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4. O FOCO TEÓRICO

4.3. Do sentido e das significações

Bakhtin se propõe diferenciar e elucidar ± sem hierarquizar ± como se produzem o sentido da enunciação completa, seu tema e a significação, buscando desvendar a palavra em sua plenitude, já que não toma a palavra como uma unidade neutra ou recortada do horizonte social de quem a profere ou a quem ela se dirige. Para a diferenciação a que se propõe, parte inicialmente de que

Um sentido definido e único, uma significação unitária, é uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo. Vamos chamar o sentido da enunciação completa o seu tema. O tema deve ser único. Caso contrário, não teríamos nenhuma base para definir a enunciação (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 128). Esse momento único do tema, no interior de cada enunciação, ao qual se refere o autor, é por um lado incomparável àquele que lhe precedeu, mas por outro só existe porque é fundado nessa enunciação que lhe antecedeu e constituiu, ancorado que está na existência do que é VXFHVVRUD 'HVWH PRGR WRGR WHPD FRPR SDUWH GD HQXQFLDomR ³p QD YHUGDGHDVVLPFRPRDSUySULDHQXQFLDomRLQGLYLGXDOHQmRUHLWHUiYHO´

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 128), constituído tanto pelos elementos não verbais da situação, quanto pelas formas linguísticas da língua, ou seja, as palavras, os sons e as entoações. É condição do tema sua concretude e sua unicidade. Não há como se reportar a um tema sem considerar que, na singularidade que historicamente o faz ser, exprime- se a tensmRGDXQLYHUVDOLGDGHDSUHVHQWDGDFRPR³XPDVLWXDomRKLVWyULFD concreta que deu origem à enunciação" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 128). A significação, por seu turno, é definida pelo autor por VHXVHOHPHQWRVTXHVmRUHLWHUiYHLVFRQYHQFLRQDLVH³LGrQWLFRVcada vez que são repetidos" (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 129).

O que é passível de reiterabilidade (que pode ser repetido em TXDOTXHU VLWXDomR D H[HPSOR GD HORFXomR ³TXH KRUDV VmR"´  QmR WHP vida própria, não está marcado axiologicamente e é o significado do enunciado com seus elementos convencionais. Na significação não H[LVWHXPVHQWLGRHPVL³H[LVWHXPDSRWrQFLDGHVHQWLGR´ %$.+7,1 2003, p. 381). A significação só tem presença viva como possibilidade SRWHQFLDO GH FRQVWUXLU RV VHQWLGRV HOD p ³XP DSarato técnico para a UHDOL]DomRGRWHPD´ %$.+7,192/2&+Ë129S HTXH pode reiteradamente ser utilizada em diferentes enunciações e em distintos contextos extraverbais, já que é fundada nas convenções sociais da comunidade sígnica em que está em uso.

O tema, assim como o sentido, é irreiterável e irreprodutível, posto que só ocorre daquele modo naquele momento concreto e KLVWyULFRSRUWDQWR~QLFR³pXPVLVWHPDGHVLJQRVGLQkPLFRHFRPSOH[R que procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado PRPHQWRGDHYROXomR´ %$.+7,192/2&+Ë129S 

A significação que ocorre no interior de cada tema, por ser DEVWUDWD³pLQVHSDUiYHOGDVLWXDomRFRQFUHWDHPTXHVHUHDOL]D>@GHVVD maneira, o tema absorve, dissolve em si a significação, não lhe deixando a possibilidade de estabilizar-se e consolidar-VH´ (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 130).

Embora Bakhtin distinga tema de significação no todo do enunciado, ele também destaca tanto a mutualidade existencial entre estes, quanto a impossibilidade de definir claramente a zona fronteiriça entre ambos. Nessa relação de interdependência entre tema e significação, o tema requer certa estabilidade da significação para PDQWHURHQODFHGRTXHRFRUUHXFRPRTXHRFRUUHUi³FDVRFRQWUiULRHOH perderia, HPVXPDRVHXVHQWLGR´ %$.+7,192/2&+Ë129 p. 130).

O autor atribui a esta interrelação, criada entre tema e VLJQLILFDomRGLIHUHQWHVIXQo}HVTXHHOHDVVLPIRUPXOD³RWHPDFRQVWLWXL o estágio superior real da capacidade lingüística de significar. De fato, apenas o tema significa de maneira determinada. A significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma SRVVLELOLGDGH GH VLJQLILFDU QR LQWHULRU GH XP WHPD FRQFUHWR´ (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 131).

No contexto investigativo, a diferenciação entre tema e significação pode ser assim colocada: tema - investiga a significação contextual de um dado enunciado nas condições de uma enunciação concreta, (renovação incessante, vida, instabilidade); significação - investiga o significado da palavra no sistema da língua ou, em outros termos, a investigação da palavra dicionarizada (estável).

Investigar a significação equivale a investigar o que já está posto, ou seja, a palavra em um enunciado dicionarizado e monológico, o que se opõe ao objeto das ciências humanas que é o ser expressivo e falante e fundamentalmente dialógico. A noção bakhtiniana de mútua interação aqui se faz presente novamente, pois tema e significação tem sua existência marcada pela complementaridade, já que o tema existe enquanto tal sob o suporte, ou melhor, a estabilidade da significação,

é por isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma

identidade igualmente provisória

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 136). A significação só se realiza no tema e este, por sua vez, tem uma necessidade existencial de significação. Nas palavras de Bakhtin,

A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 132). Assim, é possível compreender que o que confere unidade à enunciação é a noção de tema que, caracterizada pelo seu momento

único, dá passagem ao que é proferido na transitoriedade que lhe é constitutiva. Ou, dito de outro modo,

enquanto a significação é por natureza abstrata e tende à permanência e à estabilidade, o tema é concreto e histórico e tende ao fluido e dinâmico, ao precário, que recria e renova incessantemente o sistema de significação, ainda que partindo dele (CEREJA, 2005, p. 202).

Sem os elementos, ou sem as palavras que constituem cada VLWXDomR ³QDTXHOD FDGHLD GD FRPXQLFDomR GLVFXUVLYD´ %$.+7,1 2003, p. 306) e que são imprescindíveis à enunciação, torna-se impossível compreendê-la como tal, pois sem as palavras ela não existiria. O tema ³p XP DWULEXWR DSHQDV GD HQXQFLDomR FRPSOHWD HOH pode pertencer a uma palavra isolada somente se essa palavra opera FRPR XPD HQXQFLDomR JOREDO´ %$.+7,192/2&+Ë129  S 130).

%DNKWLQSDUWHGRSUHVVXSRVWRGHTXH³WRGDFRPSUHHQVmRpSUHQKH de resposta´ %$.+7,1  S   H DR WUDWDU R SUREOHPD GD compreensão ativa como ato de "opor à palavra do locutor uma contrapalavra", acredita que a distinção entre tema e significação ³DGTXLUH SDUWLFXODU FODUH]D HP FRQH[mR FRP R SUREOHPD GD FRPSUHHQVmR´ %$.+TIN, 2004, p. 131).

Neste sentido, Bakhtin (2003, p. 316) diferencia e elucida que FRPSUHHQGHU VLJQLILFD ³YHU H FRPSUHHQGHU RXWUD FRQVFLrQFLD D FRQVFLrQFLDGRRXWURHVHXPXQGRLVWRpRXWURVXMHLWR´'HPRGRTXH ³QD H[SOLFDomR H[LVWH DSHQDV XPD FRQVFLrncia, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. Não pode haver relação dialógica com o objeto, por isso a explicação é desprovida de elementos GLDOyJLFRV´ -i D FRPSUHHQVmR FRPR HYHQWR GLDOyJLFR TXH p H[LJH responsivamente a participação ativa dos interlocutores e traz em si os indicativos da resposta que não se resume nos termos de estar no lugar do outro, mas sim com o outro.

Para o autor, a compreensão ativa e responsiva é uma fase que precede e prepara uma resposta, já que, para BDNKWLQ S ³WRGD compreensão concreta é ativa [...] Em certo sentido, o primado pertence justamente à resposta, como princípio ativo: ela cria o terreno favorável jFRPSUHHQVmRGLQkPLFDHLQWHUHVVDGD´2IDODQWHWHPXPDH[SHFWDWLYD em relação ao ouvinte que não é passiva, espera que ele concorde, execute, polemize, mas que de algum modo trave um diálogo com o

falante, visto por Bakhtin como um respondente em si mesmo. Isto ³SRUTXHHOHQmRpRSULPHLURIDODQWHRSULPHLURDWHUYLRODGRRHWHUQR silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da OtQJXD TXH XVD´ %$.+7,1  S   PDV WDPEpP SRUTXH p R falante quem coloca em situação de uso, na forma responsiva e ativa, os enunciados anteriores, advindos dele ou não e aos quais seu próprio enunciado está encadeado.

Conforme Bakhtin é a questão da compreensão ativa e, portanto GLDOyJLFDTXHQRVDSUR[LPDGRHQWHQGLPHQWRGRWHPDYLVWRTXH³DFDGD palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma UpSOLFD´ %$.+7,192/2&+Ë129S TXHFDUUHJDHPVL novos enunciados, constituídos na esteira de outros tantos. A partir disso, é possível pensar a réplica, no sentido da compreensão ativa e responsiva feita pelo locutor, de modo que o falante não seja visto como XP³$GmREtEOLFR´ %$.+7,1S TXHVHHQFRQWUDSHUDQWH objetos ou situações que ainda são virgens em sua designação.

A compreensão ativa e responsiva, sempre dialógica já que implica uma resposta, se constitui desde os primeiros enunciados proferidos, escritos, gestualizados, enfim, semiotizados pelo locutor, quando o ouvinte vai concordando, discordando ou ampliando e, com isso, vai orientando a enunciação de outrem, pois, conforme Bakhtin/Volochínov (2004, p.98),

toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as.

Com esta atitude de compreensão ativa e responsiva vai se elaborando a contrapalavra daquele que ouve a palavra do locutor, ou seja, compreender é contrapor à palavra daquele que fala uma outra palavra. É num processo interativo, a partir do ponto de vista e visão de mundo de um e de outro, que cada palavra da enunciação que estamos em vias de compreender constitui-se em diálogo.

1HVWHV WHUPRV ³FRPSUHHQGHU p RSRU j SDODYUD GR ORFXWRU uma FRQWUDSDODYUD´ %$.+7,192/2&+Ë129  S   3RUWDQWR compreender é dialogar, é estar com o outro responsivamente, ou

melhor, é estar pleno, repleto alteritariamente um do outro na interação TXH DOL VH FRQVWLWXL 3DUD R DXWRU ³QmR WHP VHQWLGR Gizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal, pois a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, LVWRpHODVyVHUHDOL]DQRSURFHVVRGHFRPSUHHQVmRDWLYDHUHVSRQVLYD´ (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2004, p. 132).

Deste modo, é possível pensar que reside na compreensão a possibilidade da palavra em confronto desestabilizar os sentidos já constituídos, dando lugar para que os diferentes sentidos que ali espreitam possam circular e se realizem pelas e nas interações dos interlocutores que, presentes ou não, mutuamente constituam novos significados frente às palavras e às coisas da vida. Neste sentido, está presente nos enunciados de cada sujeito a fala de todos os outros com os quais cada sujeito compartilhou e compartilha axiologicamente seu horizonte social.

1D HVWHLUD GR HQWHQGLPHQWR GH TXH ³D VLJQLILFDomR HVWi SDUD R signo lingüístico assim como o tema está para o discurso e para a HQXQFLDomR´ &(5(-$  S   QmR VH SRGH OHYDU HP FRQWD D significação em seu estado dicionarizado, face à compreensão ativa da potencialidade do vir-a-ser dos sentidos possíveis da e na significação. Para além dos elementos linguísticos, na mutualidade constitutiva da interação do tema/sentido com a significação, em sua esfera extraverbal, é que se pode estudar o sentido que pertence a cada um e a cada momento da enunciação, o que determina a não existência de um único sentido.

Sentido compreendido em sua totalidade sempre inacabada e, por isso, sempre dinâmico em seu processo de retomada e de alteração, constituído numa situação única de enunciação, tanto pelo falante quanto pelo destinatário num determinado grupo social. Se não fosse nestes termos, teríamos uma só direção, uma só interpretação para a leitura de um mesmo textoSRLV³SDUD%DNKWLQRVXMHLWRQmRVHFRQVWLWXL apenas pela ação discursiva, mas todas as atividades humanas, mesmo as mediadas pelo discurso, oferecem espaço de encontros de FRQVWLWXLomR GD VXEMHWLYLGDGH SHOD FRQVWLWXLomR GH VHQWLGRV´ (MIOTELLO, 2005, p. 171). Nessa perspectiva, é possível aventar que VmR RV DWRV GH IDOD RX DLQGD ³D LQWHQomR GLVFXUVLYD GR IDODQWH´ (BAKHTIN, 2003, p. 282) e a compreensão ativa e responsiva (axiologicamente responsável pela produção de sentido) que orientam a seleção dos elementos linguísticos e sígnicos que produzem e emolduram os enunciados.

Nestes termos, tema e significação compõem indissociavelmente, na arquitetura bakhtiniana, todo o processo de concepção de linguagem como lugar de interação humana que permite estar e pensar o mundo enunciativamente objetivados em seus afetos e desafetos, gestos, entoações, ditos e não ditos presentes na alternância e no inacabamento dos enunciados vivos e concretos.