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A Idade Média foi marcada pela descentralização do poder e pela variedade de ordenamentos jurídicos. Enquanto período que imediatamente sucedeu a derrocada e a fragmentação do Império Romano do Ocidente, restou assinalada pela formação de núcleos decisórios infra-estatais. A nova conjuntura gerou uma acepção bem diversa do modelo romano de estado de exceção.

A caracterização do Estado feudal gerou, ainda, a condensação de um poder supra-estatal representado tanto pelo Papado quanto pelo Sacro-Império Romano-Germânico. Este personificava o poder temporal. Aquele, o poder espiritual.103 “...Tinham-se, assim, como que dois pontos cardiais, sobre os quais assentava a vida política da Idade Média: o Papado e o Império.”104

Segundo Bercovici105, a Idade Média, a partir do século XII, é marcada pelo desenvolvimento do princípio da ratio status, indicando que o poder político deve servir à justiça. Não havia uma sistematização da exceção. Porém, com a aplicação do princeps legibus solutus est, a partir do século XIII, a submissão do Rei à lei foi relativizada sem chegar à ampliação do período histórico subseqüente, lição do autor:

A máxima do Digesto 1.3.31 “Princeps legibus solutus est”, que se refere a um comentário de Ulpiano, não se limita à imunidade do príncipe em relação à lei, mas também diz respeito à sua autoridade legislativa e ao seu poder de derrogar leis. (...) O entendimento medieval, no entanto, nunca foi absolutista, pois sempre buscaram limites a esta prerrogativa real.

Um dos fundamentos do legibus solutus era a máxima do Decretum de Graciano: “Necessitas legem non habet”. A necessidade pública legitima a suspensão provisória de todos os vínculos, embora o motivo devesse ser delimitado pelo critério jurídico-religioso da “causa justa”. Com a permissão da declaração legibus solutus, segundo Senellart, a necessitas teria derrubado, embora sem destruí-la, a antítese medienval entre rex justus e tirano, abrindo espaço para uma vilação permitida da ordem jurídica sob a justificativa do interesse público ou do bem comum.106

Configurou-se, no período medieval, a “...asunción de facultades amplias

necesarias em momentos de conflictos internos y externos, que tenían uma duración

       103

GOUVEIA, Jorge Barcelar, O Estado de Excepção no Direito Constitucional: entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1998, p. 134.

104

VECCHIO, Giorgio Del. Lições de Filosofia do Direito. Tradução de António José Brandão. 5 ed. correcta e atualizada. Revista e prefaciada por L. Cabral de Moncada e actualizada por Anselmo de Castro. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1979, p. 68.

105

BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 52-56.

106

limitada...”107. Porém, as medidas excepcionais então adotadas eram bem diferentes das que lhes precederam historicamente. Importa frisar que:

... A diminuição do poder estadual, conseguido à quintessência pelo Império Romano, determinaria a imediata localização do Estado de exceção em novas instâncias de poder, até à altura desconhecidas, quer a nível infra- estadual, quer a nível supra-estadual.108

No plano do poder temporal, a autoridade do Papa era exercida de forma difusa, alcançado lugares distantes da Respublica Christiana através dos comissários extraordinários, também conhecidos como “legados pontifícios”. As atribuições destes iam da atividade jurisdicional, passando pela possibilidade de cobrar impostos ou, até mesmo, para exercer a “...‘limpeza das más gentes’ (purgare

malis hominibus)”.109 Cogitando do estado de exceção, importam destacar as

específicas funções dos comissários extraordinários de manter a paz, ou restabelecê-la.

Outro instituto, ainda, em tempos medievais, apontado como precursor do estado de exceção era o jure dominationes speciale. Este era encontrado no âmbito do poder temporal, sendo cogitado como uma legalidade especial apartada da legalidade ordinária. Nos ordenamentos que o previam, o rei podia destacar um comissário extraordinário que, a exemplo dos “legados pontifícios” previstos na organização eclesiástica, exerciam atividades jurisdicionais e arrecadavam impostos. Em determinadas situações, acompanhavam os destacamentos militares, controlando as tropas contra inimigos externos ou contra perturbações de ordem interna.110

Como demonstrado, as figuras tidas como predecessoras do estado de exceção, durante a Idade Média, seguiam modelo bem diverso do romano. Estavam mais afeitas à peculiar conjuntura que se instaurou. Acerca do assunto:

A importância dos comissários medievais na construção do Estado de excepção consideravelmente reflecte a estrutura política da organização       

107

FIX-ZAMUDIO, Héctor. Los Estados de Excepción y la Defensa de la Constitución. In: Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, año XXXVII, num. 111, septiembre-diciembre de 2004, p. 802.

108

GOUVEIA, Jorge Bacelar. O Estado de Excepção no Direito Constitucional: entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1998, p. 135.

109

Ibidem, p. 136. 110

medieva. Essa era uma figura que se ajustava à principal característica do poder medieval, que residia não só na sua elevada extensão territorial como também no seu carácter altamente fragmentário. Dessa forma, eles apareciam como a consequência da necessidade do acompanhamento da dimensão das possessões territoriais por parte das entidades – políticas ou religiosas – que os nomeavam. A deslocação desses comissários às regiões de crise configurava o esquema que melhor respondia a um problema de segurança e de permanência das entidades políticas.111

A exemplo do que ocorreu durante a Antiguidade, houve distorção do modelo do estado de exceção, no período medieval, ocorrendo, em dados momentos, uso permanente das medidas previstas para situações singulares. Segundo Fix-Zamudio, era: “...y el tirano, quien usurpaba o distorsionaba estos

poderes de manera permanente...”.112

Durante o renascimento, o Papado e o Império passam por uma situação de declínio. Nesta fase começam a despontar as grandes monarquias, os grandes Estados os quais Del Vecchio intitula de “verdadeiramente soberanos”113. Héctor Fix-Zamudio destaca que:

       

Durante el renacimiento... ...Tanto en la hipótesis de uma situación normal como em las de excepción, las atribuciones del soberano, al menos teóricamete, estaban reguladas jurídicamente, em el primer supuesto por el ius imperii, y en el segundo por el ius especiale.114