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Na partilha de vozes e fotografias: o retrato coletivo

1. AJUSTANDO AS LENTES: PALAVRA E CONTRAPALAVRA

1.4 Na partilha de vozes e fotografias: o retrato coletivo

Os procedimentos que levaram à composição do corpus investigativo desta pesquisa foram: a) entrevistas individuais e coletivas e o trabalho inspirado na técnica do grupo focal; b) anotações da pesquisadora das observações feitas durante a pesquisa; c) gravação em áudio e vídeo das entrevistas e do grupo focal; d) tomadas fotográficas; e) análise das fotografias produzidas pelos estudantes pesquisados. O processo da coleta desses dados ocorreu em três momentos16, conforme especificado a seguir:

1º Momento: organização das informações preliminares;

-levantamento numérico dos estudantes no PRONERA/SC;

-preparação primeiro campo.

2º Momento: trabalho de Campo que se subdivide em quatro etapas:

-1ª etapa: Proposta de pesquisa aos três grupos;

-2ª etapa: Produção coletiva das fotos em cada uma das três turmas de EJA;

- 3ª etapa: Devolução das fotos, entrevista coletiva; - 4ª etapa: Entrevistas individuais.

3º Momento: Atividade de livre inspiração no Grupo Focal. - 1ª etapa: Grupo Focal17;

16 O detalhamento sobre esses momentos pode ser consultado no anexo 3.

17 Nessa atividade estiveram presentes a orientadora desta tese, Prof. Drª Silvia Zanatta Da Ros e uma bolsista, sendo que esta última deu suporte técnico às gravações e a estrutura de acolhimento do grupo em Florianópolis.

- 2ª etapa: Retorno a campo (entrevistas com moradores);

Este terceiro momento da coleta de dados, em especial a sua 1ª etapa, foi realizado com o propósito de consolidar, com o grupo de VXMHLWRVR³UHFRQWUDWR´GHSHVTXLVDSRUPHLRGDUHWRPDGDGDWHPiWLFD problematizada pelos enunciados verbais e fotográficos, sendo estes últimos produzidos por eles e pelos demais estudantes de cada uma das turmas de EJA18.

A opção por retomar os enunciados verbais e fotográficos dos VXMHLWRVGDSHVTXLVDSHODOLYUHLQVSLUDomRGRJUXSRIRFDODOpPGH³WUD]HU HOHPHQWRVDQFRUDGRVHPVXDVH[SHULrQFLDVFRWLGLDQDV´(GATTI, 2005, p. 7), permitiu observar, em movimento, as relações que se estabeleceram intra-grupo. A relação dos pressupostos teóricos bakhtinianos com a estratégia do grupo focal torna-se possível uma vez que o fio condutor de todo pensamento de Bakhtin é marcado pela interação verbal e seu caráter dialógico onde sujeito e social são mutuamente constituídos.

Entendendo os dois primeiros momentos como elos precedentes e constitutivos do discurso produzido neste 3º momento de geração dos dados, considero relevante detalhar, resumidamente, aqui o trabalho inspirado na técnica do grupo focal, desenvolvido com os sete sujeitos da pesquisa. Para concretizar este 3º momento da pesquisa, optei por reunir, durante três dias em Florianópolis, os representantes eleitos coletivamente nas três turmas de EJA. Este 3º momento marcou uma grande novidade, tanto para esta pesquisadora quanto para os estudantes, pois até então eu havia percorrido os 600 km entre Florianópolis e os três municípios de origem das turmas de EJA. Neste terceiro momento, isto se inverteu: os sete sujeitos da pesquisa se deslocaram dos seus assentamentos, acampamentos e pré-assentamento até Florianópolis. Essa etapa da pesquisa proporcionou, além de um primeiro encontro entre os sete sujeitos da pesquisa e, destes como um grupo com a pesquisadora, a sua primeira viagem à capital do Estado e para alguns o PRPHQWR GH FRQKHFHU H ³ERWDU RV SpV QD DUHLD GHVWH PDU]mR´ conforme disse Marta.

Escolhidos os três representantes de e com cada uma das três turmas e organizado todo o suporte para recebê-los19 em Florianópolis,

18 As considerações sobre os enlaces constitutivos desse momento já foram apresentados no item 1.2: Nas vozes dos sujeitos os contratos e recontratos da pesquisa.

19 Conforme discriminado no anexo 3, o local escolhido para alojar o grupo situa-se ao lado do campus universitário e oferecia alimentação, pernoite e salas para o trabalho em grupo. Esse aspecto facilitou não só a parte organizativa do trabalho de pesquisa, mas em especial a interação dos representantes das três turmas de EJA, sujeitos da pesquisa, que até então não se

como deslocamento da sua comunidade até a cidade mais próxima (não há ônibus nas suas comunidades pesquisadas que faça tal conexão): passagem; estadia; transporte para atividades urbanas; alimentação; máquina fotográfica e câmara de vídeo, entre outras, iniciei o planejamento desse momento de pesquisa com as três questões que emergiram na voz dos sujeitos da pesquisa na coleta de dados durante as idas a campo: importância da EJA; desistência da EJA e sentido da permanência na EJA. Como desdobramento das questões norteadoras acima elencadas, na interação dos enunciados verbais e enunciados fotográficos como dispositivos de diálogo entre os estudantes de EJA do Campo, utilizando como estratégia metodológica uma livre adaptação do grupo focal, definiram-se as linhas gerais para esta atividade de pesquisa proposta a seus sujeitos (anexo 3).

Tendo em vista que os sete sujeitos da pesquisa não conheciam a capital do Estado e destes somente dois conheciam o mar, conforme Edi, ³só de vista´ H SRU VROLFLWDomR GRV PHVPRV IRL SURJUDPDGD XPD atividade de passeio/pesquisa pela ilha. Terminado o reconhecimento das questões afetas ao contexto imediato da sua estadia em Florianópolis, foi feita uma retrospectiva do modo como, pelas suas vozes, fui compreendendo os enunciados-resposta às questões levadas nas duas idas a campo em cada uma das três turmas de EJA e que antecederam e constituíram a necessidade deste terceiro momento de pesquisa, no qual pudéssemos reunir os representantes das três turmas de EJA. Para tanto, disse-lhes que nos enunciados-resposta, verbais e fotográficos, coletados até então ficou evidenciado, em suas vozes, mais o sentido que cada um atribuiu ao fato de ser estudante da EJA do que propriamente sobre os companheiros que abandonaram as aulas de EJA. De modo que o abandono das aulas de EJA estaria presente durante o trabalho de livre inspiração no grupo focal, mas o que cresceu em importância para esta pesquisa foi: vocês, que não compõem o grupo de estudantes que se evadiu das aulas, ao serem ouvidos, podem contribuir na compreensão das desistências e na elaboração de importantes encaminhamentos do ponto de vista dos próprios estudantes da EJA do Campo.

conheciam. Nesses três dias, os sete sujeitos da pesquisa puderam por entre as rodas de chimarrão e as trocas de visitas aos quartos do alojamento, intercambiar informações sobre o Movimento, descobrir parentescos, trocar receitas culinárias e de sabão caseiro, chorar as saudades de casa, além dos afetos e delicadezas que se mostraram fortalecidos em cada um dos três dias de trabalho.

Compreendendo que o sentido se constrói no encontro/confronto entre diferentes vozes reveladas em ato dialógico, a dinâmica proposta para os três dias de trabalho consistiu em deflagrar, pelos enunciados fotográficos, discussões que não buscavam propriamente um consenso do/no grupo, mas antes voltado para a emergência da voz própria, o que, por convergência ou confronto, colocaria em pauta a escolarização na EJA do Campo.

No primeiro dia, foi entregue a cada sujeito de pesquisa um envelope contendo cópias, no tamanho 10x15, da produção fotográfica da sua turma de EJA (turma da qual eram representantes) e dentre elas deveriam escolher as fotos que, respondendo à pergunta de pesquisa de cada um dos dias de trabalho, mediariam as atividades em grupo. Transcrevo a seguir, na forma de tópicos, um resumo construído com os sujeitos da pesquisa ao final de cada um dos três dias de trabalho e que indica, além da pergunta norteadora, o sentido que em grupo foi atribuído oralmente aos enunciados fotográficos em resposta à questão posta em cada um dos três dias de trabalho que, por sua vez, é parte constitutiva das análises desta tese.

Primeiro dia - 1ª questão: O que as fotos escolhidas têm a ver com a importância da EJA para a vida de cada um de vocês?

Síntese das respostas - Aprender a fazer o planejamento da vida através do ensino; estudo tem que comover as pessoas; sustento; futuro; solidariedade; repartir; união; depende dos outros e dos instrumentos usados; interação; trocar as ideias; aprender a aplicar e reivindicar o fomento; saber mais; respeitar as diferenças; aprender outras formas de estar junto; devolver a coragem.

Segundo dia ± 2ª questão: O que na foto melhor representa a desistência dos estudantes das aulas de EJA?

Síntese das respostas - Humilhação por não saber; vergonha por não saber; não gostar do interior; ter governantes que não envolvem os jovens que ficam sem ocupação; por separar o trabalho da vida, não há mais exemplo da família trabalhando junto; ser tratado como criança; descompromisso do professor; trabalhar fora do assentamento; a sobrevivência é mais importante; o professor que não experimenta outras formas de ensino; achar que idade mais avançada não aprende.

Terceiro dia ± 3ª questão: O que vocês querem - qual é o sentido - e esperam com as aulas de EJA nos seus assentamentos e acampamentos?

Síntese das respostas - Como resposta a esta última pergunta foi feita em grupo uma composição fotográfica com as fotos escolhidas e

significadas no decorrer dos três dias de trabalho. Para iniciar os trabalhos deste terceiro dia, quando foi materializada a composição fotográfica, foram confirmadas verbal e visualmente as respostas- sínteses dos dois dias que o antecederam. A síntese da resposta para essa última pergunta foi transformada, pelo grupo, em enunciados escritos que emolduraram a composição fotográfica. Essas molduras ± enunciados escritos ± foram constituídas e escritas coletivamente quando da colagem das fotografias na cartolina. Convém salientar que essa composição fotográfica foi antecedida por uma discussão que coletivamente problematizou e definiu quais fotos fariam parte da mesma, objetivando-se por meio das fotografias dispostas e coladas no cartaz e pelos sentidos que a elas foram coletivamente sendo atribuídos. Assim, e já com uma prévia das fotografias, o grupo selecionou entre 8 tamanhos de cartolina que lhes foram disponibilizadas, um suporte compatível para a colagem das fotografias na cartolina escolhida coletivamente.

Para esse momento da pesquisa, o grupo estava sentado em torno de uma mesa onde puderam espalhar as fotos, buscando coletivamente expor e ampliar a atribuição de sentidos às fotografias selecionadas. À medida que se ampliavam as discussões sobre os sentidos que cada um atribuiu às fotografias, ou de qual delas selecionar para colar no cartaz, ou ainda sobre o que nele escrever, o grupo, inicialmente sentado, passou a levantar-se para melhor escolher as fotografias. A forma quadrada da mesa, com o grupo em volta dela, se por um lado criou a dificuldade de colocar as fotografias lado a lado, preservando a horizontalidade típica da maioria das composições fotográficas, por outro foi, ao buscar uma forma de composição onde todos tivessem acesso visual às fotos, o que deflagrou uma outra forma de articulá-las no suporte onde foram coladas, gerando então o que foi designado, para esta pesquisa, como Cartema. Esta designação deveu-se a disposição das fotografias nas quais se evidenciam fotografias justapostas por pontos ou partes que se repetem em determinadas fotos. Esses pontos de proximidade, ora ocorrHUDPSHORHQFRQWURGRV³FpXV´RUDSHODVSRQWHV ora pelas árvores, ora pelos animais domésticos, ora pelos meios de transporte e o grupo que, por indicação de Edi, foi colocado no centro GR &DUWHPD SRU VHU D ³foto do grupo, de nós todos unidos e que não desistimos´

A composição final, fotograficamente cartemizada, mas que foi sempre mediada pelos signos ideológicos passou, em seu processo de produção, por constantes transformações em seu arranjo e, pela

interação do grupo, foi sendo atualizada até constituir a forma final cartemizada para a análise. Durante o processo de escolha das IRWRJUDILDV TXH IDULDP SDUWH GR ³FDUWD]´ RV VXMHLWRV GD SHVTXLVD DV movimentaram constantemente sobre a cartolina. Isso favoreceu uma colagem cujas tentativas de justaposição e aproximação entre as fotografias ficaram evidentes e ocorreram até que o grupo dissesse ³agora já está bom!! podemos passar a cola nelas´  3DUD WDO composição o grupo selecionou 18 fotografias de um total de 58, das quais 30 foram tomadas no assentamento, no acampamento e no pré- assentamento e 28 retratadas durante o passeio/pesquisa ocorrido neste terceiro momento de pesquisa.

O modo como os sujeitos da pesquisa foram buscando formas de aproximação e colagem entre cada uma das 18 fotos dessa composição fotográfica sugeriu um caminho inspirado na técnica denominada Cartema. CRQIRUPH $OW  S   R &DUWHPD p XPD ³FULDomR artística do pernambucano Aloísio Magalhães (1926 - 1982) na década GH ´ $ SDODYUD &$57(0$ IRL FULDGD HP  SHOR ILOyORJR Antônio Houaiss (2001, p. 638) para designar a criação artística de $ORtVLR 0DJDOKmHV FRPR XPD ³FRODJHP HVWUXWXUDGD D SDUWLU GD FRORFDomR ODGR D ODGR GH FDUW}HV SRVWDLV´ TXH HP VHX FRQMXQWR formam uma nova unidade visual. Formado em direito, Aloísio Magalhães, voltou-se para as artes visuais, produzindo, entre outros trabalhos, o padrão monetário brasileiro em 1967. De acordo com o livro Cartemas: a fotografia como suporte de criação (FUNARTE, 1982), é possível compreender que ³D LGHLD GRV &DUWHPDV RFRUUe a Aloísio Magalhães em 1970, quando observava, na Holanda, os GHPRUDGRVHFRPSOH[RVWHVWHVGHLPSUHVVmRGDVQRWDVGHXPFUX]HLUR´ (1982, p. 01). Essa experiência influencia Aloísio Magalhães que, VHPSUHYROWDGRjV³PDQLIHVWDo}HVGDFXOWXUDSRSXODUHFRPo desejo de LQWHUDomR FRP R FROHWLYR´ $/7  S   ³FDUWHPL]D´ o cartão- postal reproduzindo-o unitariamente. O uso de cartão-postal estava inserido no contexto artístico-brasileiro da época que, desde os anos 60, trazia objetos do cotidiano para dentro do discurso artístico.

Assim, a composição fotográfica produzida pelos sujeitos da pesquisa, doravante denominada Cartema, traz em si, como síntese dialógica, todo o percurso de coleta de dados constituído por esses sujeitos da pesquisa. Como enunciado-resposta verbal e fotográfico, esse Cartema compõe o corpus GHVWDSHVTXLVDSRLV³DTXLORTXHpFULDGR em interação faz nascer outras (talvez, novas) possibilidades de significar, de assumir o diverso em termos de pensamento, tornando este

pensamento um atRTXHXQHDEVWUDWRHFRQFUHWRXQLYHUVDOHSDUWLFXODU´ (DA ROS, 2006, p. 235). Desse modo, suportada pelas considerações bakhtinianas (2003, 2004) ± em discussão nesta tese ± que conferem à enunciação o lugar de unidade real da linguagem assumo, para esta pesquisa, o Cartema como sendo um grande enunciado na interação que o compõe verbal e visualmente.

Contudo, antes de passar a apresentar a análise do Cartema, o que será feito no 5º capítulo, convém explicitar o contexto de produção dos enunciados verbais e fotográficos produzidos pelos sujeitos da pesquisa. Assim, no próximo capítulo situarei o lugar a partir do qual os sujeitos da pesquisa se enunciam e são enunciados no que diz respeito: localização geográfica, às condições de acesso e à organização da turma de EJA em seus assentamentos, pré-assentamento e acampamento, bem como à singularidade de cada uma das trajetórias dos sete sujeitos da pesquisa pela escolarização na EJA do Campo.

2. EM RETRATOS: O CONTEXTO DAS VOZES PRÓPRIAS