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CAPÍTULO 1 – EM TORNO DA DEFINIÇÃO DE ARQUIVO PESSOAL

1.1. A diversidade terminológica e conceptual

20 No seguimento da definição, a que se aludiu na introdução da dissertação, dada por Lúcia Velloso de

Ao longo do século XX, a nível internacional, foram encetadas diversas iniciativas no sentido de uniformizar o léxico utilizado pela Arquivística, nem sempre bem-sucedidas quanto ao uso consentâneo e universal de alguns termos, ou de que resultaram instrumentos rapidamente tornados obsoletos e desatualizados, por virtude da evolução tecnológica e do

desenvolvimento do pensamento sobre a própria Arquivística.21

Em 1992, Terry Cook invocou a necessidade de os profissionais de arquivo utilizarem uma linguagem comum baseada em princípios e conceitos aceites por todos. Para o autor, sem um entendimento nesse sentido, até mesmo qualquer tentativa de estabelecer normas no âmbito

da Arquivística configurava num exercício de escassa utilidade (Cook, 1992a, 24).22 No

entanto, e apesar dos contínuos esforços desenvolvidos pelo Conselho Internacional de Arquivos (ICA), a diversidade terminológica continua a ser patente, como se pode verificar, por exemplo, no glossário internacional Multilingual Archival Terminology, resultante de um projeto de sistematização a partir de várias fontes, onde foram coligidas definições propostas em

inúmeros dicionários e léxicos, de vários países e em diversas línguas.23

A persistência de distintos modos de entendimento dos arquivos, inclusivamente com escolas de pensamento relacionadas, e a preservação de arquivos por instituições de áreas não especializadas em Arquivística, como a Museologia ou a Biblioteconomia, continuam a dificultar um consenso entre os vários profissionais, tanto conceptual, como na própria normalização dos procedimentos de descrição, com uso de distintos quadros normativos e de glossários terminológicos,nem sempre coincidentes. Do ponto de vista terminológico, e da própria conceptualização do que constituem arquivos como os pessoais, ou os familiares, não existe

21 Uma tentativa de estabelecer uma terminologia arquivística ao nível internacional surgiu na sequência

de uma proposta feita em 1931 pelo Comité Consultivo Permanente da Sociedade das Nações. Contudo, só depois da fundação do Conselho Internacional de Arquivos (ICA), em 1950, se assistiu a maior empenho com sistematização terminológica. Em 1964 foi publicado o Elsevier’s Lexicon of Archive

Terminology, fruto dos trabalhos levados a cabo pelo ICA, pejado, todavia, de definições imprecisas e

ambíguas (Ribeiro, F., 1998, vol. II, 16), e, em 1984, o Dictionary of Archival Terminology, editado em versão bilingue, em inglês e francês.

22 O alerta de Terry Cook surgiu num período em que o Conselho Internacional de Arquivos (ICA)

trabalhava na elaboração de um quadro normativo internacional para a descrição de arquivos, de que resultou a aprovação de uma primeira norma em 1994, a ISAD(G), a que se seguiram outras – a ISAAR(CPF), para a elaboração de registos de autoridade dos produtores de arquivos; a ISDF, destinada à descrição das funções das entidades produtoras; e a ISDIAH, para a normalização das descrições das instituições detentoras de acervos arquivísticos.

23 O ICA tem vindo, desde há alguns anos, a fazer sucessivas atualizações do Dictionary of Archival Terminology publicado na década de 1980. Uma persistente recolha de definições, em diversas obras e

projetos arquivísticos, em múltiplas línguas, está na base do glossário terminológico multilingue elaborado com a colaboração da organização InterPares Trust, projeto de investigação internacional dirigido por Luciana Duranti, a qual é também responsável pela coordenação do glossário. Disponibilizado atualmente

on-line, nele é possível consultar as várias aceções de um mesmo conceito numa determinada língua e

os termos correlativos em uso noutras. O acesso on-line à base de dados do glossário, em atualização permanente, é disponibilizado pelo Centre for the International Study of Contemporary Records and

Archives em <URL:http://www.ciscra.org/mat/> [consult. 20-01-2017], e na página oficial do ICA está

disponível diversa informação técnica sobre o mesmo em <URL: https://www.ica.org/en/online-resource- centre/multilingual-archival-terminology> [consult. 20-01-2017].

unanimidade entre os profissionais dos vários países, nem uma única definição possível para realidades semelhantes.

Para o caso português, o glossário do ICA sistematiza alguns termos vertidos em publicações como o Dicionário de Terminologia Arquivística, editado em 1993, ainda frequentemente

utilizado e citado, e a Norma Portuguesa 4041, de 2005.24 O referido dicionário indica várias

aceções possíveis para o termo arquivo e, naquela que importa aqui considerar, define-o como o “conjunto orgânico de documentos, independentemente da sua data, forma e suporte material, produzidos ou recebidos por uma pessoa jurídica, singular ou coletiva, ou por um organismo público ou privado, no exercício da sua atividade e conservados a título de prova ou

informação” (Alves et al., 1993, 7).25

Em face desta definição, é possível afirmar que o conjunto dos documentos de uma pessoa singular pode constituir um arquivo. Todavia, no Dicionário não é definido o arquivo pessoal, embora se apresente uma definição de arquivo de família, para designar aquele “de uma ou mais famílias aparentadas e/ou dos seus membros relativo a assuntos privados e públicos, e à administração de bens”. Esta definição de arquivo de família, ao introduzir, como hipótese alternativa, a possibilidade de dizer respeito também aos seus membros, deixa a sua abrangência envolta em alguma ambiguidade, pois nada especifica quanto à eventualidade de esses membros poderem ser considerados na sua singularidade individual, produzindo o seu arquivo de forma independente da família, sendo que esta não pode deixar de ser considerada uma expressão social de vivência coletiva, seja qual for a sua configuração.

No glossário do ICA encontramos ainda, em língua portuguesa, o arquivo definido em conformidade com a norma portuguesa NP 4041, acima indicada. A definição corresponde à que figura no Dicionário de Terminologia Arquivística, sendo acrescentada a explicitação de

que se trata da “mais ampla unidade arquivística”26 e que “a cada proveniência corresponde um

arquivo” (NP 4041, 2005, ponto 3.1.2), vinculando, deste modo, a definição a teorias e práticas arquivísticas relacionadas principalmente com a descrição e a organização documental.

A expressão referente à proveniência pressupõe a aplicação de um princípio teórico na Arquivística, frequentemente designado por princípio do respeito dos fundos, cuja origem

24 Norma destinada a fixar termos e conceitos básicos em uso corrente na teoria e prática arquivística. Foi

homologada em 2005, mas esteve em projeto a partir de 1990, razão pela qual é frequentemente referida no Dicionário de Terminologia Arquivística de 1993 (Alves et al., 1993).

25 Além desta definição, o Dicionário refere ainda outras duas aceções possíveis para o termo, uma para

designar a instituição ou serviço responsável pela aquisição, conservação, organização e comunicação de documentos de arquivo, e outra no sentido de depósito, ou seja, o local físico onde se guardam documentos.

26 A “unidade arquivística” refere-se diretamente aos termos utilizados para descrever os documentos nos

seus conjuntos, aplicando-se distintas designações às várias partes componentes do arquivo. Este é considerado a unidade mais ampla, que se pode subdividir em outras unidades, como as secções, as séries, e as subdivisões destas, até ao nível mais particular do documento simples. As definições e abrangência de cada uma destas unidades podem ser encontradas na referida norma NP 4041 (2005).

remonta ao século XIX. Fundamenta-se na manutenção da autonomia de cada arquivo, em função da entidade que lhe deu origem, e na ideia de que os documentos ligados a um mesmo produtor devem permanecer juntos, não se devendo misturar com os de outros. Um fundo

designa, assim, o conjunto completo e inseparável dos documentos de um arquivo.27

A mesma norma (NP 4041, 2005, ponto 3.1.9) considera, por isso, o termo fundo, como equivalente ao termo arquivo, ressalvando embora ser “mais utilizado no âmbito dos arquivos

definitivos”.28 O fundo constitui um termo amplamente aplicado, na Arquivística, a um conjunto

documental com a mesma proveniência, e é comum ser utilizado para designar os arquivos que foram considerados como tendo valor para preservação permanente, e cuja descrição constitui uma das competências das instituições de arquivo. Por essa razão é o termo

preferencialmente adotado na ISAD(G).29

27 O referido princípio e a origem do próprio termo “fundo”, ou pelo menos a sua vulgarização na prática

arquivística, situam-se no contexto europeu do pós-Revolução Francesa, durante o qual várias famílias e indivíduos ligados ao anterior regime viram os seus bens confiscados e sequestrados, tendo consequentemente muitos documentos de origem privada revertido para o Estado, sendo remetidos a arquivos e bibliotecas públicas (Nougaret, 2013, 64). A incorporação de numerosos arquivos privados em depósitos dos Estados foi inicialmente acompanhada de uma reorganização geral dos documentos, segundo uma lógica racional, cronológica e temática, distinta da organização funcional existente nos arquivos na sua formação original (Silva, A. M. et al., 1999, 112). Contudo, a desarticulação causada pelas várias formas de organização dos documentos levou a que, em 1841, uma circular do Ministro do Interior, Duchatel, viesse determinar a reunião dos documentos pela sua entidade de origem. Considera- se ter tido papel preponderante nessa decisão, Natalis de Wailly, dos Archives Nationales, tendo sido seguidas as suas recomendações nas instruções e metodologias de classificação de documentos exaradas na circular, com vista a implementar o que veio a ser conhecido como o “princípio de respeito pelos fundos”, também designado como “princípio da proveniência”, em oposição à organização por assuntos inspirada na época iluminista (Silva, A. M. et al., 1999, 107). Ainda assim, autores como Horsman ou Luciana Duranti consideraram que a ideia de organizar os fundos de acordo com a sua proveniência, não misturando documentos entre si, teria sido articulada anteriormente, havendo exemplos dessa prática, em Nápoles em 1812, e no Vaticano em 1839 (cit. por Douglas, 2013b, 127). Entre alguns autores que, já no século XX, procuraram formular teorias em torno deste princípio encontram-se Carlo Laroche (1971), inserido numa visão estruturalista que entende a Arquivística como uma ciência dotada de autonomia, e Michel Duchein (1977, 1983), que apresenta diversas propostas metodológicas para ultrapassar problemas encontrados na sua aplicação prática.

28 O adjetivo “definitivo” remete para ideia de que o fundo se trata de um conceito essencialmente

destinado a ser utilizado no contexto das instituições com funções arquivísticas, para designar a documentação que deixou de ter utilização corrente, e se entendeu preservar indefinidamente, por razões informativas e históricas. No entanto, este entendimento pode ser questionado, pois essa situação supõe existir documentação “não definitiva”, ou seja, ainda em uso. Tal pode fazer crer que existe um arquivo para além do fundo, objetando, necessariamente, a que se considerem os termos arquivo e fundo de forma idêntica. Seja para uma organização, seja para o caso de documentos de indivíduos e de famílias, o facto de haver documentação incorporada em instituições arquivísticas, recebendo a designação de fundos, não significa que possam ser considerados “definitivos”, se o sentido for o de terminal, encerrado, acabado ou inalterável, pois podem, ainda assim, estar sujeitos a novas incorporações – por força da lei, para o caso das organizações em pleno funcionamento; ou por outras justificações, no caso de arquivos pessoais e familiares parcialmente entregues à guarda de uma instituição.

29 Na terminologia arquivística pode ainda ser encontrado o conceito de “subfundo”. Os canadianos

Rousseau e Couture definem-no como uma “subdivisão do fundo quando se trata de unidades administrativas subordinadas” (1998, 295). Em Portugal, a norma NP 4041 de 2005 considera-o “uma unidade arquivística constituída pela primeira subdivisão de um arquivo, determinada pela sua ordem original ou, na sua ausência, por critérios orgânico-funcionais” (ponto 3.1.17), e entende-o como idêntico ao de “secção” (ponto 3.1.15). A ISAD(G) (2002, 14), na sua tradução para língua portuguesa publicada pela Torre do Tombo, não utiliza o termo “secção” e considera apenas o “subfundo”. Ambos

O conceito de fundo presta-se, porém, a algumas ambiguidades, nomeadamente pela sua utilização noutras áreas, com sentidos diferentes. Por exemplo, em bibliotecas é possível encontrar o uso do termo de fundo (por vezes tendo associado o adjetivo “documental”) para designar o seu património bibliográfico, ou mesmo em sentido mais restrito e próximo de um outro termo, o de coleção, sendo ambos igualmente de uso prolixo em distintos contextos profissionais, como na museologia.

No glossário do ICA reproduz-se ainda outra definição de arquivo, também em língua portuguesa, mas baseada no Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, designando o “conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte,” (DBTA, 2005, 27). Essencialmente semelhante ao proposto no dicionário de edição portuguesa, não introduz, no entanto, o pormenor desse conjunto ser considerado “orgânico”, nem a questão da conservação dos documentos para efeitos de prova ou informação.

Encontra-se ainda vertida no glossário do ICA uma sumária e simplista enunciação de arquivo pessoal, constante no Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística: “arquivo de pessoa física” (DBTA, 2005, 34). Esta definição remete o entendimento do que é o arquivo para a aceção respetiva, acima indicada, e circunscreve o pessoal em função da existência corporizada do indivíduo, num sentido correlativo a uma entidade biológica. Desta forma, introduz o que se pode considerar como uma distinção relativamente à família, um conceito de âmbito social relativo aos laços que unem determinados indivíduos, seja por contrato juridicamente reconhecido ou por consanguidade.

O mesmo dicionário brasileiro define o arquivo de família como o “arquivo privado de uma família ou de seus membros, relativo às suas atividades públicas e privadas, inclusive à administração de seus bens” (DBTA, 2005, 29). Note-se ainda que esta definição introduz o conceito de “arquivo privado”, que no dicionário se indica corresponder a todo aquele que diz respeito a uma “entidade coletiva de direito privado, família ou pessoa” (DBTA, 2005, 35). O

Dicionário de Terminologia Arquivística publicado em Portugal remete também para uma

definição semelhante, sendo o arquivo privado respeitante a uma entidade de direito privado (Alves et al., 1993, 9-10).

Contudo, a designação de arquivo privado reporta-se apenas a uma característica de tipo jurídico, da esfera do Direito, que distingue tais arquivos daqueles que dizem respeito a entidades da administração pública de um país. Existem, no entanto, alguns autores que, no domínio da teoria arquivística, têm assumido estes termos para caracterizarem ou designarem

correspondem a termos usualmente utilizados nas operações de classificação, sendo atribuídos a subdivisões hierárquicas que organizam os documentos.

os arquivos pessoais, como Heloísa Bellotto que sustentou que “a conceção de arquivos pessoais está embutida na definição geral de arquivos privados” (Bellotto, 2007, 166), ou Zeny Duarte Santos que a propósito deles chega mesmo a adotar apenas a expressão de arquivo

privado (Santos, Z. D., 1999, 38).30

No entanto, tal como alertou Armando Malheiro da Silva, a distinção entre arquivos públicos e privados tem nulo interesse científico, sendo apenas uma mera utilidade instrumental (Silva, A.

M., 2000a, 89).31 De facto, a distinção diz apenas respeito à natureza jurídica da entidade

produtora, e para os repositórios arquivísticos não deve ser mais do que uma forma de distinção pragmática, com essa base, relacionada, por exemplo, com aspetos relativos à propriedade ou a restrições de acesso à informação previstas por lei. Embora devam ser tidos em conta pelos profissionais de arquivo, são somente aspetos concernentes à gestão da documentação, que não devem condicionar qualquer teoria arquivística ou abordagem conceptual do que constitui um arquivo.

No caso da definição de “arquivo pessoal”, para designar os conjuntos documentais de indivíduos preservados nos diversos repositórios, a questão pode ainda assumir contornos mais complexos. A brasileira Heloísa Bellotto, por exemplo, considera o arquivo pessoal como o conjunto de informação, seja qual for o seu suporte, resultante da vida e da obra ou atividade de estadistas, políticos, administradores, líderes de categorias profissionais, cientistas, escritores, artistas, ou outros, enfim, de pessoas cuja maneira de pensar, agir, atuar e viver possam ter algum interesse para as pesquisas nas respetivas áreas onde desenvolveram suas atividades. Esse estatuto, segundo Bellotto, aplica-se ainda a pessoas detentoras de informações inéditas nos seus documentos que, se divulgadas na comunidade científica e na sociedade civil, trarão factos novos para as ciências, a arte e ou a sociedade em geral (Bellotto, 2007, 266).

Já Maria del Carmo Mastropierro considera que os documentos pessoais não se podem considerar arquivos enquanto não forem sujeitos a uma análise documental, e à tripla função, segundo a autora, de recolher, conservar e servir, a qual “cabe a toda a instituição arquivística.

30 A mesma autora define os arquivos privados como guardando documentação que não foi produzida

pelo Estado, embora entenda que muitos possuem “papéis públicos”, referindo-se ao que é produzido dentro da esfera pública em que o indivíduo se move (Santos, Z. D., 1999, 42-43).

31 A dicotomia público/privado pode revelar-se em práticas arquivísticas que diferenciam, por exemplo, os

fundos incorporados no acervo de determinado repositório entre arquivos públicos e arquivos privados. Esta distinção encontra-se expressa em Portugal na lei relativa ao regime geral dos arquivos e do património arquivístico (Decreto-Lei 16/93, de 23 de janeiro), onde se considera como público o arquivo reunido por uma entidade pública, e privado aquele é reunido por uma entidade privada (Art.º 9.º, alínea b). A lei de bases do regime de proteção e valorização do património cultural (Lei 107/2001, de 8 de setembro) mantém a mesma ideia (Art.º 81.º), sublinhando explicitamente que os arquivos são públicos ou privados de acordo com a proveniência (n.º 1), e especificando que os arquivos públicos são produzidos por entidades públicas ou pessoas coletivas de utilidade pública (n.º 2), enquanto os privados são os produzidos por entidades privadas (n.º 4), podendo estas ser pessoas coletivas de direito privado integradas no setor público, e ainda pessoas singulares ou coletivas privadas (n.º 5).

Podem ser considerados como a matéria-prima de um futuro arquivo pessoal, se forem criadas as condições para que assim resulte” (Mastropierro, 2006, 15).

As propostas de ambas as autoras partem de perspetivas excessivamente restritivas, focando- se numa avaliação e seleção imposta pelos arquivistas, fazendo depender a atribuição do estatuto de arquivo aos documentos pessoais de uma análise documental e tratamento arquivístico, da sua integração numa instituição de memória, e da sua importância para a difusão junto do público, negando tacitamente essa qualidade aos arquivos pessoais e familiares na posse dos seus proprietários, ou depositados em instituições mas não submetidos ao crivo de uma análise especializada.

Na versão inglesa do glossário multilingue do ICA não se encontra qualquer definição para

personal archive, sendo ao invés utilizado o termo personal papers, com base num outro

glossário terminológico editado pela Society of American Archivists (SAA), em 2005, da autoria de Pearce-Moses. O autor deste glossário considerou os archives sob diferentes significados, sendo o primeiro referente ao arquivo entendido enquanto conjunto de documentos, definindo- os como os “materiais criados ou recebidos por uma pessoa, família ou organização, pública ou privada, no decurso das suas atividades e preservados em razão do valor da informação contida, ou como evidência das funções ou responsabilidades do seu produtor, especialmente aqueles mantidos de acordo com os princípios da proveniência, ordem original, e controlo coletivo” (Pearce-Moses, 2005, 30).

Tal como anteriormente mencionado a propósito do princípio da proveniência implícito na definição de fundo proposta na NP 4041, também a referência de Pearce-Moses à “ordem original” tem subjacente um outro princípio teórico da arquivística, igualmente formulado no século XIX, sendo comummente atribuída a sua teorização aos holandeses Samuel Müller, Joseph Feith e Robert Fruin, autores de um manual de arquivística para organização e descrição de arquivos (Muller et al., 1973), conhecido usualmente como o Manual dos

Arquivistas Holandeses, numa alusão à nacionalidade dos seus autores. Trata-se de um

princípio baseado na presunção da preservação da estrutura do arquivo e da organização dos seus documentos conforme dada pelo seu produtor, em função das suas atividades, que

deverá ser respeitado no âmbito do tratamento arquivístico.32

32 Apesar de haver já quem defendesse e praticasse a ideia do respeito pela designada “ordem original”, é

na obra dos arquivistas holandeses que usualmente se considera que o princípio foi formalizado teoricamente enquanto método de uma arquivística que, progressivamente, se assumia como disciplina autónoma. Mesmo assim, alguma literatura anglo-saxónica reivindica a articulação teórica do princípio