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Da memória individual à memória coletiva

CAPÍTULO 3 – PRESERVAR O INDIVIDUAL, PROJETAR O COLETIVO

3.1. Da memória individual à memória coletiva

Todos temos presente o ato da memória e a sua importância associada ao ato de lembrar, e também à perda de algo ou de alguém, ou ao esquecimento. O processo de lembrança é fundamental para a capacidade humana de conceber o mundo. A memória encontra-se nos alicerces identitários de qualquer indivíduo, instituição ou grupo social. É crucial para a capacidade de dar sentido às circunstâncias presentes, e está igualmente ligada a emoções, que evoca, e estão, em parte, relacionadas com o passado. É condição essencial da cognição e do julgamento reflexivo, porque funciona em cada ato de perceção, em cada ato de intelectualização, em cada ato de linguagem (Terdiman, 1993, 9).

A memória espontânea é, todavia, perecível. A sua conservação implica o registo de testemunhos, assim como a existência de lugares que, pela mensagem que transmitem, ajudam a lembrança, contrariando o seu desvanecimento. Os “lugares de memória”, na

expressão de Pierre Nora, são os restos e os marcos testemunhais do passado, unificando ilusões de eternidade (Nora, 1993, 13). O lugar de memória designa, em função de uma materialidade inscrita no presente, a exterioridade do passado, que, desse modo, se inscreve no tempo, orientando a busca, a investigação, a pesquisa. O significado do passado permanece preservado nos seus vestígios, trazidos ao tempo presente e nele interpretado, numa cadeia de significação. Ou seja, a lembrança é a imagem que se produz do passado, o que se imagina como representação desse passado no presente (Ricouer, 2007, 57-58). O ato de lembrar é uma atividade do indivíduo, mas mesmo as lembranças mais íntimas têm necessidade de suportes sociais, tanto como referência, como para serem ratificadas (Oliveira, I.C.B., 2009, 28). A memória individual toma consciência de si própria com base nos conhecimentos recebidos dos outros, e desenvolve-se a partir de uma análise subtil que o indivíduo faz da pertença a um grupo (Ricouer, 2007, 130), o que remete para a ideia de uma “memória coletiva”, conceito teorizado e desenvolvido a partir dos estudos de Maurice

Halbwachs.185

Perante a oposição entre a ideia da memória no indivíduo como surgimento casual e uma tentativa consciente de reconstituição da memória, através da busca racional do passado, Halbwachs propôs a ideia de memória coletiva, enquanto memória de um grupo, de uma comunidade, região ou nação. O argumento central na obra do autor consiste na afirmação de que a memória individual existe sempre a partir de uma outra que é coletiva, pelo simples facto de que todas as lembranças de um indivíduo são constituídas em função da sua pertença a um grupo, ou comunidade mais geral, que, no conjunto, determina todas as referências da sua existência e da própria consciência individual. A origem dos vários sentimentos, paixões, ideias e reflexões que atribuímos a nós próprios são, de um modo ou de outro, inspirados pelo(s) nosso(s) grupo(s) de pertença. A capacidade de lembrar existe quando se assume o ponto de vista de um ou mais grupos, e nos situamos em uma ou mais correntes do pensamento coletivo (Halbwachs, 2004, 31, 35).

As lembranças podem, a partir desta vivência em grupo, ser reconstruídas. A criação de representações do passado assenta na perceção de outras pessoas, no que se imagina ter acontecido ou pela interiorização de representações do que pode ser designado por memória histórica. A lembrança é, neste sentido, “uma imagem engajada em outras imagens” (Halbwachs, 2004, 78), ou seja, “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada” (Halbwachs, 2004, 75-76).

185 Halbwachs introduziu a ideia da memória coletiva numa obra sobre os quadros sociais da memória

publicada em 1925, desenvolvendo posteriormente o conceito numa outra publicada postumamente, em 1950 (Halbwachs, 1994, 2004).

A este propósito, Michael Pollak salientou que a memória, seja ela individual ou coletiva, é composta por vários elementos constitutivos, destacando em particular os acontecimentos, as pessoas ou personagens e os lugares, sendo que, qualquer deles, pode não pertencer ou ter pertencido ao “espaço-tempo” da vida de uma pessoa ou de um grupo. Às experiências vividas individualmente podem juntar-se as que foram vivenciadas pelo grupo ou sociedade em que cada indivíduo se insere, mesmo que este não as tenha experienciado de forma direta. A memória também introduz personagens, umas conhecidas e outras que não pertencem necessariamente ao tempo que cada um vive, ou daquele em que já viveu, mas sobre as quais se tem algum tipo de conhecimento indireto, através da transmissão e assimilação de informação. Da memória fazem ainda parte lugares, dos quais se guardam imagens afetivas, herdadas da infância ou de outros períodos significativos da vida, cujos contornos se diluem também com o tempo, ou de outros cuja memória é partilhada por gerações ou por grupos, sendo, não raras vezes, mitificados (Pollak, 1992, 202-203).

Neste quadro, a memória seleciona, eliminando o que não é útil ou o que se pretende esquecer, por ser considerado supérfluo, desnecessário, inútil, ou por trazer más recordações. Ao fazer essa seleção, a memória determina também o esquecimento, tratando-se, portanto, do que Pierre Nora designa de “destruição controlada” (Nora, 1993,15). Ao mesmo tempo, o ser humano tem necessidade de fixar o que pretende lembrar, para evitar o esquecimento e a perda, seja para recordar emoções, seja para comprovar atos e acontecimentos, perante si e perante os outros.

A memória humana não tem, em si mesma, forma de conservar o passado; é um produto do esforço, mais espontâneo ou mais racional, para o reencontrar e reconstruir, sempre a partir do presente. Sendo tão importante na atividade humana, só o registo da informação que se pretende fixar permite que se perpetue no tempo, providenciando um quadro de referências de contextualização. Para contrariar a perda da memória, o esquecimento, e para sustentar o ato de lembrar, o Homem encontrou uma solução – o documento. Sob os mais distintos suportes, o registo de informação fora do cérebro humano, mesmo que apenas por meio de representações simbólicas, tornou-se garantia da transmissão das ações e da memória em si mesmas.

Ao longo da sua vida, os indivíduos produzem e utilizam informação, e tomam decisões quanto a guardar ou descartar os diversos tipos de documentos que fixam a sua memória. A produção e a acumulação de informação pelas pessoas obedecem a diferentes necessidades, desde o cumprimento de imperativos legais, ou profissionais, a razões emocionais. A decisão sobre qual a informação a guardar constitui um ato de atribuição de valor, e, na esfera do indivíduo, diversas motivações e necessidades imperam, podendo sobrepor-se no processo de formação dos arquivos.

Existem numerosas razões para a produção, acumulação e preservação continuada de informação. Os indivíduos geram informação ao longo da sua vida de forma inevitável, logo a partir do seu nascimento. Boa parte da informação é gerada natural e involuntariamente no decurso da existência e atividades individuais, por obrigações jurídicas e razões imperativas, que conduzem à preservação de documentos tendo em vista o seu valor como prova legal ou administrativa, seja para acesso imediato ou para referência e reutilização futura.

Todavia, no arquivo pessoal existe também espaço para a criação e acumulação de informação de forma inteiramente deliberada e voluntária, sem que tal dependa necessariamente de qualquer tipo de obrigação ou imposição, jurídica ou legal, como é o caso de registos autobiográficos, fotografias ou vídeos, entre vários outros tipos de documentos, criados e preservados com o propósito de servirem para a compreensão e fixação da memória do passado individual ou da história familiar. Também se pode enquadrar em atos e decisões voluntárias os atos de colecionismo, como a reunião de documentos produzidos ou relativos a terceiros, ou sobre acontecimentos experienciados diretamente ou vividos por outrem, em que a acumulação e organização se rege por algum tipo de característica intrínseca, que serve à fixação da memória.

Razões emocionais, relacionadas com a memória evocada por intermédio de determinados documentos, podem igualmente determinar a decisão de guardar, em vez de eliminar, mesmo quando esses documentos não possuam ou tenham perdido a validade jurídica fixada por quadros legais. Embora possa parecer que as pessoas acumulam informação que não é necessária ou útil, a opção para o seu não descarte e a justificação da sua presença nos arquivos pessoais devem ser consideradas à luz destas razões, e do facto de que, individualmente, é possível atribuir valor ao aparentemente inútil.

Mesmo que a criação ou a decisão de preservação de determinados documentos possa ser considerada um ato voluntário, o seu fim é o de servir de evidência a algo, tendo sempre valor probatório e informativo; logo, esses documentos têm uma funcionalidade própria, mesmo que apenas ligada ao domínio do emotivo. Por outras palavras, pode considerar-se que os arquivos pessoais são um reflexo de constantes atos de provar, informar, recordar, no qual razões funcionais e sentimentais se conectam na atribuição de valor.

Em 1969, Michel Foucault afirmou que os arquivos não são nem a acumulação física de documentos e dados que os indivíduos e as sociedades armazenam, mas um sistema de declarações e uma rede de eventos que se combinam para criar qualquer momento histórico, formando uma entidade histórica prévia sobre a qual nossas afirmações atuais são preditas e através da qual são definidas e tornadas possíveis. Foucault descreve o seu conceito de arquivo como “a fronteira do tempo que envolve a nossa presença” e que, o que “fora de nós, nos limita” (Foucault, 1969, 130). Para o autor, os documentos constituem repositórios

materiais de memórias armazenadas, refletindo um processo de construção identitário, feito de escolhas de registo e de omissões.

Foucault inspirou vários autores, como Philippe Artières (1998) que considerou a constituição de arquivos pessoais como resultante de um processo deliberado pelo qual o indivíduo toma decisões sobre o que irá representar de si, incluindo formas de seleção e organização do todo ou de parte dos seus documentos, com vista a projetar um determinado tipo de imagem, entre o real e o manipulado. Para este autor, o arquivo pessoal corresponde à construção de uma narrativa autobiográfica, no qual o caráter normativo e imperativo de que deriva a criação de determinados documentos, por via de uma injunção social para efeitos de prova jurídica ou legal, é apenas um dos aspetos do que designa “arquivos do eu”, e da necessidade de “arquivar a própria vida”. Deste modo, o normativo e o objetivo cedem lugar ao que apelida de um “movimento de subjetivação” (Artières, 1998, 11).

Esse “arquivo do eu” pode significar uma simples acumulação voluntária para si próprio, mas também ser direcionado para se vir a constituir num testemunho, transpondo-se, assim, a memória individual para outros. Neste processo de transmissão de testemunho tem lugar o valor dado a aspetos da identidade individual, cruzando a memória coletiva e o sentimento de pertença a determinados grupos.

A partilha da informação de um indivíduo com outros, durante o período de vida, pode destinar- se a um amplo leque de pessoas, incluindo família, amigos, colegas e até mesmo outras não próximas. Por outro lado, a decisão de preservar para a posteridade determinados registos documentais tem subjacente uma valorização das ações individuais como um legado ao coletivo, usualmente de aspetos relacionados com a personalidade, a criatividade individual, carreiras ou trajetórias de vida.

O processo de construção do arquivo do “eu” pode, assim, envolver a existência de atos de seleção, de eliminação ou de associações voluntárias. Neste sentido, podem gerar-se deliberadas omissões e silêncios, no intuito de fechar a possibilidade de acesso a domínios de maior privacidade e intimidade; ou sobrevalorizarem-se aspetos da vida pública e do percurso pessoal, deixando outros na penumbra ou obscurecidos. Pode haver lacunas temporais, temas não abordados, e mesmo nos casos em que há muitos documentos sobre um mesmo assunto também podem existir silêncios. De uma forma ou de outra, voluntária ou involuntariamente, existem sempre contextos da vida individual que ficam esbatidos nos arquivos pessoais, se entendidos enquanto lugares tangíveis da memória individual.

Nos arquivos pessoais a produção, reunião, organização, utilização e reutilização de informação, obedecem a diversas temporalidades, por vezes além daquelas relativas aos acontecimentos ou atividades que se pretende documentar. Os documentos não são guardados todos ao mesmo tempo, e, muitas vezes, são reutilizados e reenquadrados pelos

seus produtores, estando sujeitos frequentemente a alterações no seu próprio significado (Heymann, 2008, 8).

Tendo estas questões presentes, vários autores têm perscrutado os arquivos pessoais no sentido de indagar, através deles, a possibilidade de estes refletirem a personalidade dos indivíduos, buscando o conhecimento biográfico dos seus titulares nos traços da memória individual.

Jennifer Douglas e Heather MacNeil examinaram, através do estudo dos arquivos de três escritoras canadianas, o alcance da compreensão do carácter e das intenções de um escritor através do seu arquivo, a partir de dois tipos de abordagem: verificando a aplicação dos princípios do tratamento arquivístico do respeito dos fundos e da ordem original, e analisando a

literatura sobre a escrita de vida (Douglas e MacNeil, 2009).186

Para as autoras, há uma relação direta entre o propósito do “arquivo do eu” e os textos memorialistas que constituem a “escrita do eu”, ambos funcionando como formas de representar o indivíduo sob determinados intuitos, de transmitir uma imagem para a apresentar aos outros. A escrita de histórias de vida, através de diários, cartas, e outros tipos documentais de carácter autobiográfico – entre os quais se podem considerar igualmente filmes, álbuns fotográficos, entrevistas, e páginas criadas na lnternet –, constitui uma forma de criar e transmitir informação, mas que dificilmente assegura um acesso direto à mente e ao carácter dos seus criadores (Douglas e MacNeil, 2009, 32-34), dada a presença sistemática de

construções do “eu”.187

Nos arquivos pessoais que analisaram, Douglas e MacNeil constataram que alguns deles foram “trabalhados” pelos seus próprios produtores, constituindo assim um produto das suas decisões e esforços para criar um arquivo de “si”, num trabalho de construção com propósitos bem definidos (Douglas e MacNeil, 2009, 37). As autoras concluíram deste modo que a capacidade de um arquivo relevar o carácter do escritor é fortemente restringida pelos esforços do próprio na construção do “eu”, e ainda pela interferência de terceiros sobre o arquivo, com a

186 A investigação das autoras teve por base a coleção L. M. Montgomery (detida pela Universidade de

Guelph), o fundo Marian Engel (na McMaster University) e o fundo Alice Munro (na Universidade de Calgary).

187 Segundo Huyssen, os relatos de tipo memorialista baseiam-se num olhar retrospetivo, a partir de um

certo distanciamento temporal em relação aos acontecimentos descritos, não raramente redigidos em tom laudatório, com fins implícitos de enaltecimento de um acontecimento ou de uma pessoa, por vezes do próprio que os escreve. Podem revelar uma componente de imaginação sobre determinados lugares de memória como uma espécie de oásis ou refúgio, e também a presença de mecanismos identitários. Por essa razão, Huyssen considera que as escritas de vida são narrativas frágeis como fonte de informação, pois “nem sempre é fácil traçar uma linha de separação entre passado mítico e passado real, um dos nós de qualquer política de memória em qualquer lugar. O real pode ser mitificado tanto quanto o mítico pode engendrar fortes efeitos de realidade” (Huyssen, 2000, 16).

perversão de princípios de teorias arquivísticas, como a proveniência ou a conservação de uma suposta ordem original.

Nesse sentido, as conclusões a que chegam, perante os casos estudados, situam-nas na mesma perspetiva já anteriormente apontada por Artières, de que os arquivos pessoais configuram um trabalho autobiográfico, considerando mesmo falaciosa a ideia de que um arquivo possa fielmente representar a personalidade, o carácter ou as intenções de alguém. A existência de escolhas do que merece ter relevo e do que deve ser obscurecido está, nestes casos, sempre presente. O arquivo pessoal, tal como é transmitido a outros, supostamente representando a memória de um indivíduo, não reflete a totalidade de um processo de acumulação e não pode constituir um reflexo fidedigno ou inteiramente verídico de um percurso de vida.

Outros autores têm encontrado tendências semelhantes em arquivos pessoais, como é o caso de Luciana Heymann na sua análise sobre o arquivo do brasileiro Capanema, também um exemplo de reordenação constante do próprio ao longo da vida, com assumidos propósitos autobiográficos (Heymann, 1997, 47). Por outro lado, se há indivíduos que, ainda em vida, organizaram o seu próprio arquivo com a posteridade em mente, outros há que nunca tiveram intenção de o fazer.

Em qualquer das situações, não é displicente a eventual influência de terceiros no processo, e mesmo de visões mais latas sobre o papel dos arquivos e de uma potencial ou efetiva entrega a uma instituição de memória. Entre esses terceiros, contam-se familiares, amigos, investigadores que a eles tiveram acesso e até os próprios arquivistas. A interferência de terceiros pode acontecer ainda em vida do produtor, ou posteriormente.

Heymann salientou, a propósito do arquivo de Epitáceo Pessoa, o peso da intervenção de um sobrinho na sua organização e acumulação, ainda em vida do seu titular, continuada depois da sua morte (Heymann, 1997, 47-48). Outros arquivos sofreram interferências de vários intervenientes, como é o caso do de Filinto Müller, que revela ausências e seleções, destruição por acidente e por vontade própria, e também informação deliberadamente excluída pelos herdeiros, conforme salientou a mesma autora (Heymann, 1997, 55-56).

Existem também exemplos do impacto de outros agentes, como seja de investigadores que, na pesquisa por materiais diretamente junto dos proprietários, podem interferir na própria estrutura e organização da informação, em função da intervenção direta no espaço doméstico do produtor do arquivo (Ashmore et al., 2012, 82).

A busca pela monumentalização da memória sobre os indivíduos tem conduzido também à inclusão, em alguns arquivos pessoais, de documentos com data posterior à da morte do seu titular, o que pode ter ocorrido antes ou após a sua incorporação numa instituição de memória. Ao receberem tratamento arquivístico profissional, estes documentos, que não foram

produzidos e reunidos pelos titulares dos arquivos, podem ser remetidos para séries descritivas próprias, sob a designação de documentação complementar ou outra semelhante, ou até

surgirem de forma indiscriminada no seio da organização e classificação elaborada.188 A

mesma vontade de fixar aspetos da memória relativa ao percurso individual de determinadas personalidades pode também significar que outros documentos, cuja data de produção se enquadra nos respetivos períodos de vida, possam vir a ser agregados aos arquivos a

posteriori, no intuito mais ou menos explícito de enriquecer ou complementar informação.189 Também as diferentes intervenções e opções dos arquivistas podem ser observadas em casos de arquivos pessoais que foram adquiridos em diferentes fases, das quais foram resultando instrumentos de descrição e recuperação de informação sucessivos e não necessariamente consistentes e idênticos entre si. A construção e a alteração de quadros de classificação, realizada por vezes ao longo de décadas, sob diferentes camadas de leitura de princípios arquivísticos e sob influência de tradições de organização, de preferências individuais ou de culturas institucionais, deixam também a sua marca na constituição dos arquivos pessoais e nas narrativas sobre estes e os indivíduos que os formaram. Por essa razão, Jeremy Heil sustenta que tentativas de reorganização ou reclassificação podem revelar-se, nestes casos, imprudentes, sendo talvez mais importante compreender as sucessivas intervenções (Heil,

2013, 46).190

Estando os arquivos pessoais sujeitos a múltiplas seleções, reordenações, acrescentos, sonegações, e outras ações, é necessário não se incorrer no que Heymann refere como “ilusão

188 No Anexo II da dissertação podem encontrar-se numerosas situações, para o caso português, de

arquivos em que a datas de acumulação se estendem para além da morte das pessoas singulares que os intitulam. Estes documentos podem ser, por exemplo, referentes a homenagens póstumas, ou relacionarem-se com acontecimentos que digam respeito à personalidade em causa, abrangendo uma