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Módulo III Atividades práticas

3 RELAÇÕES ENTRE LETRAMENTOS, ENSINO DE ESCRITA E TECNOLOGIAS

58 Adiante, cito os gêneros do discurso legais Para melhor entendimento, Diretrizes Nacionais para a Educação

3.3 O problema da tipificação dos letramentos

3.3.1 Os modelos seminais de letramentos

Apesar de inicialmente Street trabalhar com a noção de letramentos múltiplos, o autor (2003, p. 01)67 “faz a distinção entre os modelos de letramento autônomo e ideológico” e

“desenvolve a distinção entre eventos e práticas de letramento”. A noção de letramento

autônomo decorre da distinção entre escrita e oralidade, com valorização da primeira, que pode

ser universalizada, padronizada. Segundo Street (1984, p. 19-20), a visão forte desse tipo de letramento valoriza a escrita e o desenvolvimento de habilidades cognitivas, ao mesmo tempo em que privilegia apenas práticas letradas consideradas de prestígio. Nesse modelo, “letramento é uma coisa autônoma, separada e cultural; que teria efeitos, independentemente do contexto” (STREET, 2010, p. 36). No letramento autônomo, tal como a língua padrão ficcionalmente homogênea, inexistem variedades de letramentos. Assim, um único material didático para alfabetização pode ser usado indistintamente para qualquer grupo social, de qualquer região do país e de qualquer cultura.

Kleiman (1995, p. 22) delineia três características do modelo de letramento autônomo: 1) a correlação entre a aquisição da escrita e o desenvolvimento cognitivo; 2) a dicotomização entre a oralidade e a escrita; e 3) a atribuição de ‘poderes’ e qualidades intrínsecas à escrita e, por extensão, aos povos ou grupos que a possuem. A autora ainda aponta que esse tipo de letramento leva a práticas de letramento focalizadas na produção de textos, centrados nas tipologias exposição e argumentação. Análise que está em consonância com o discurso oficial sobre os letramentos, que se aproxima mais da noção de letramento autônomo e encontra solo fértil na escola em que ensinar a escrever é ensinar gramática, é ensinar dissertação para o aluno passar no vestibular. Penso que um outro aspecto a considerar no modelo autônomo está no fato de que, voltando-se para o interior da própria instituição de ensino e valorizando um certo tipo de escrita, o preconceito linguístico e social acaba por encontrar terreno fecundo. Por essas vias e outras, como a mídia, por exemplo, práticas discursivas se cristalizam na sociedade: a reificação da escrita se dá em função da crença de que: (1) a escrita, sendo produto e um modelo a ser seguido, possibilita o controle dos sentidos; (2) a escrita é planejada e ordenada, mas a oralidade não seria; e (3) indivíduos e comunidades que não dominam a escrita são primitivos.

67 Tradução livre do texto de Street (2003) com adaptações. Trecho original: “My own work, for instance, begins

with the notion of multiple literacies, makes a distinction between ‘autonomous’ ad ‘ideological’ models of literacy (Street, 1984) and develops a distinction between literacy events and literacy practices.”

No modelo ideológico, segundo Street (2010), há variedades de letramentos. Não há neutralidade no(s) letramento(s). Pessoas se utilizam dos letramentos para categorizar a si mesmas e aos outros. Assim “selecionar só uma variedade de letramento [para ensinar] pode não ter os efeitos que se espera”. (STREET, 2010, p. 37) No modelo autônomo, impõe-se uma cultura, um letramento (STREET, 1984). O modelo ideológico, por sua vez, “oferece uma visão culturalmente mais sensível das práticas de alfabetização que variam de um contexto para outro”.68 (STREET, 2003, p. 02)

Partindo das relações entre língua, letramento e sociedade, Street (1984) defende que práticas de letramentos (no plural) “mudam conforme o contexto” (KLEIMAN, 1995, p. 39). Entram em jogo aspectos da cultura e das relações de poder que se relacionam aos “correlatos cognitivos da aquisição da escrita” (Idem). Contrapondo-se ao modelo de letramento (dominante) da escola, o letramento ideológico possibilita o questionamento de práticas letradas e põe em evidência o sujeito na relação que estabelece com essas práticas, contextos e outros sujeitos envolvidos.

Essa perspectiva amplia os estudos dos letramentos na medida em que pluralidade, diferença, grupos escolarizados e não-escolarizados, práticas orais, dentre outros aspectos, passam a ser considerados nesse modelo. A concepção de ensino da escrita centrada no desenvolvimento de habilidades cognitivas, a escrita vista como tecnologia, a seleção de práticas letradas consideradas de prestígio são alguns dos aspectos valorizados no modelo autônomo de letramento. Ocorre que pensar processos de letramento é pensar que a escolha por um determinado modelo teórico leva, consequente e evidentemente, a diferentes percursos/resultados. Nesse sentido a adoção do modelo autônomo de letramento pela escola pode ser um exemplo de como os pressupostos teóricos do modelo ideológico de letramento poderiam ser estudados, ou seja, a escolha do modelo autônomo pela escola reflete relações de poder e de identidade numa sociedade em que grupos majoritários valorizam certas práticas de escrita.

Assumindo, com Street (1984, 2003, 2010), que letramento envolve relações culturais e de poder, o próprio letramento autônomo já seria uma versão de letramento ideológico. Com esse posicionamento, o autor salienta que: a) letramento envolve conhecer o contexto e o próprio sujeito (e suas necessidades) que participa do processo e b) as escolhas feitas por quem “letra” se relacionam com a concepção de letramento com a qual se coadunam.

68 Tradução livre. Texto original: “Its offers a more culturally sensitive view of literacy practices as they vary from

Street (2005) argumenta que a questão do letramento tem a ver com os objetivos/interesses de quem aprende e com os objetivos e interesses de quem ensina ou implanta determinado programa. Esses objetivos e interesses deveriam ser levados em conta ao se propor um modelo ou prática de letramento para o ensino de leitura e escrita. O autor defende a questão do letramento para além da aquisição de uma tecnologia, o que parece ser contrário ao que preconizam programas de alfabetização e letramento de instituições governamentais e financiadoras de programas. Para esses agentes, letrar envolve, primeiro, definir o que as pessoas devem aprender, quanto custa essa ação, qual o resultado e como reduzir o custo dela. (STREET, 2005, 2010) A crítica do autor emerge da noção de que relações de poder necessariamente “atravessam” o processo de letramento. Este que sempre é, a meu ver, contínuo.

No letramento autônomo, valoriza-se a padronização, desconsiderando quem é o outro, sujeito de linguagem. Tratando os sujeitos como empíricos, promove o apagamento de questões culturais que são essenciais para a construção e reivindicação de identidade do sujeito. (HALL, 2005) Processo semelhante ocorre com as práticas de letramento em contexto digital, na perspectiva do estudo da tecnologia visto como meio para o ensino, em que as tecnologias são tratadas como a grande virada na educação, conforme preconizado na parte introdutória dos PCN- EM. A recorrência do termo tecnologia (e do ensino) é associada ao discurso da inovação, da nova sociedade, da nova forma de lidar com o conhecimento (agora acessível para todos devido à internet), dentre outros fatores, sempre novos. À época do lançamento dos PCN, o Poder Público justificava a implantação de um novo Médio que pudesse atender aos novos rumos da sociedade, cada dia mais tecnológica.

Pensar o ensino de práticas de letramentos que envolvam o uso de tecnologia desconsiderando os sujeitos e por que (ou se) querem aprender pode ser uma variedade de letramento autônomo. Distanciando-se do letramento via escolarização, o modelo ideológico abriu espaço para que, considerada a existência de práticas de letramentos distintas conforme o contexto em que se realizam, outros letramentos fossem estudados. Com efeito, o surgimento de categorias distintas de diferentes práticas de letramentos ocorre, a meu ver, numa tentativa de associar: (1) práticas de letramentos conforme o contexto; (2) práticas de letramentos de grupos sociais; e (3) práticas de letramentos conforme o suporte ou a tecnologia/linguagem utilizada.

Em relação à distinção entre eventos e práticas de letramento, Street (1984, 2010) critica a noção de evento de letramentos considerando que existem vários outros eventos de letramento dentro de um único evento. Como exemplo, cita um Colóquio em eventos acadêmicos. Nesse ocorrem diferentes práticas (não eventos) de letramento. Se o Colóquio for considerado um

evento de letramento, dentro dele há outro evento, que, por sua vez, tem também um outro evento em seu interior. Por questão metodológica, o termo práticas de letramento pode oferecer ao pesquisador um padrão que lhe permitirá dizer “agora podemos comparar diferentes conjuntos de práticas”. (STREET, 2010, p. 38) A distinção pode contribuir, a meu ver, para pensar no problema da tipificação dos letramentos em contextos de ensino e aprendizagem que pode contribuir ainda mais para a discriminação de sujeitos e grupos sociais.