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2.1 Antiguidade clássica

2.1.1 A Ditadura Romana

O desenvolvimento do instituto ocorreu no período da República Romana. Jorge Bacelar Gouveia82 destaca que não foi por acaso que este momento propiciou a sedimentação daquele precursor do estado de exceção. Durante o período precedente na história romana, a monarquia83 não havia que se falar em exceção, que consistiria em meio desnecessário, uma vez que o uso do poder unipessoal era circunstância natural desta forma de governo. O Império, sucessor da República, promoveu a centralização do poder, não havendo, portanto, espaço para concentrar o núcleo decisório em situações específicas. Pois também, neste caso, esta já era a práxis.

A República, inaugurada em 509 a.C, era pautada no tocante à estruturação do poder de mando pelos seguintes vetores: a colegialidade e a igualdade de poderes. O exercício do poder executivo cabia, simultaneamente, a dois cônsules eleitos para mandato de 1 ano, não sendo permitida reeleição consecutiva. Eles concentravam o comando das forças armadas e as funções jurisdicionais. Tinham as mesmas responsabilidades, e cada um exercia direito de veto mútuo.

Logo, a época se distinguia pela descentralização do poder. Não obstante, previu-se como mecanismo de manutenção, num momento inicial, ou restauração, num estágio mais avançado, da ordem vigente, a Ditadura.

Está patente naquele tipo de ditadura, com grande nitidez, a finalidade que lhe é própria: tornar possível uma actuação política rápida e enérgica por meio da entrega de poderes consideráveis nas mãos de um só governante a fim de vencer uma determinada crise política interna ou externa. Recorre- se ao ensinamento da experiência de que um indivíduo só pode actuar mais rápida e energicamente do que qualquer órgão colegial, no qual começa por ser necessário sempre encontrar um compromisso entre diversos pontos de vista, e do que uma pluralidade de órgãos cuja eficácia começa por carecer de uma coordenação.84

       <http://www.allacademic.com/meta/p_mla_apa_research_citation/0/5/9/0/0/p59006_index.html>, Acesso em 04/05/2008. p. 14.

82

GOUVEIA, Jorge Bacelar. O Estado de Excepção no Direito Constitucional: entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1998, p. 122.

83

Do grego monos, um, e arche, governo, significando, portanto, governo de um. 84

ZIPPELIOUS, Reinhold apud GOUVEIA, Jorge Barcelar. O Estado de Excepção no Direito Constitucional: entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1998, p. 124.

Convém esclarecer desde já as possíveis acepções do termo Ditadura. Em sentido lato, num contexto contemporâneo, configura-se enquanto regime político no qual o governante não goza de legitimidade, no mais das vezes, se enquadra enquanto situação de estado de exceção inconstitucional. Em sentido

stricto, liga-se à espécie de magistratura de caráter extraordinário, prevista na antiga

República romana.

Neste tópico, a conotação que interessa é a segunda. Assim, a Ditadura romana era o regime político que previa o exercício temporário do poder político, unipessoal, com concentração de atribuições pré-definidas e com a finalidade de restabelecer a ordem, afastando perigo público.

A origem do instituto não é precisa, pode ter sido uma criação original da republica romana ou ser baseado na concepção etrusca ou latina. Seja como for, convém destacar que foi amplamente utilizado até ser abolido em 44 a. C. por Marco Antônio. Há dados que apontam para o uso da ditadura romana em 76 oportunidades, ao cabo dos três séculos85.

O ano de 500 a. C é apontado como a primeira vez que se utilizou a Ditadura em Roma. T. Larcius Flaccus assumiu as funções de ditador e conduziu Roma durante guerra contra cidades circundantes. Assim, pouco tempo depois que surgiu a República romana, o poder vigente se deparou com um problema de ordem prática e foi compelido a aceitar a centralização do poder em um só homem, a exemplo da ultrapassada monarquia, como meio de manter-se. Neste sentido:

The same men who had driven the Kings out of Rome and had set up a constitutional government were now forced to admit in practice that this new government was inadequate to the task of its own preservation, and that only a temporary retreat to the kingly power could enable it to carry through to normal times.86

Para que fosse estabelecida a Ditadura fazia-se necessária a comprovação de um dos requisitos: guerra externa ou crises internas. De início, somente aquela justificava a adoção da medida, mas, posteriormente, a hipótese de abalos internos também passou a ser capaz de justificá-la.

       85

FERNÁNDEZ DE BUJÁN, Antonio. Derecho público romano: y recepción del derecho romano en Europa. 3 ed. Madrid: Cívitas, 1998.

86

ROSSITER, Clinton L. Constitutional Dictatorship – Crisis Government In the Modern Democracies. New Jersey: Princeton University Press, 1948, p. 17.

Após a constatação de um dos pré-requisitos alhures, o Senado reconhecia a situação de ditadura e nomeava o ditador87 previamente designado pelo cônsul em exercício. Era defeso a este dar início ao procedimento sem a prévia manifestação do Senado o qual ainda teria que confirmar a ditadura por lex curiata. O rigoroso procedimento era seguido pelos motivos a seguir expostos:

…The senate would decide when a dictator was necessary, and a consul would appoint one. This process prevented the senate from choosing one of its own, although it was not impossible that the consuls might choose a senator. Dictators were nearly always prominent men who had demonstrated their ability and their trustworthiness. One man could serve as dictator on multiple occasions.88

Era a única situação na qual a República romana era governada por um

chefe não-eleito. A gravidade da situação permissiva da medida era a justificativa

para aceitação da legitimidade do dictus.

O ditador acumulava o poder político, administrativo e judicial. Comandava as forças militares e podia aplicar a pena de morte. Substituía as funções dos dois cônsules. Os magistrados lhe eram subordinados. Tinha ampla concentração de poderes, não podia, entretanto, legislar. E, apesar de não ser capaz de modificar as leis vigentes, podia atuar ainda que as violasse. Nem neste caso, os atos praticados pelo ditador eram passíveis de responsabilização posterior.

Embora tivesse, por assim dizer, uma “atuação irresponsável” não estava investido em um poder ilimitado. O ditador não podia atuar de forma a prejudicar o Estado romano. Os comandos tinham que servir ao desiderato que justificou a instauração da ditadura. Ademais, o ditador somente podia atuar de forma defensiva. Ele deveria restabelecer a ordem. Para tanto, não estava habilitado a dar início a guerras externas, mas apenas a se defender de ataques.

Existiam alguns limites temporais. O tempo máximo de permanência do ditador no cargo era de seis meses. Ainda que perdurassem os motivos que justificaram a medida, esta cessava de imediato. Era possível uma nova declaração, mas não uma prorrogação.

       87

GROSS, Oren; AOLÁIN, Fionnuala Ní. Law in Times of Crises. Emergency Powers in Theory and Practice. New York: Cambrige University Press, 2006, p. 19: “…dictator was appointed – the origin of the term, ‘dictus’ (named, appointed)…”.

88

LAZAR, Nomi Claire. Making Emergencies Safe For Democracy: The Roman Dictatorship and the Rule of Law under States of Emergency. Yale University, September 5, 2004, p. 22.

E, em duas hipóteses, a Ditadura se findava antecipadamente: 1 – na data de término do mandato do cônsul que apontou o ditador; 2 – quando as razões justificadoras se findassem antes do decurso de seis meses, hipótese na qual cabia ao ditador renunciar de suas funções.

Lucius Quinctius Cincinnatus foi apontado Ditador de Roma em 458 a. C..

Em quinze dias, este cidadão romano conseguiu reverter a situação que justificou a Ditadura e, de imediato, devolveu o poder aos cônsules eleitos, restabelecendo a ordem. Quanto mais breve fosse a atuação do Ditador, mais virtuoso ele seria.89 Sobre o tema destaca-se a seguinte consideração: “Cincinnatus’s willingness to give

up his powers has been quoted often as a sign of virtue, leadership, and trustworthiness by whose measure other leaders were considered.”90

Em Roma, a ditadura se mostrou uma forma eficiente para contornar períodos de crise e para lidar com severas ameaças às instituições republicanas. Contudo, essa idéia de um ditador, de um “governo” com poderes ampliados para lidar com um “estado de exceção” à ordem normal, abriu espaço para a falência da própria república e instituição do império, como que antevendo os ensinamentos de Maquiavel91 quanto ao assunto.

Assim, no Direito Romano, havia disposições jurídicas específicas vigentes apenas em época de graves conflitos internos ou externos. Presentes determinadas condições, as autoridades poderiam utilizar estas normas temporárias para superar insurreições ou guerras externas. O uso efetivo destas previsões configurava o que Carl Schmitt intitularia, séculos mais tarde, de ditadura comissária a qual:

...consistia en la designación por el cónsul a solicitud del Senado, de um funcionario durante um período de seis meses com atribuciones para hacer frente a la emergência pero em la práctica si la situación se normalizaba antes de concluir dicho plazo, el comisario debía dejar su cargo.92

Havia, entretanto, momentos nos quais a utilização exacerbada das medidas previstas configurava o que Schmitt intitula de ditadura soberana. A       

89

GROSS, Oren; AOLÁIN, Fionnuala Ní. Law in Times of Crises. Emergency Powers in Theory and Practice. New York: Cambrige University Press, 2006, p. 26.

90

GROSS, Oren; AOLÁIN, Fionnuala Ní. Law in Times of Crises. Emergency Powers in Theory and Practice. New York: Cambrige University Press, 2006, p. 26.

91

No tópico acerca da idade moderna será exposto o pensamento deste autor. 92

FIX-ZAMUDIO, Héctor. Los Estados de Excepción y la Defensa de la Constitución. In: Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, año XXXVII, num. 111, p. 801-860, septiembre- diciembre de 2004. p. 802.

ditadura soberana, sobre a qual comentar-se-á no estudo sobre as concepções schimttianas, consistiria no desvirtuamento da ditadura comissária o que, por diversas vezes, ocorreu na história da humanidade. Pelo menos três momentos podem ser apontados como fases degenerativas da ditadura: o sétimo consulado de Mário, o período de Sila (82 a. C) e o período de César (48 a. C.). Apesar das anomalias, o instituto desenvolvido na Antiguidade guarda importância até os dias atuais. Serve, até mesmo, para que sejam constatados os erros enquanto experiência para que se evite cometê-los novamente.