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A distinção entre devido processo adjetivo e devido processo substantivo no direito norte-americano

A exposição feita nos tópicos anteriores não se ocupou de estabelecer uma distinção entre “procedural due process” e “substantive due process” no direito norte-americano. Essa opção deve-se ao fato de termos verificado a inexistência de uma preocupação por parte da doutrina norte-americana de estabelecer uma classificação como ponto de partida para a compreensão do tema.

Com efeito, as distinções feitas parecem ter uma importância apenas secundária, incidental, voltadas apenas para destacar notas características de um ou outro aspecto. A doutrina norte-americana está mais preocupada com os aspectos práticos, com a análise das decisões da Suprema Corte e suas conseqüências no desenvolvimento do Direito Constitucional e da tutela dos direitos.

A fim de que possamos avançar na discussão proposta no início deste capítulo, no entanto, é necessário tratar, ainda que minimamente, dos critérios utilizados pela doutrina estadunidense, nas poucas vezes em que se preocupa em estabelecer uma distinção entre os aspectos adjetivo e substantivo do devido processo, o que nos permitirá extrair importantes conclusões. Para tanto, valemo-nos da exposição feita por CHEMERINSKY, que faz boa síntese desses elementos.

No que diz respeito aos critérios de distinção, esclarece o autor que o devido processo procedimental (“procedural due process”) refere-se aos procedimentos que o governo deve seguir, antes de privar uma pessoa da vida, liberdade ou propriedade. Por sua vez, o devido processo substantivo (“substantive due process”) diz respeito à existência de uma adequada razão para a privação dos direitos à vida, liberdade e propriedade83.

Quanto ao aspecto substantivo, especificamente, a verificação do cumprimento do devido processo depende muito da dimensão em que o ato questionado se encontra. Se se trata de uma dimensão mais ampla, a lei deve estar relacionada, racionalmente, a um legítimo propósito estatal. Mas, tratando-se de uma dimensão mais específica, quando estão em jogo, por exemplo, direitos fundamentais, “...o governo encontrará o devido processo somente se puder provar que a lei é necessária para cumprir com um legítimo propósito governamental”84 (destaques nossos).

A autor ilustra com clareza essa distinção, ao considerar o entendimento da Suprema Corte no sentido de que os pais têm legítimo direito a guarda dos filhos. Neste sentido, o “procedural due process”

exige que o governo deve permitir que os pais tenham conhecimento claro (“notice and hearing”) das razões e das provas que evidenciam a necessi-dade de revogar a custódia. Já no que tange ao “substantive due process”, considerando-se a custódia um direito fundamental, exige-se que o governo demonstre que a sua revogação se constitui em um convincente propósito, tal como a prevenção de abusos ou a falta de cuidados85.

Ou seja, o devido processo adjetivo exige que os pais tenham pleno conhecimento dos argumentos e elementos de prova apresentados pelo Estado, independentemente da análise sobre o seu conteúdo. Por outro lado, o devido processo substantivo exige que o Estado demonstre razões convincentes para a destituição da guarda dos filhos. Trata-se, portanto, de uma análise sobre o conteúdo dos argumentos e provas apresentados pelo Estado.

83 ERWIN CHEMERINSKY, Constitutional Law..., op. cit., p. 523.

84 Ibidem, p. 524. No original inglês: “...the government will meet substantive due process only if can prove that the law is necessary to achieve a compelling government purpose”.

85 Idem.

Em outro exemplo, a distinção pode ser estabelecida no âmbito de um processo de responsabilidade civil. “Procedural due process” exige a existên-cia de garantias tais como “instruções ao júri para guiar a sua decisão” e

“duplo grau de jurisdição a fim de garantir a razoabilidade da indeniza-ção”. De outro lado, substantive due process previne contra “excessos na fixação da indenização”, independentemente da observância dos procedi-mentos86.

No primeiro caso, tratam-se de garantias voltadas para a garantia da correção do julgamento, independentemente do seu resultado. No segundo caso, trata-se de análise realizada sobre o conteúdo da decisão proferida pelo Júri, a fim de que se verifique a ocorrência, ou não, de excessos na indenização fixada.

Por fim, CHEMERINSKY distingue esses dois aspectos do devido processo levando em consideração o remédio pretendido pelo requerente, quando busca a declaração de inconstitucionalidade de uma lei. Se o autor pretende a declaração de inconstitucionalidade de uma lei em virtude da ausência de garantias, tais como “notice and hearing”, a questão envolve o devido processo adjetivo. Todavia, se a pretensão estiver dirigida à declaração de inconstitucionalidade em virtude de que a ação estatal violou um direito fundamental, entra em cena o devido processo substantivo87.

O último exemplo citado pelo autor já expõe um problema que diz respeito à noção de devido processo substantivo corrente na doutrina brasi-leira, quando o associa, de forma geral, ao controle de constitucionalidade material dos atos legislativos, o que será objeto de análise nos tópicos seguintes.

Porém, apressamo-nos em demonstrar que a Suprema Corte não se limita a examinar o controle de constitucionalidade de uma lei, no que diz respeito ao seu conteúdo, apenas e tão-só no que diz respeito à ofensa ao aspecto substantivo do devido processo legal, preocupando-se, igualmente, com a existência dos procedimentos assegurados na lei quando estão em jogo os direitos à vida, liberdade e propriedade.

86Ibidem, p. 524; 532.

87 Ibidem, p. 524.

Com efeito, a decisão proferida em Fuentes v. Shavin é um bom exemplo do que estamos a dizer. Nesse precedente, a Suprema Corte mani-festou que antes de uma pessoa ser privada de sua propriedade, deveria ser-lhe assegurado “notice and hearing”, a qualquer tempo e de todas as manei-ras.

O direito constitucional de ser ouvido é um dos aspectos básicos do dever governamental de seguir um processo justo de decisão quando seus atos pretendem privar uma pessoa de suas posses. O propósito dessa exigência não é apenas assegurar abstratamente fair play ao indivíduo.

Seu propósito mais específico é proteger o uso e a posse da propriedade de invasões arbitrárias, para minimizar substantivamente privações injustas ou enganosas da propriedade... (destaque nosso) 88.

Em linha de conclusão, é possível dizer que a distinção existente no direito norte-americano, entre os aspectos substantivo e adjetivo do devido processo, está fundada tanto na natureza dos direitos protegidos sob a cláusula do “due process of law” como na modalidade de análise realizada sobre as garantias inerentes a cada uma das espécies.

Assim, o devido processo adjetivo diz respeito à análise sobre a existência de garantias suficientes para que se tenha uma decisão justa; o devido processo substantivo volta-se para a análise do conteúdo dessas mesmas decisões.

Trata-se, contudo, de uma distinção empírica, realizada a partir da análise dos casos submetidos às cortes judiciais, que tem por finalidade primeira ressaltar determinadas características relativas à compreensão e à aplicação do instituto.

Nos tópicos seguintes do presente capítulo, trataremos da distinção feita especialmente pela doutrina de fora dos limites da “common law”, com

88 407 U.S. 67, 80 (1972). Apud EDWARD CORWIN, The Constitution..., op. cit., p. 391. No original inglês: “The constitutional right to be heard is a basic aspect of the duty of government to follow a fair process of decision making when it acts to deprive a person of his possessions. The purpose of this requirement is not only to ensure abstract fair play to the individual. Its purpose, more particularly, is to protect his use and possession of property from arbitrary encroachment, to minimize substantively unfair or mistaken deprivations of property...”.

especial destaque ao tratamento dado ao tema pela doutrina brasileira, resgatando alguns dos elementos coligidos nas linhas antecedentes.

2.3 Distinção entre devido processo substantivo e adjetivo no direito