escrita, inclusive as escolares, são significadas pelos movimentos sociais negros. Letramentos de reexistência são definidos pela autora como práticas de leitura e escrita no universo hip hop de ques “os sujeitos participam e [...] desenvolvem práticas culturais específicas de leitura e de escrita, de acordo com as orientações, objetivos e necessidades de suas ações comunitárias”. (SOUZA, 2009, p. 25)

As experiências educativas dos sujeitos na escola e nos movimentos são engendradas e tornam-se próprias do universo hip hop. Segundo a autora, as práticas orais e escrita do cotidiano dos movimentos sociais negros são multimodais, heterogêneas, críticas e não-lineares e configuram os letramentos múltiplos relacionados à identidade dos jovens negros que ora refutam, ora se utilizam dos letramentos dominantes no tenso jogo entre escola e universo hip hop, entendidos em sua pesquisa como agências de letramentos. Ainda que aparentemente próximos, defende que letramentos de resistência estão para práticas de leitura e escrita no campo da conservação, da preservação e não sucumbência a um outro – opressor e que Letramentos de reexistência estão para a presença, para o ser (e não o estar) na vida.

A análise de Souza indicia como sujeitos constroem suas identidades pelo uso da linguagem transitando entre as esferas discursivas escola e universo hip hop. Apesar de não se constituir objetivo da pesquisadora analisar os gêneros do discurso fanzine, batalhas, rap, grafite e a capa de um CD para uma reflexão sobre como ensinar esses gêneros, penso que compreender os gestos do escrevente em cada gênero pode contribuir para a inclusão de práticas de leitura e escrita que não sejam tão-somente as dos letramentos dominantes. No âmbito da formação docente (inicial e em serviço), uma reflexão sobre o modo como a escola refrata e trabalha (ou não) as práticas orais e escritas do universo hip hop pode suscitar uma ressignificação de práticas docentes cristalizadas, não apenas em escolas com a presença da população negra, mas em toda escola que, na responsividade – conceito bakhtiniano, valoriza pessoas e culturas múltiplas.

A opção de Souza pelo termo letramentos de reexistência em vez de letramentos de resistência indicia o sujeito sócio e historicamente constituído a se reinventar, sem contudo, pôr ao largo toda a história da existência do negro na sociedade. Esse movimento da pesquisadora se aproxima do modelo de letramento ideológico, que “reconhece que as práticas de leitura e escrita estão sempre inseridas não só em significados culturais, mas em alegações ideológicas sobre o que conta como “letramento” e nas relações de poder a ele associadas” (STREET, 2014, p. 13) (Aspas no original)

A pesquisa de Souza é representativa para mostrar as forças centrífugas e centrípetas em práticas de letramento na escola e o trânsito do discurso oficial entre os dois modelos seminais. Gêneros da cultura hip hop dificilmente são trabalhados na escola. Um dos motivos é o ensino de gêneros escritos na variedade padrão como função primeira da educação formal. Outro é a dificuldade de a escola inserir práticas de leitura e escrita de grupos sociais minoritários em função dos letramentos dominantes visto que o Poder Público engendra discursos vários, mas põe relevo no letramento autônomo.

O discurso oficial sobre os letramentos e o discurso dos letramentos dominantes são representativos do movimento, no fio do discurso, do Poder Público entre os dois modelos. Os dois discursos ora se alinham, ora se distanciam conforme os sujeitos e instituições que representam nas relações de poder que atravessam práticas de letramento dentro e fora da escola e a atividade ser professor. Um exemplo relativamente recente seriam políticas públicas na Educação Básica objetivando a valorização de identidades locais, sociais e multiculturais. A polêmica do “Kit gay”,72 em 2011, é ilustrativa dessa questão: de um lado, o poder público ensaia gestos para a inclusão do tema nos espaços escolares procurando combater o preconceito contra homossexuais. Em direções diversas, segmentos da sociedade assumem discursos de recusa (total ou parcial) à proposta do governo. Ainda que o gesto do Poder Público encaminhasse para o modelo de letramento ideológico, esses segmentos, atuando como forças centrípetas, acabam fixando que práticas orais/faladas e letradas/escritas podem circular no espaço escolar, quais sejam, as representativas dos letramentos dominantes.

No tocante aos (3) estudos sobre práticas de letramentos conforme o suporte ou a

tecnologia utilizada, selecionei a pesquisa de Bomfim e Gonçalves (2014) que discutem “a

produção hipertextual construída colaborativamente [...] utilizando como ferramenta a tecnologia wiki”. (2014, p. 824) Os autores analisam a produção colaborativa do gênero do discurso artigo de opinião por alunos do Ensino Médio. Além das funcionalidades da ferramenta digital wiki, os autores apresentam “possibilidades de reescrita na web mapeadas na literatura da área”. (p. 824) Dentre elas, destacam: “apagamento da informação apresentada; expansão da informação solicitada; correções linguístico-discursivas; utilização de mecanismos supratextuais; além de inserção de imagens e hiperlinks.” (Idem, p. 830) A partir dessas possibilidades são analisadas as intervenções e contribuições dos alunos nas diferentes versões do texto colaborativo. Os sujeitos da pesquisa apagam partes do texto, fazem supressões e