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Gêneros do discurso legais que orientam didaticamente processos formativos de professores (inicial e em serviço) para a constituição do discurso oficial sobre os letramentos

Módulo III Atividades práticas

3 RELAÇÕES ENTRE LETRAMENTOS, ENSINO DE ESCRITA E TECNOLOGIAS

58 Adiante, cito os gêneros do discurso legais Para melhor entendimento, Diretrizes Nacionais para a Educação

3.2.2 Gêneros do discurso legais que orientam didaticamente processos formativos de professores (inicial e em serviço) para a constituição do discurso oficial sobre os letramentos

Os gêneros selecionados para delinear o discurso oficial sobre os letramentos foram os PCN (1998) e as OCEM (2006) concebidos com o fim de orientar a escola e entes federados na proposição de um currículo, tentando garantir o desenvolvimento de competências e habilidades mínimas em cada etapa da Educação Básica. Orientações para o trabalho docente, observando

legislações vigentes, foram construídas pelo Poder Público em colaboração com pesquisadores de diferentes universidades, de diferentes áreas do conhecimento e linhas teóricas.

De saída, observa-se que diferentes sujeitos, discursos e esferas discursivas atuam na composição dos documentos oficiais. Atenho-me, porém, ao discurso oficial sobre os letramentos nos dois textos. Penso que a conjunção de vozes nesses documentos ultrapassa a díade: discurso oficial para o ensino de Língua Portuguesa e discurso acadêmico sobre o ensino de Língua Portuguesa. Para, no discurso oficial, porque objetiva atender a uma necessidade imediata. Sobre, no discurso acadêmico, porque o ensino de qualquer área do conhecimento é objeto de estudo com vistas à pesquisa e à teorização, gerando reflexões sobre as atividades ensinar e aprender. Desse imbricamento resultam tensões com as quais o professor de Língua Portuguesa terá que lidar.

Matos (2004, p. 143), ao analisar as três cartas de apresentação dos PCN, encontra “um discurso político que induz os professores à crença de que o documento é garantia de sucesso para o trabalho pedagógico”. A primeira tem como destinatário o professor das séries iniciais do Ensino Fundamental, a segunda, o professor das séries finais e a terceira, o professor do Ensino Médio. Na análise de Matos (2004, p. 142), na primeira carta, o então Ministro da Educação, Paulo Renato Souza (1995-2002), se dirige ao professor dizendo: “nosso objetivo é auxiliá-lo...”, em função da pressuposta formação precária do professor das séries iniciais; na segunda, diz “É com imensa satisfação que entregamos [...] com a intenção de ampliar e aprofundar um debate educacional”, admitindo que o professor dos anos finais tem uma formação mínima que poderá contribuir para o debate educacional e na terceira, aponta o objetivo dos PCN: “servirão de estímulo e apoio à reflexão de sua prática [...] contribuindo ainda para sua atualização profissional”. Distingue-se das anteriores a terceira: sugere-se ao professor do Ensino Médio rever suas práticas com base nos PCN, documento em consonância com a contemporaneidade, no dizer do ministro. A pesquisa de Matos torna evidente o acabamento dado pelo Poder Público ao enunciado tendo em vista seus destinatários.

A pesquisa de Matos dialoga com a de Borges da Silva (2006) que fez um estudo sobre como os conceitos teóricos de letramento, texto, discurso e gêneros do discurso foram transpostos para os PCN considerando seu público-alvo, os professores. Para tanto, a autora apoia-se no conceito de retextualização66 e faz a comparação entre o texto-fonte e a

66 Apoiando-se em Marcuschi (2001) e Travaglia (1992), Borges da Silva define retextualização como “um

processo de transformação de um texto em outro em virtude da alteração de algum elemento que o compõe: a língua, no caso da tradução, a modalidade, no caso da fala para a escrita e vice-versa ou o próprio gênero do texto, no caso da retextualização da escrita para outra escrita”.

textualização correspondente nos PCN. Destaco do trabalho de Borges da Silva a análise da retextualização do conceito de letramento que teve como texto-fonte Kleiman (1995).

Quadro 06 – Retextualização nos PCN

Fonte: Borges da Silva (2006, p. 229) (Grifos no original)

Na análise do enunciado 1, a autora pondera que: a) “letramento como um conjunto

de práticas não equivale a dizer o produto da participação” b) produto é resultado de uma

atividade ou processo e c) “conjunto (reunião das partes que formam um todo) traz a ideia de totalidade, uma vez que “num evento de letramento, o produto poderia ser uma série de textos ([...] orais [ou] escritos) e atitudes, já o letramento se refere a própria prática em si”. Em Kleiman, letramento “está associado a práticas discursivas e pende mais a processo que a produto”. (apud BORGES DA SILVA, 2006, p. 229) A noção de letramento como produto (enunciado 1), a meu ver, reforça, no enunciado 4, a ideia de escrita como tecnologia e também como produto, dialogando com a noção de letramento autônomo.

Ainda conforme Borges da Silva, no enunciado 3, a retextualização de “o letramento significa uma prática discursiva de determinado grupo” se torna “São práticas discursivas, na forma mais genérica.” (p. 229) Na retextualização, no enunciado 5, omite-se “essa interação social”. Também são eliminadas “as referências aos contextos sociais específicos das práticas” de leitura e escrita. A exclusão de partes do texto que são essenciais para compreender que a noção de letramento “pode promover certa proximidade do termo à noção de letramento autônomo, obscurecendo, por conseguinte, a noção de letramento ideológico”. (p. 230)

ENUN-

CIADOS TEXTO FONTE PCN – TEXTO ALVO

1 Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas

Letramento, aqui, é entendido como

o produto da participação em práticas sociais

2

que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em

contextos específicos, para objetivos específicos (p. 19)

que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia

3 o letramento significa uma prática discursiva de determinado grupo São práticas discursivas 4

que está relacionada ao papel da escrita para tornar significativa essa interação oral,

que precisam da escrita para torná-las significativas 5

Mas que não envolve, necessariamente, as atividades específicas de ler e escrever

(p. 18)

ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler e escrever

No tocante ao conceito de Bakhtin de gêneros do discurso, segundo Borges da Silva, na retextualização se tornaram: “os vários gêneros [...] constituem formas relativamente estáveis de enunciado, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional” (BORGES DA SILVA, 2006, p. 235). Além de serem omitidas as explicações de cada elemento, numa explicação em nota de rodapé, gênero do discurso é definido nos PCN como “todo se organiza [que] dentro de um determinado fenômeno”, retextualizado de Bronckart, que explica que “todo texto se inscreve, necessariamente, em um conjunto de textos ou em um gênero”. (1999, p. 75 apud BORGES DA SILVA, 2006, p. 236)

Ainda que essa e outras exclusões sejam significativas para se refletir quais são seus efeitos na prática docente, do trabalho das autoras, interessam-me dois pontos: 1) o Poder Público, voz representada no documento oficial, elabora um texto pressupondo que o professor desconhece teorias linguísticas e pedagógicas nas quais os PCN se fundamentam; 2) os PCN indiciam uma maior proximidade com a noção de letramento autônomo, não necessariamente por ser essa a noção defendida explicitamente no discurso oficial, mas por ser a noção provavelmente inferida pelo professor pela forma como o texto oficial foi escrito.

Além da simplificação no limite de conceitos teóricos basilares para o ensino de língua, os PCN, talvez objetivando congregar diferentes correntes em busca de uma pretensa harmonia, não define, explicitamente, qual conceito de letramentos orienta os documentos. O posicionamento do Poder Público pode estar na opção de não optar claramente por uma concepção. Com esse gesto, promove um certo consenso entre pesquisadores e educadores e, ao mesmo tempo, legitima um discurso hegemônico, que, segundo Fernandes (1989, p. 47), é “a demonstração clara do exercício do controle social, e é tão mais hegemônico quanto mais promover consenso e legitimidade”.

Analisando comparativamente a ocorrência (direta ou indireta) do termo letramentos nos PCN de cada segmento de ensino, confirma-se a ausência de posicionamento no discurso oficial. Nos PCN-EF I, (1) “[a] responsabilidade [da escola] é tanto maior quanto menor for o grau de letramento5 das comunidades” e a nota de rodapé (2)

5“Letramento, aqui, é entendido como produto de participação em práticas sociais

que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas” (p. 21)

Em (1), grau de letramento associa-se ao letramento autônomo e à distinção em oralidade primária e secundária (a escrita). Em (2), reafirma-se a noção de letramento autônomo com produto de participação em práticas sociais” e “escrita como sistema simbólico e tecnologia”. Observe-se que em (1) tanto maior quanto menor for o grau de letramento5 das comunidades dialoga com o modelo de letramento autônomo e em (2) não existe grau zero de letramento dialoga com a noção de letramento ideológico. Ainda que a retextualização do conceito, segundo Borges da Silva (2006) tenha sido infeliz, o trecho práticas discursivas [...] que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever inclui outras práticas letradas, tais como as orais, o que já seria um avançao.

Nos PCN-EF II, não há uma ocorrência explícita do termo. Porém, em “a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio” (p. 19), percebe-se um distanciamento da noção de letramento autônomo, ao marcar que ler não é apenas decodificar, e uma aproximação desse conceito ao retomar material escrito, em “[...] conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito” (p. 60), trecho extraído dos PCN-EM. No conjunto, encontram-se gestos didáticos que indiciam ora a aproximação, ora o distanciamento de uma ou de outra noção de letramento.

Concordando com Matos e Borges da Silva, penso que, ao fazer a transposição didática para que o professor compreendesse os principais conceitos que subsidiam os PCN, o discurso da inovação e da ruptura com o passado, a exposição pouco clara dos conceitos e outros efeitos de sentido podem ter contribuído para o pouco sucesso dos PNC na primeira década. A entrada dos gêneros do discurso como objeto de ensino na educação básica foi compreendida, a meu ver, pela noção de transparência da linguagem: a) o aluno deve ter contato com gêneros variados do cotidiano e b) o aluno deve distinguir tipo textual de gênero textual. Processo semelhante pode ter ocorrido com a noção de letramentos. Não havendo clareza quanto ao conceito e a como trabalhar, o professor pode ter interpretado práticas de letramentos como as práticas já trabalhadas na escola: a leitura e a produção de textos escritos, observando a sua função social e as noções de adequação e inadequação quanto ao uso da língua e de um gênero do discurso conforme o contexto.

Em 2006, o MEC publica as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM). O documento se distancia dos PCN em vários aspectos. Em função dos objetivos da seção, retomo as noções de concepção de linguagem e de letramentos. Nesse documento, a noção de prática de linguagem é compreendida como “processo de inserção dos sujeitos nas práticas sociais, que têm a linguagem como mediadora das ações, tendo em vista os propósitos em jogo” (BRASIL, 2006, p.29-30) e “as práticas de linguagem só podem ser pensadas em termos dos

espaços sociais (públicos ou privados) em que se configuram, a partir das finalidades que as motivam e dos lugares sociais nelas instaurados” (BRASIL, 2006, p. 30)

Dando maior relevo aoletramento ideológico, as OCEM (2006) recomendam considerar: a) “a história de interações e de letramento do aluno [...] – construída em diferentes esferas

sociais de uso da linguagem (pública e privada), inclusive nas experiências sistemáticas de aprendizagem de escrita (produção e compreensão textuais) do ensino fundamental.” (p. 31-32)

b) “as práticas de linguagem que envolvem a palavra escrita e/ou diferentes sistemas semióticos [...] em contextos escolares [ou não], prevendo[...] diferentes níveis e tipos de habilidades, [...] formas de interação e, consequentemente, pressupondo as implicações ideológicas daí decorrentes.” (p. 29)

Além disso, esses documentos propõem a produção e leitura de textos “em diferentes suportes e sistemas de linguagem – escrito, oral, imagético, digital, etc” a fim de que o aluno “conheça – use e compreenda – a multiplicidade de linguagens que ambientam as práticas de letramento multissemiótico [...] nas (e pelas] diferentes esferas das atividades sociais”. (idem, p. 32) Observa-se uma maior preocupação com a transposição didática dos conceitos. Nos gêneros do discurso legais, o discurso oficial tende a valorizar o letramento autônomo, talvez por influência da mídia e do Setor Produtivo. Nos PCN do Ensino Fundamental, há um trânsito entre os dois modelos de letramento. Nos PCN do Ensino Médio, o trânsito permanece, mas há uma maior tendência para o modelo ideológico. Nas OCEM, o discurso oficial sobre os letramentos ancora-se no modelo de letramento ideológico .

No que se refere à formação docente (inicial ou em serviço), essa instabilidade no discurso oficial é problemática uma vez que gera diversas interpretações e práticas docentes. Fiad (2012), ao analisar quatro documentos curriculares do Estado de São Paulo sobre o ensino de língua portuguesa de 1970 até a atualidade, observa um trânsito entre textos acadêmicos e os documentos analisados que deixam “transparecer [o] processo multifacetado de elaboração” (p. 119) decorrente das suas condições de produção: o contexto institucional, os múltiplos atores, a diversidade de aportes teóricos na área do conhecimento”. (idem) Na pesquisa de Fiad, texto e aspectos gramaticais são privilegiados num mesmo documento, indiciando o “papel ainda conflituoso dos estudos de gramática na relação com a escrita” (idem)

Os PCN foram produzidos em condições semelhantes. Além do caráter multifacetado na retextualização de conceitos que ancoram as orientações para o ensino de língua(gem), dois modelos de letramentos que se opõem são privilegiados no mesmo documento, quais sejam: o

autônomo e o ideológico. Apenas nas OCEM – dirigida tão-somente a professores do Ensino Médio – o professor encontra o letramento ideológico defendido pelo Poder Público.

Ainda que as OCEM defendam o letramento ideológico e a noção de gêneros do discurso, considerando a sua dinamicidade e ressaltando a distinção entre gênero e tipo textual, no caso do Ensino Médio, o próprio Poder Público promove a tensão ao manter a produção de um texto dissertativo-argumentativo na proposta de redação do exame e anualmente publicar o Guia do Participante do Enem para orientar o examinando com dicas pontuais sobre como obter uma boa pontuação na Redação. É na ordem da transparência da linguagem que o Guia do Participante do Enem, cursinhos preparatórios e o professor de ensino de redação orientam o aluno. Incluindo a mídia.